De gandula do pai a saltos no asfalto: "Eu nasci goleiro", diz Everson
Paixão nacional, o futebol do Brasil começa na rua ou na terra. Tirar "a tampa do dedão" ao chutar o asfalto é quase um ritual para toda criança nascida no país. Descalços, os pés das crianças brasileiras apaixonadas pelo esporte encontram mais o pavimento do que o chinelo - que serve apenas para delimitar o tamanho do gol: dois passos. Não com ele. Quando Everson estava na rua, era o joelho que se chocava com o asfalto dentro de um "golzinho" de chinelo com o triplo do tamanho.
O camisa 22 do Santos gosta de marcar gols, sim, ele já bateu faltas e pênaltis na carreira. Mas se engana quem pensa que em algum momento da vida de Everson, ele pensou em jogar na linha. Inspirado pelo pai, goleiro na várzea, Everson era o gandula do seu Paulo Pires nos jogos e já dava suas pontes no intervalo das partidas do pai.
"Goleiro é uma profissão ingrata desde sempre. Todo mundo erra, somos falhos, mas o problema do goleiro é que 90% das vezes que você erra, você leva o gol. Mas foi a paixão que eu sempre tive desde criança. Nunca quis jogar na linha, apesar de gostar de fazer gol, fazer goleiro-linha no salão, bater faltas... Via meu pai jogar no gol e me espelhava muito nele, ele sempre foi meu ídolo. Sempre quando brincava na rua, eu falava: 'a gente pode fazer gol no gol pequeno, mas o meu é grande e eu vou ser o goleiro'. O golzinho de dois passos virava de seis e eu não tinha medo de me jogar no chão no meio do asfalto: ralava o cotovelo, joelho... Eu nasci goleiro", disse Everson, em entrevista exclusiva ao UOL Esporte.
O caminho do goleiro santista foi longo. Natural de Pindamonhangaba, interior de São Paulo, Everson fez as categorias de base no São Paulo, onde via Rogério Ceni brilhar no time profissional. De lá, ele foi para o Guaratinguetá-SP, mas ficou quatro anos na reserva de Jailson, hoje no Palmeiras. Lá ele conviveu com o técnico Sérgio Guedes, ex-goleiro do Santos, por quem Everson nutre admiração e Evair, ídolo do Palmeiras, que era auxiliar técnico e proporcionou o verdadeiro início para o arqueiro.
A primeira oportunidade veio longe de casa: o River-PI. Evair, que estava começando a carreira como técnico, convidou Everson para ser seu titular na equipe do Piauí. O contrato assinado foi de quatro meses e foi suficiente para ser campeão estadual e chamar atenção do Confiança-SE.
No Piauí, apesar da boa fase dentro de campo, Everson passou as maiores dificuldades da carreira fora dele. Morando de aluguel e com salário baixo, o goleiro que já era pai de dois filhos e tinha ajuda dos familiares de sua esposa para viver. O dinheiro só dava para pagar escola para um dos filhos.
"No River-PI, que é importante na minha carreira, mas foi onde mais sofri. Tive bastante ajuda dos familiares meus e da minha esposa, até para pagar escola do meu filho - não tinha condições de colocar os dois, então só o mais velho ia. Ela [filha mais nova] já poderia ir para a escola, mas a gente optou por não colocar por receber pouco. Tinha ajuda da minha sogra, mas tinha aluguel, parcela do carro, convênio... Não tinha como. Quando fui para o Confiança consegui colocar os dois, tinha um conselheiro que era dono de uma escola e ele deu bolsa, mas, mesmo assim, eu atrasava a mensalidade porque o clube não pagava em dia. Explicava para ele, e ele entendia", contou.
No Confiança-SE, Everson jogava por mais um mês de salário. A equipe disputava a Série D do Brasileiro e, para continuar recebendo, o time precisava ir avançando de fase. Degrau por degrau, Everson e o Confiança conquistaram o acesso à Série C de forma invicta e, em uma entrevista coletiva emocionada, o goleiro se despediu do time de Sergipe rumo ao Ceará.
Me orgulho muito dessa história. Jogar uma Série D, uma Série C e uma Série B pra depois jogar a Série A não são todos que conseguem passar por cada etapa. Com trabalho você pode chegar a lugares inimagináveis.
"Tenho muito carinho pelo Confiança-SE e pelo povo sergipano. Sempre fui muito bem recebido por todos, até pelos rivais, andando na praia, no shopping... Eu penso em ter o último jogo da minha carreira no Confiança. Muitos podem achar que é pouco, posso ter uma carreira pela frente ainda. Mas desejo jogar a despedida lá. Espero que a diretoria da época queira. Se hoje eu estou aqui, foi por que eles abriram as portas. Seria muito especial para eu me despedir do futebol lá", afirmou.
Foi no Ceará que Everson se mostrou para todo o Brasil. Após a Série B, o goleiro jogou a Série A e despertou interesse de alguns clubes, entre eles o Santos. A proposta do Peixe paralisou o goleiro e fez a ansiedade tomar conta do sereno Everson.
