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Dona Salomé viajava com torcida e dizia: "Morro se o Cruzeiro cair"

Torcedora e funcionária do Cruzeiro, Salomé deixa um filho e três netos - Reprodução/Instagram
Torcedora e funcionária do Cruzeiro, Salomé deixa um filho e três netos Imagem: Reprodução/Instagram

Talyta Vespa

Do UOL, em São Paulo

11/12/2019 04h00

As redes sociais do Cruzeiro e de muitos jogadores do clube acordaram nesta terça-feira (10) com declarações de amor e lembranças, quase ignorando o rebaixamento do time no Campeonato Brasileiro, no último domingo. As mensagens carinhosas agradeciam a mais fiel e emblemática torcedora do clube mineiro. Dona Salomé morreu aos 86 anos, após sofrer uma parada cardíaca.

Sorridente, com uma vassoura em uma mão e um paninho com álcool na outra, a funcionária do clube recebia todos os jogadores que chegavam ao local há 45 anos. Entre eles, é claro, ela tinha seus queridinhos: Serginho, o líbero, ex-jogador de vôlei do Cruzeiro, e o boliviano Marcelo Moreno, atacante do time em 2007, 2008 e 2014. Moreno, ainda, deu nome à raposinha de pelúcia que Salomé carregava para lá e para cá e ao papagaio que morava em sua casa.

Salomé tinha cinco réplicas da mascote. Até tentou trocar as raposas por uma bonequinha que vestia o uniforme do clube, mas durou pouco. O xodó era com o animal-símbolo do Cruzeiro e ela não deixava ninguém derrubar Marcelo Moreno, a raposa, no chão. "Ela falava 'cuidado que você vai bater no Marcelo Moreno', e eu, que tinha acabado de entrar na torcida, perguntei: 'Quem diabo é Marcelo Moreno, Dona Salomé?'. 'Minha raposinha, uai'", conta Loly, membro da torcida organizada do clube com quem Salomé voltava para a casa depois de todos os jogos.

salomé - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Imagem: Reprodução/Instagram

Loly é microempreendedora, tem 29 anos e mora a uma quadra da casa em que morava, sozinha, Salomé —uma casinha simples no bairro de Novo Riacho, em Contagem, Minas Gerais. Na semana passada, durante a carona semanal, Loly conta, Salomé se mostrou cabisbaixa.

"Sabe, minha filha, se o Cruzeiro cair, meu coração não aguenta. Eu morro. Não nasci para ver meu time na Série B", disse ela, segundo Loly. "Eu, na hora, respondi: 'Aguenta, sim, Dona Salomé, a senhora vai viver mais 150 anos'. E ela continuou: 'Se cair, eu vou embora'. Ela dizia que não queria ver o Cruzeiro em um lugar que não condizia com a história do time", conta.

Não tinha uma partida em que a torcedora não estava. Quando quem jogava era o time de vôlei, Salomé era, pela torcida, ovacionada ao entrar no ginásio, caminhando lentamente, de passinho em passinho, com as costas envergadas. "Sem pressa, meus meninos, sem bagunça. Pelo Cruzeiro, a gente tem que ir até o final, mas devagar", dizia aos colegas de torcida.

Seu expediente no clube, como auxiliar de limpeza e serviços gerais, acabava às seis horas da tarde e, de lá, ela corria para o Mineirão —na maioria das vezes, pegava, sozinha, um ônibus que demorava entre 20 e 30 minutos para chegar no estádio. "Quando eu a encontrava na rua, pedia um Uber ou dava uma carona. Ela ia de qualquer jeito", diz Fred, diretor da Máfia Azul, torcida organizada do Cruzeiro.

"Filipão, ontem não deu, mas, hoje, eu tô sentindo que vai dar"

salomé - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Imagem: Reprodução/Instagram

O ponteiro Filipe Ferraz está há dez anos no vôlei do Cruzeiro —todos os dias recebido com o sorriso e o abraço de Salomé. Ao UOL Esporte, ele conta que, diariamente, a colega ficava a 30 metros da catraca da recepção "só para abraçar todo mundo". "Ela falava 'Ei, você viu como esse bebedouro está limpinho hoje? É meu clube, limpo para deixá-lo brilhando para vocês. Então brilhem para nós'. A gente até falou sobre tirá-la da área limpeza, afinal, ela já tinha 86 anos. Mas era ali que ela gostava de ficar. Se a tirassem dali, ela sofreria muito", conta o jogador.

"Caminhávamos, abraçados, até o vestiário, papeando sobre as últimas partidas ou as que viriam. 'Seus filhos estão lindos', ela dizia, sempre que mostrava fotos da minha família. Os dias não terão mais a mesma graça sem o carinho dela".

Salomé acompanhava o treino da Sada Cruzeiro e, quando a equipe jogava mal, não hesitava em incentivar —sempre incentivar, "brigar, não, de nenhuma maneira". "Hoje não deu, né, Filipão, mas da próxima vez eu tenho certeza de que vai dar. Estou sentindo", dizia, segundo o atleta. "Nunca a vi brava", conta. Há quatro meses, Salomé foi internada por problemas cardíacos. "Ficou alguns dias no hospital e voltou. Falei 'Salomé do céu, não dá esse susto na gente!".

