Santos de 2010 foi mais importante do que você lembra no futebol brasileiro
Não espere ler neste texto comparações com o Flamengo de 2019, o Cruzeiro da Tríplice Coroa, o São Paulo tricampeão brasileiro ou tantos outros times vencedores dos últimos anos no futebol nacional. Comparações são tentadoras, mas a importância de cada um em sua época é intangível. Hoje faz dez anos que o Santos venceu o Naviraiense-MS por 10 a 0 pela primeira fase da Copa do Brasil e esta é uma reportagem sobre aquela equipe e como ela ficou para a história.
O Santos de 2010 até hoje é sinônimo de futebol bonito e ofensivo. Até a final da Copa do Brasil - o segundo título daquela temporada - foram 47 partidas e 129 gols marcados, média de quase três por jogo. Num contexto em que a seleção brasileira vivia o pragmatismo da "Era Dunga", os comandados de Dorival Júnior faziam gols, dançavam na comemoração e chamavam atenção de um público que chegava aos poucos às mídias sociais.
É um time de uma época, porque até suas polêmicas foram por mau uso da internet. As redes sociais, tão disseminadas hoje, ainda engatinhavam e não estava claro o poder que elas já tinham na época.
Essa história fica ainda mais marcante porque no começo de 2010 ninguém esperava que o Santos seria o que foi. Em campo, 5 a 0, 6 a 3, 9 a 1, 8 a 1 e o tal 10 a 0. "Queríamos montar o time com um objetivo bem realista, de manter o Santos na Primeira Divisão do Campeonato Brasileiro. A ideia era não ter problema de rebaixamento. Mas aí as coisas começaram a dar muito certo", explica, meio sem explicação, o ex-jogador Jamelli, gerente de futebol do clube naquela temporada.
Agora, pode enumerar: jornada heroica, polêmicas, futebol vistoso, dois títulos e alcance midiático.
Robinho foi o ponto de virada
- Presidente, acho que dá para contratar o Robinho.
- Acabei de assumir um clube endividado, preciso pagar salário atrasado, e você falando em trazer Robinho? Pare com essa loucura.
Foi mais ou menos assim o diálogo entre Armênio Neto e Luis Álvaro de Oliveira Ribeiro, diretor de marketing e presidente do Santos em 2010. O Rei das Pedaladas queria sequência de jogos para se garantir na Copa de 2010, pois não vinha atuando no Manchester City. Já o Santos tinha estipulado um teto salarial de R$ 150 mil, dispensado 16 jogadores e enxugado a folha de pagamento. Não tinha dinheiro, mas tinha o sonho - que se materializou em 29 de janeiro.
Quando Robinho foi contratado o Santos já tinha goleado duas vezes em cinco jogos, mas a maioria das pessoas ouvidas pelo UOL Esporte considera que a chegada do camisa 7 foi o ponto de virada daquele time. Garotos acompanhados por um jogador de seleção se encheram de confiança. E o clube enfim notou que era possível brigar bem acima das zonas de rebaixamento. Robinho foi apresentado no gramado da Vila Belmiro. Ele chegou de helicóptero ao lado de Pelé enquanto rolava um show da banda Charlie Brown Júnior. Inesquecível para o torcedor santista: "Ô lê lê, ô lá lá, o Robinho vem aí e o bicho vai pegar."
Na estreia, uma semana após sua apresentação, Robinho fez um gol de letra contra o São Paulo de Rogério Ceni. E aí ninguém mais segurou.
"O Jô sai de saia e bicicletinha"
Exibido pela Globo entre 2000 e 2016, o "Programa do Jô" transmitiu mais de 8 mil entrevistas. Uma delas, com o elenco do Santos de 2010. De forma inusitada e jamais repetida na TV, Robinho, Neymar, mais nove jogadores e o técnico Dorival Júnior foram entrevistados simultaneamente pelo apresentador ao longo de três blocos. "Um dia a produção do Jô Soares me liga e passa o telefone para o Jô. Eu tinha dois, três meses de clube. Ele diz: 'Oi, quero trazer os jogadores aqui'. Eu só falo: 'Caralho do céu!'. Foi a primeira e única vez que isso aconteceu na TV", conta Arnaldo Hase, que chefiava o departamento de comunicação do Santos na época.