"Quando ele [empresário] mandou a imagem da proposta e eu vi o símbolo do Santos, eu paralisei. A negociação se arrastou mais de duas semanas. Lembro que o Edinho [ex-Internacional] me falou: 'quando arrasta assim é porque vai dar certo, sei que você quer muito ir e está ansioso, mas fica tranquilo'. Eu fiquei calmo... por uns 20 minutos (risos). Quando saiu na televisão, meu filho viu e falou: "que bom, pai, lá tem praia", contou Everson, que confessou que sempre quis jogar em um clube de cidade praiana.
"O Santos é um dos maiores clubes do mundo, sem demagogia nenhuma. Não é porque hoje visto essa camisa. Eu lembro que minha estreia na Série A foi contra o Santos e eu fiquei muito empolgado pela situação"
No Peixe, Everson chegou de mansinho, apesar de ter sido indicado pelo ex-técnico Jorge Sampaoli. Com pouco tempo no clube, o goleiro ganhou a posição do ídolo Vanderlei. O voto final de confiança veio no início deste ano, quando o Peixe vendeu o ex-camisa 1 ao Grêmio. Everson, no entanto, não quis o número do habitual titular do gol e optou por manter a camisa 22.
"No Ceará não tinha numeração fixa. Na Série B a rotatividade é diferente da A, muito grande. Quando tive a oportunidade de ter número fixo lá, lembrei da minha base no São Paulo e lembrei do Rogério [Ceni] também, escolhei a 01. Queria usar um número diferente. Quando cheguei ao Santos a 1 estava com o Vanderlei. Meu aniversário é dia 22 e, por incrível que pareça, todas as casas que morei tinha o número 2, reparei nisso depois que escolhi o 22. Vagou a número 1, mas como fiz uma boa temporada com a 22, preferi manter", explicou.
Depois de abrir mão de quase R$ 2 milhões para se transferir para o Santos, referente aos 25% que detinha de seus direitos econômicos, Everson já se tornou um dos principais jogadores do Santos. Na temporada 2020, o goleiro que quer atuar até os 40 anos é um dos maiores destaques da equipe santista.
Confira a entrevista exclusiva do UOL Esporte com o goleiro Everson na íntegra:
UOL Esporte: Te pegou de surpresa a oportunidade do Jesualdo para o Vladimir de ser titular?
Everson: Não pegou de surpresa, porque na preleção antes do jogo contra a Inter de Limeira ele já tinha informado para nós que o Vladimir teria uma chance no quinto jogo, porque ele queria ver o Vladimir jogando. É uma metodologia dos treinadores europeus, usando mais de um goleiro no ano. É um grande profissional, fez uma boa temporada individual. Tenho que me colocar nos dois lugares: quando o Vanderlei era o titular e eu tive a oportunidade, eu gostei. Não vou ser hipócrita. Eu procurei deixar o ambiente leve para ele no aquecimento e foi tranquilo.
UOL: Acabou sendo um jogo até muito tranquilo, né?
Everson: Na minha estreia contra o Mirassol, eu não fui exigido de defesas, só em coberturas, saídas aéreas e com os pés. Mas foi bom, coloca mais um jogo na carreira e sem tomar gols. Isso ajuda.
UOL: Vai ser um padrão? Quatro jogos do Everson e um do Vladimir?
Everson: Não. O Jesualdo avisou que seria dessa forma dessa vez e disse que iria ver se faria esse encaixe de novo, mas que iria dar sequência para mim. No momento propício ele daria oportunidade ao Vladimir também.
UOL: Depois da saída do Vanderlei, você não quis pegar a camisa 1?
Everson: No Ceará não tinha numeração fixa. Na Série B a rotatividade é diferente da A, muito grande. Quando tive a oportunidade de ter número fixo lá, lembrei da minha base no São Paulo e lembrei Rogério (Ceni) também, escolhei a 01. Queria usar um número diferente. Quando cheguei ao Santos a 1 estava com o Vanderlei. Meu aniversário é dia 22 e, por incrível que pareça, todas as casas que morei tinha o número 2, reparei nisso depois que escolhi o 22. Vagou a número 1, mas como fiz uma boa temporada com a 22, preferi manter.
UOL: Como é a história do Everson antes de começar a se destacar no Confiança-SE?
Everson: Eu não sofri tanto na base. Tive uma base boa, com estrutura (no São Paulo). Com 19 anos sai por empréstimo para o Guaratinguetá, que tinha uma estrutura boa, mas fiquei quatro anos no banco do Jailson, que hoje está no Palmeiras. Mas estava ali próxima da minha cidade, apesar de só treinar.