Mesmo com atestado médico em dias em que não se sentia bem, ela não faltava ao trabalho. Na semana passada, ao ser agredida por torcedores do Atlético-MG, Salomé bateu o joelho e reclamou de muitas dores no ombro. Foi levada para a UPA de Betim, a 40 quilômetros de Belo Horizonte, e recebeu, do médico, a ordem de repousar por três dias. Não adiantou. "Saímos do hospital à 1h e ela estava agitada dizendo que precisava chegar logo em casa porque às 5h30, tinha que acordar e ir para o Cruzeiro". E foi.

salome - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Salomé e o médico que se lembrava dela com carinho
Imagem: Arquivo Pessoal

Salomé estava com os colegas de torcida, que foram cercados por torcedores do Atlético Mineiro armados com barras de ferro e pedaços de madeira. "Vieram para cima da gente e, quando a Salomé tentou correr, caiu no chão. Sentiu muita dor no pescoço, no pulso e nos ombros. Corremos com ela para o hospital e, quando entramos na sala do médico, ele ficou emocionado", relembra Loly.

"Que emoção, vou atender a Salomé", disse. "Ele contou que, há 23 anos, quando era adolescente, estava chorando na porta do Mineirão porque queria muito entrar. Salomé o colocou para dentro e ainda fez com que entrasse em campo com os jogadores. Segundo ele, foi um dos dias mais especiais que já viveu", conta.

Namorada do Serginho

"Eu queria que o mundo inteiro soubesse do amor que ela tinha pelo Serginho, o líbero. Ele brincava que Salomé era a namorada dele do Barro Preto [em Belo Horizonte]. E ela dizia aos quatro ventos que era amante do Serginho", ri Loly.

Na terça-feira (3), Loly e o marido, como de costume, levaram a amiga em casa, e, durante o percurso, ela se mostrou aflita. "Será que o Serginho esqueceu do meu aniversário de 86 anos? Ele não me deu parabéns". Quando o jogador, após uma partida, não dava muita bola a ela, era cobrado: "Ei, cara, você esqueceu de mim?".

Em entrevista exclusiva ao UOL Esporte, Serginho relembra o amor à colega, para ele, uma mãe. "Todos os dias, quando eu chegava, ela me abraçava e perguntava: 'Segin, só alegria?'. Ela me chamava de Segin, sem o 'R'. Virou um bordão. Só alegria, Salomé, era minha resposta. Estar longe me dói [o jogador mora na Europa]. Gostaria de poder me despedir, é muito triste não ter mais a presença dela. Queria guardá-la num potinho".

O jogador conta que Salomé passava por dificuldades financeiras. Ainda assim, nunca deixou de cumprimentar qualquer pessoa com um sorriso no rosto. "Ela vivia pelo Cruzeiro, mas esse emprego também garantia o sustento dela. Isso [de ela ainda trabalhar aos 86 anos] me chocava, me chateava um pouco. Eu brincava: 'Salomé, vai retocar essa raiz, arrumar esse cabelo. Você precisa de dinheiro? Eu te dou, vá ao salão'. E ela ia, voltava de chapinha, com o cabelo tingido, toda bonita", conta.

salome - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Imagem: Reprodução/Instagram

As unhas, sempre azuis e brancas, eram feitas em casa. Com a camisa do Cruzeiro —não tinha um dia em que Salomé não vestia o manto—, ela combinava uma saia. Estava sempre de saia. "E eu brincava com ela, falava que era ciumento e que a saia dela estava muito curta, todo mundo ia ver a calcinha. Ela morria de rir. Éramos grandes amigos. Vai ser difícil lidar com a saudade".

Salomé deixa um filho, três netos e uma batelada de amigos e fãs. Roberto, o filho, a acompanhava com frequência no dia a dia do Cruzeiro. "Ela vivia dizendo: 'O Roberto fica preocupado comigo, mas eu sou velha, já sei lidar com as coisas da vida", conta Loly.

Poltronas 1 e 2 na caravana

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Imagem: Reprodução/Instagram

Não tinha tempo ruim para Salomé. Ela viajava com a torcida do Cruzeiro para a maioria das partidas nos arredores de Minas Gerais: com uma mochila grande, participou da viagem para Brasília, para o Rio, São Paulo e para várias cidades do interior paulista. Se o ônibus quebrava no meio do caminho, era ela quem acalmava os ânimos. Fred conta que a torcida chegou a ficar mais de cinco horas parada na estrada esperando o conserto do automóvel. "Energia positiva, gente. Vou orar para o ônibus voltar a funcionar", dizia.

Salomé gostava de viajar na frente — tinha mais espaço e ela podia enxergar a estrada. Toda vez que entrava no ônibus, se acomodava nas poltronas 1 e 2. "Era a mãe da torcida. Dizia que era avó, mas era uma mãe".

Errata: este conteúdo foi atualizado
O nome do bairro de Belo Horizonte é Barro Preto e, não, Bairro Preto, como havia sido informado nesta reportagem. A informação foi corrigida.

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