Idioma, reforços e coronavírus: técnico brasileiro relata trabalho na China
A Liga Chinesa se tornou o grande oásis do futebol asiático. Com grandes investimentos, os clubes contrataram estrelas do Brasil e do mundo. Alguns dos craques levados para o país estão entre os maiores salários do esporte — casos de Hulk e Oscar. Mas nem tudo é fácil na rotina local.
A comunicação é o ponto principal e por pouco não rendeu conflitos entre jogadores brasileiros e treinadores. O UOL Esporte conversou com um personagem que ficou no futebol chinês por dois anos e viveu sempre longe dos holofotes. O brasileiro Fábio Lefundes era membro da comissão técnica do Shandong Luneng, time que já teve Gil, Jucilei e Diego Tardelli e hoje conta com Róger Guedes, Moisés e Fellaini.
Com a responsabilidade de comandar treinamentos e definir a estratégia da equipe, Fábio Lefundes relata um caso que quase culminou em uma substituição de Róger Guedes em jogo do Shandong Luneng.
"A maior dificuldade que a gente tem é com a língua. São muitos dialetos dentro da China. O meu intérprete era de Xangai, ele não falava tão bem o mandarim. Teve uma situação curiosa com o Róger Guedes em um jogo. Eu dei algumas determinações de bola parada para ele. Ele era a minha referência em determinadas situações. O treinador não sabia disso. Foi uma coisa explicada em português, e o treinador não tomou ciência. Ele fez a primeira, fez a segunda. Aí ele veio para mim, estava com uma dúvida. Como o treinador achou que ele estava reclamando e não falava português, o Róger também não fala inglês, o treinador disse para ele: 'Róger, para de falar e vai jogar'. Eu fiquei me perguntando o que estava acontecendo. Ele continuou falando comigo. Eu percebi que o treinador estava incomodado com isso. Aí eu falei: 'ele estava falando comigo'. O treinador estava pensando até em tirar o Róger Guedes", revelou ao UOL Esporte.
"Até brinquei com ele depois: 'fala comigo sem balançar o braço, está parecendo um maestro'. O treinador estava achando que havia um problema do Róger com ele. Tínhamos muitos problemas em relação à comunicação. Eram muitos problemas. Eu cansei de fazer bilhete com mapas para eles levarem para os jogadores. Eu tinha um mapinha com o campo e mandava para o jogador visualizar. A televisão começou a filmar para ver o que tinha no papel. Eles jogavam fora e eu recolhia. Eram quatro estrangeiros e tinha um português naturalizado chinês. O [Graziano] Pellè, italiano, falava bastante português. E o Fellaini fala inglês. Ainda tinha dois ou três que falavam inglês bem. Eu não usava o intérprete para falar com eles", acrescentou.
A exótica culinária chinesa — apresentada em filmes e programas sobre a cultura local — não se tornou um transtorno no dia a dia do Shandong Luneng. Para evitar problemas com a alimentação, havia um prato predileto entre os estrangeiros do elenco.
"Com relação à alimentação, de verdade, apesar de ter muitas coisas estranhas, mais na China que na Coreia, que eu gostava da culinária... Quando estávamos em trabalho, não tinha a culinária exótica. Os atletas tinham alimentação padrão. Eles só comiam salmão, porque não queriam correr riscos", comentou Lefundes.
Em que pese toda a dificuldade na comunicação, Fábio Lefundes conseguia se comunicar bem com o departamento de futebol do Shandong Luneng. Ele foi o responsável por referendar reforços como Róger Guedes e Moisés.
"Dos dois jogadores, desde quando estou lá, participei [de contratações]. Não indiquei [jogadores], mas referendei. Quando queríamos fazer a troca de estrangeiros, o Shandong foi ao mercado, e eu dei referências sobre o Róger Guedes, dentro daquilo que tínhamos como modelo de jogo. A mesma coisa aconteceu sobre o Moisés. Ele tinha acabado de ter um problema, perdeu um pênalti [contra o Internacional, pelas quartas de final da Copa do Brasil de 2019], e o Palmeiras foi eliminado. Foi naquele momento que buscamos o Moisés. Na janela de transferências, estávamos observando cinco jogadores. Eles foram oferecidos para nós e eu dei meu parecer, eles foram avalizados. Foi na coincidência da eliminação do Palmeiras na Copa do Brasil que facilitou a liberação do Moisés, mas o Moisés já estava no nosso radar antes disso acontecer", comentou.
Depois de dois anos à frente da equipe, Fábio Lefundes optou por deixar a China. O temor com a situação do coronavírus e o desejo de trabalhar novamente no Brasil fizeram o técnico abandonar o Shandong Luneng no fim de 2019.
"Por conta de toda essa questão de coronavírus, ficou difícil o trabalho por lá. Eu e o clube também não chegamos a um acordo para a renovação. Eles possuem um investimento menor que dos outros grandes nessa área, principalmente em relação aos atletas locais e questão de mão de obra. Mas a expectativa é grande. Claro que tenho vontade de trabalhar no Brasil. Quando eu saí do Brasil, eu era um preparador físico. Lá fora eu construí uma situação diferente na minha carreira profissional. Eu gostaria que as pessoas me conhecessem como treinador. É um mercado que tenho vontade de trabalhar ainda aqui", afirmou o treinador, que mora atualmente no Rio de Janeiro.
"Trabalhei por 12 anos ininterruptos na Ásia. Tenho um bom conhecimento daquele mercado, mas me preocupei em estudar aqui no Brasil. Eu tive a chance de fazer o curso de treinador fora, mas preferi fazer o da CBF para ficar a par do mercado nacional. Se a oportunidade surgir no Brasil, estou pronto para ela. Eu tive sondagens do futebol chinês, do coreano e do tailandês, mas não evoluíram em razão do surto do coronavírus, que acabou esfriando as negociações", concluiu.
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