De lá fui para o River-PI, que é importante na minha carreira, mas foi onde mais sofri. Tive bastante ajuda dos familiares meus e da minha esposa, até para pagar escola do meu filho - não tinha condições de colocar os dois, então só o mais velho ia. Ela já poderia ir para a escola, mas a gente optou por não colocar por receber pouco. Tinha ajuda da minha sogra, mas tinha aluguel, parcela do carro, convênio. Não tinha como. Quando fui para o Confiança consegui colocar os dois, tinha um conselheiro que era dono de uma escola e ele deu bolsa, mas, mesmo assim, eu atrasava a mensalidade porque o clube não pagava em dia. Explicava para ele, e ele entendia.
Tinha proposta de renovação com o River, tinha sido campeão, e chegou proposta do Confiança, um clube que não conhecia muito. Quando fui pesquisar, vi que Sergipe tinha praia e falei: quero jogar na praia, pelo menos minha família vai ter um lugar para ir e sempre tive esse desejo de jogar em clube que tinha praia próxima. Foi uma das melhores decisões da minha vida. Joguei uma Série D e subimos invictos, mas também com sofrimento, problemas de pagamento. Sabíamos que não íamos receber no quinto dia útil, que ia cair só metade do salário e no fim do mês, porque era o que o clube tinha para dar. A gente se fechou e jogava por mais um mês de trabalho. Se passasse daquela fase, teria mais um mês para trabalhar. Tenho muito carinho pelo Confiança e pelo povo sergipano. Sempre fui muito bem recebido por todos, até pelos rivais, andando na praia, no shopping...
Me orgulho muito dessa história. Jogar uma Série D, uma Série C e uma Série B pra depois jogar a Série A não são todos que conseguem passar por cada etapa. Com trabalho você pode chegar a lugares inimagináveis.
No Guaratinguetá, sempre trabalhei muito com o Evair, auxiliar do Sérgio Guedes, que foi goleiro e me ensinou muito. Ele nunca me deu uma oportunidade de jogar (risos), mas sempre me olhou no olho e eu sempre respeitei. O Evair me viu quatro anos na reserva lá e falou: 'jovem, estou indo paro River-PI para começar a carreira como treinador e acho que está na hora de você jogar'. Eu só tinha essa proposta concreta e decidi ir em um contrato de quatro meses.
UOL: O carinho que você tem pelo Confiança te faz pensar em se aposentar lá?
Eu penso em ter o último jogo da minha carreira no Confiança. Muito podem achar que é pouco, posso ter uma carreira pela frente ainda. Mas desejo jogar a despedida lá. Espero que a diretoria da época queira. Se hoje eu estou aqui, foi por que eles abriram as portas. Seria muito especial pra mim me despedir do futebol lá.
UOL: É verdade que você ainda quer jogar mais uns dez anos?
Everson: É. Pretendo jogar até os 40. Em alto nível. O Prass consegue, o Dida também conseguiu. Tecnologia hoje ajuda. Pretendo, se eu estiver em alto nível e continuar sem lesões.
UOL: Como você decidiu que seria goleiro, uma profissão tão ingrata?
Everson: Goleiro é uma profissão ingrata desde sempre. Todo mundo erra, somos falhos, mas o problema do goleiro é que 90% das vezes que você erra, você leva o gol. Mas foi a paixão que eu sempre tive desde criança. Nunca quis jogar na linha, apesar de gostar de fazer gol, fazer goleiro-linha no salão, bater faltas... Via meu pai jogar no gol e me espelhava muito nele, ele sempre foi meu ídolo. Sempre quando brincava na rua, eu falava: "a gente pode fazer gol no gol pequeno, mas o meu é grande e eu vou ser o goleiro". O golzinho de dois passos virava de seis passos e eu não tinha medo de me jogar no chão no meio do asfalto: ralava o cotovelo, joelho... Eu nasci goleiro.
UOL: Você atraiu interesse de outros clubes quando estava no Ceará, mas fechou com o Santos. Por quê e como foi esse processo?
Everson: Tive propostas e sondagens no final de 2017, mas acabou não dando certo. Pensei que não era para ser e foquei em continuar o bom trabalho e esperar mexer alguma 'peça no tabuleiro', como a gente costuma dizer. Quando um goleiro sai de um clube grande, as peças se movem. Quando estava no cinema, meu empresário me manda mensagem dizendo que tinha proposta de um clube da Série A. Já fiquei pessimista pelos episódios recentes, mas comecei a pensar no tabuleiro e não cheguei a nenhuma conclusão. Quando ele mandou a imagem da proposta e eu vi o símbolo do Santos, eu paralisei. Tinha o desejo, mas não esperava. O Santos tinha grandes goleiros, assustei, mas falei que queria. A negociação se arrastou mais de duas semanas. Lembro que o Edinho (ex-Internacional) me falou: 'quando arrasta assim é porque vai dar certo, sei que você quer muito ir e está ansioso, mas fica tranquilo'. Eu fiquei calmo... por uns 20 minutos (risos). Quando saiu na televisão, meu filho viu e falou: "que bom, pai, lá tem praia".
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