Fluminense aposta em 'lado humano' do futebol contra o abismo financeiro
O Fluminense observa o futebol brasileiro e entende que a divisão de receitas - principalmente das cotas de televisão - criou um abismo financeiro entre clubes que pertencem ao mesmo patamar. Dentro desse diagnóstico, o Tricolor tenta apostar no lado humano do futebol. Peça importante da mudança de visão é o diretor de futebol Paulo Angioni.
"O difícil do futebol não é faltar dinheiro, é conviver em um ambiente com valores impraticáveis para a realidade social do país. São estratosféricos. É um absurdo. O único jeito de resistir a essa realidade é fazendo algo diferente, e nós tentamos, por exemplo, com o Fernando Diniz. Não tem nada igual a ele. É disruptivo, é diferente de tudo. E eu sigo acreditando que a coragem que ele imprime é a melhor maneira de diminuir a diferença criada pelo dinheiro", diz.
Para ele, a divisão discrepante de valores acabará com os clubes - todos, até os mais ricos - a longo prazo.
"Do jeito que está, é só observarmos o mundo: o panorama é repetir o que dá errado. Eu lembro do Milan, do [Silvio] Berlusconi [ex-dono do clube], em sua época de maior investimento no futebol europeu, nos anos 1980 e 1990. Ele dizia: 'o que será do Milan sem rivais?'. É o que devemos pensar. O Milan não disputa um campeonato sozinho. Nem time nenhum. Precisamos refletir sobre isso. Vale a pena rever esse lado. Se me chamarem para discutir, vou provar que os clubes não vão resistir".
Formado em administração e psicologia e com 39 anos de experiência no futebol, Angioni é como um sacerdote no mundo da bola. Em encontro com o UOL Esporte numa livraria no Leblon (zona sul do Rio de Janeiro), o que falou sobre o que acontece dentro de campo no Flu não era o mais importante. Sua visão sobre o futuro do futebol nacional passa por entender mazelas que sempre existiram, mas nunca foram comentadas.
"Eu já falo isso há muitos anos: as pessoas estão adoecendo no futebol e ninguém parece se preocupar. Embrulha e joga fora. É triste. O futebol encurta a vida do ser humano. Antes, com 30 anos, já era velho. Alguns jogadores, depois, construíram longevidade maior. Mas hoje já se voltou a utilizar o rótulo. Estamos perdendo craques, mas o mais importante que isso, pessoas", afirma.
A depressão é uma doença considerada muito comum pela Organização Mundial da Saúde (OMS). No Brasil, segundo estimativas, afeta 2 milhões de pessoas. Muitas dessas estão empregadas no futebol, principalmente entre os atletas. Há um entendimento global de que as redes sociais, por instigarem um mundo em velocidade mais rápida e apresentar padrões profissionais e pessoais inalcançáveis, aumentam a tendência do ser humano de se tornar depressivo.
"A preocupação com o ser humano aumentou no futebol. Até porque não tem jeito. Os jogadores passaram a ter coragem e explicar seu processo de depressão. Com síndrome do pânico, por exemplo. Isso existe faz tempo. Mas não havia coragem. O sistema não permitia, por conta da pressão".
Angioni não possui redes sociais. Apenas WhatsApp, por necessidade profissional. Não mexe a todo tempo em seu telefone, que é moderno. Não por falta de intimidade, como os cabelos brancos poderiam indicar. O pensamento é naturalmente acelerado por quem convive sem folgas e com a responsabilidade de ditar rumos no clube do seu coração. Mas a fala é calma e a cabeça está à frente de seu tempo.
"As mídias sociais atingem o jogador. E eles passam a ter mais preocupação. Se sentem afetados pela forma como as pessoas lidam umas com as outras. A solução é entender uma nova vida, mas para isso, é preciso uma base que eles não tem".
Ainda nos anos 1990, diagnosticou transtornos depressivos em diversos jogadores. O assunto, entretanto, era um tabu. Com ele, esses atletas conseguiam render. "O mundo da pessoa muda. Para a própria saúde faz mal. Mas as pessoas no futebol gostam de rótulos. E os valores estratosféricos dificultam a controlar essas coisas", opina.
Os psicólogos e assistentes sociais nos clubes foram marcas deixadas por onde passou, ainda que o aparato ainda não seja muito utilizado pelos jogadores: "O sistema é tão forte que as pessoas não permitem se descobrir. A pressão externa é muito forte".
Sua ideia de criar um sub-23, é, em gênese, uma tentativa de salvar os jovens, aumentar a vida profissional dos atletas, diminuir o adoecimento dos jogadores e pessoas ligadas ao futebol e reviver os tempos de formação abundante de talentos, algo que, em sua opinião, se perdeu no Brasil por conta de rótulos. Não é só no Fluminense: Angioni tenta salvar o futebol brasileiro.
"É muito sacrificante para um ser humano se preparar a vida toda para algo que é uma incerteza. A possibilidade de ter essa vida é muito pequena. E quando é certeza, sua vida profissional dura 10 ou 12 anos. Nos dois primeiros anos, a realidade muda: da pobreza para a riqueza. Em dois anos esse atleta vive o mundo do glamour. Depois disso, se ele se permitir continuar preso a isso, ele não está normal", atesta, com a experiência de quem lidou com craques que se perderam no dinheiro, alcoolismo e drogas em função da falta de atenção emocional: "O jogador é maturado aos 18 anos e não servindo ao profissional, é jogado fora".
O projeto foi criticado nas redes sociais por supostamente aumentar custos, tese que Angioni renega. Além disso, vê na iniciativa uma repetição do que deu certo.
"Daremos oportunidade aos atletas, aos funcionários. Não aumenta custos. Crítica sempre vai haver. Mas não se pode cruzar os braços e não fazer nada. Automaticamente, também melhora o futebol brasileiro, por aumentar o mercado de jogadores. Sem jogador aqui, a gente vai buscar no Equador, na Colômbia, no Uruguai. Não há preconceito com esses lugares: eles formam grandes jogadores também. Mas nós naturalmente formamos mais, só que não aproveitamos direito. Criamos rótulos, jogamos fora", diz.
As dificuldades apontadas por Angioni atrapalham, por exemplo, o mercado da bola.
"Aonde a gente vai chegar? Uma hora não vai ter mais jogador. O clube investe anos num atleta na base e depois joga ele fora se for rotulado. Estamos jogando tudo fora. Hoje o jogador vai mal em um clube, é considerado mal-sucedido e a carreira dele se enterra. As mídias sociais criticam esse jogador e o clube que de repente aposta nele. Como contrata, então? Traz o desconhecido, que muitas vezes é pior. Tudo para não haver crítica", finaliza.
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