Houve muita confusão na entrada do elenco santista na TV Globo e o programa que foi ao ar era diversão pura. Robinho, capitão do time, brincou no ar dizendo que "jogar com os meninos é fácil, difícil é jogar com o Bira" e tirou risadas da plateia ao responder "a chuva que trouxe" quando Jô perguntou onde o atacante Zé Love tinha nascido. Neymar cobrou: "Vem cá, Jô, não vem com esse negócio de água na caneca, não. Quero refrigerante." Zé Love foi outra atração à parte: dançou o hit "Single Ladies", de Beyoncé, e ainda cantou nos bastidores a paródia "O Jô sai de saia e bicicletinha", de um sucesso da época. Um time anárquico e midiático, resumido por Jô em uma frase.
Claro que o resultado é fundamental em campo. Mas o resultado com essa alegria é uma homenagem ao futebol.
Sucesso na TV e na internet
"Quando os jogadores viram a câmera no vestiário teve um pouco de desconfiança. Mas quando foi ao ar e recebemos feedback bom da torcida e da imprensa os atletas começavam a entrar na sala da Santos TV para cobrar que não tinham aparecido no último vídeo. O que fizemos em 2010 está cada vez mais latente nos conteúdos audiovisuais, que é mostrar a pessoa física por trás da pessoa jurídica, quem é o homem por trás das suas experiências em um modelo documental", relata Hase.
Além da reunião de uma série de jogadores que tratavam o futebol com leveza, o Santos incentivou a midiatização daquele time. Os convites dificilmente eram recusados. Prova disso é a participação de Neymar, Paulo Henrique e Ganso e o goleiro Rafael em uma cena da 18ª temporada de "Malhação", entre tantas outras aparições.
Neymar: estrela e fominha
O grande nome do Santos a partir de 2010 já tinha estreado como profissional no ano anterior, mas sem sucesso. Neymar foi até chamado pelo técnico Vanderlei Luxemburgo de "filé de borboleta" por causa das condições físicas e ficava na reserva. Com Dorival no comando ele começou o ano como titular, mostrou talento, fez gols, inovou nas dancinhas e nos penteados e se tornou uma estrela da mídia, a ponto de seu processo de retirada da licença para dirigir ter sido registrado por sites e TVs.
Jamelli se recorda de uma história inusitada sobre a estrela da companhia. Em março de 2010, o Santos tinha goleado o Ituano por 9 a 1, com três gols de André, que foi presenteado com a bola do jogo. Neymar queria mais. "No outro dia ele chegou para mim: 'Se eu fizer três gols você me dá a bola?'. Eu respondi: 'Dou, Neymar, é claro'. Aí ele: 'E se eu fizer seis?'. Aí no impulso, na brincadeira, eu falei: 'Dou meu carro'. Ele consentiu e saiu." Cinco jogos depois, o Santos goleou o Guarani por 8 a 1. Neymar anotou cinco gols.
"Eu estava na cabine com o Ivan (Izzo, auxiliar de Dorival Júnior) e falando para tirarem o Neymar de campo. O jogo já estava ganho e se ele fizesse mais um gol eu teria que dar meu carro para ele. O pessoal brincava: 'Quase que você ficou a pé'. Mas no fim só dei a bola mesmo (risos). Aquele grupo era muito bom de trabalhar."
Nem Dorival não escapava das brincadeiras
A juventude e irreverência dentro de campo era uma expressão da verdadeira essência daquela equipe. Como não poderia ser diferente, nos treinos e vestiário as brincadeiras entre jogadores eram constantes e, às vezes, passavam até dos limites.
Neymar e Marcel chegaram a se desentender após o elenco amarrar Zé Love na trave durante um treino. E nem o técnico Dorival Júnior escapava das "zoeiras" e até cobranças: Madson, "o fod*", que o diga.
"Dorival chegou um dia falando 'não aguento mais o Madson'. Os dois moravam no mesmo prédio. A gente olhou pra ele e o baixinho falou: 'eu? Eu não estou fazendo nada, pô'. E o Dorival disse: 'você sabe o que está fazendo, Madson. Fica gritando lá da cobertura: 'Dorival, amanhã quero jogar, hein! Põe eu pra jogar, Dorival. Só preciso de um tempinho no segundo tempo, lembra de mim'. 'Não é possível que o síndico não vai fazer nada', falou o Dorival ainda. E o Madson, então, responde: 'ele tem que lembrar de mim, pô, um monte de jogador aí...", contou o goleiro Vladimir ao UOL Esporte.
Ração e lar espírita: as polêmicas
Ainda não se sabia, mas a rede social seria um dos maiores instrumentos da atualidade: para o bem e também para o mal. Sem a orientação adequada, no entanto, os Meninos da Vila do Peixe de 2010 extrapolaram os limites e criaram polêmicas.
Na maior delas, o goleiro Felipe, titular em grande parte da temporada, respondeu uma crítica durante uma transmissão ao vivo com uma frase que o deixaria marcado por toda a carreira: "o que eu gasto com meu cachorro de ração é o seu salário por mês".
A transmissão ainda contou com uma ligação de Robinho para Zé Love pedindo para desligarem. Os dois discutiram e o camisa 7, líder daquele elenco, cobrou os atletas quando se encontraram em Santos - já que o técnico Dorival Júnior havia dividido o grupo com intuito de poupar jogadores.
"O Robinho tinha uma liderança muito grande. Ele cobrou da maneira que tinha que ser cobrado. Quem conhece o Felipe sabe que ele nunca falaria uma coisa dessa, tanto que se você pegar o vídeo, ele nem sabe, ele pergunta no meio: 'como é que é mesmo?'. Mas foi a cara dele, as palavras saíram da boca dele e ficou marcado. Nem de brincadeira a pessoa devia falar uma coisa dessa", disse Vladimir ao UOL Esporte.
Outra polêmica criada foi a ausência de vários titulares em uma ação de páscoa em um Lar Espírita na cidade de Santos. Os jogadores foram de ônibus até o local, mas alguns não quiseram descer do veículo. A explicação dada foi por questão de diferença religiosa, mas o fato repercutiu e pegou mal.
"Ali foi uma falta de comunicação grande. Não explicaram o que íamos fazer, só colocaram todo mundo no ônibus. Quando chegou lá e viram escrito 'Centro Espírita' muitos não quiseram entrar por não ficarem confortáveis, por causa da religião de cada um. Mas não explicaram o trabalho que era feito lá dentro", afirmou Vladimir.
Por que Dunga ignorou apelos
A expectativa era grande: o show em campo seria coroado com a convocação dos garotos prodígio para a disputa da Copa do Mundo de 2010? Os jogadores santistas se reuniram no CT Rei Pelé para acompanharem juntos a convocação do técnico Dunga, mas o final daquela história não foi feliz.
Dunga ignorou o apelo popular pela convocação de Neymar e Ganso. Ele justificou que não teve tempo para testar os jogadores na seleção brasileira.
"Tenho de avaliar os jogadores na seleção. Acompanho cada um em seu clube. Mas porque em dezembro ninguém pedia o Neymar e o Ganso? Vi todas as listas de vocês. Mas tinha que montar a minha. Vocês mudavam a cada mês. Que Ganso e Neymar têm muito talento eu não duvido. Mas para levar a uma Copa do Mundo você tem que testar. Não posso preparar agora uma seleção para 2014. Eu tenho de ganhar hoje! A cobrança é agora. No fim do Brasileiro de 2009 eles eram reservas do Santos. Um jogador por mais potencial que tenha estará preparado em poucos meses? A maioria das vezes não deu certo", disse Dunga na época
"Nos reunimos e gerou uma expectativa muito grande. Desde quando eu acompanhava, agora deixei um pouco, era sempre por merecimento. O pessoal destruía e era convocado. Entendo que era uma Copa do Mundo, um peso grande, mas futebol é momento. Tenho certeza que se fossem convocados dariam conta do recado. Eles amadureceram muito rápido. Como não foram, seguiram fazendo magia dentro de campo aqui", lembrou Vladimir.
Show campeão
A frase que estampou o peito dos santistas na camisa comemorativa do título paulista de 2010 resume bem o que foi o Santos daquele ano: um show em campo. O time que foi questionado e comprou o desafio de ser campeão jogando bonito e sempre pra frente.
"Além de o grupo ser muito unido, o talento individual de cada um se sobressaía. O Dorival soube utilizar isso desde o início. Quando nos apresentamos, quase ninguém se conhecia", Vladimir.
Mais do que o estadual ou mesmo a Copa do Brasil, a primeira e única da história do Peixe, a equipe comandada por Dorival Júnior da beira do gramado e pelo trio Neymar, Ganso e Robinho em campo, entrou para a história pelo futebol. Essência. Do drible, do gol, da "ousadia e alegria".
"Não nos demos conta de que estávamos entrando pra história do Santos. Cada um sabia o que vinha fazendo dentro de campo e de toda a repercussão. Cada jogo era um espetáculo. Eu fui privilegiado de ver de dentro do campo. Lembro que enfrentamos o Atlético-MG e o Grêmio na Copa do Brasil, que eram pedreiras, mas sabíamos que mesmo com a derrota no primeiro jogo por um gol de diferença, nós iríamos ganhar dentro da Vila e classificar. Então, já combinávamos antes com a família para onde iríamos após o jogo, a confiança era muito grande", lembrou Vladimir.
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