Coronavírus: negociação entre clubes e atletas esqueceu futebol feminino
A pandemia causada pelo novo coronavírus paralisou o futebol brasileiro e forçou clubes e atletas a negociar soluções para diminuir os impactos do COVID-19 nos salários dos atletas e nos orçamentos das agremiações. Mas apuração conjunta entre os blogs Dibradoras e Lei em Campo mostra que a situação do futebol feminino no Brasil não entrou na pauta das discussões e as jogadoras estão excluídas deste processo até o momento.
As reuniões se iniciaram em 20 de março e de lá para cá houve pelo menos três encontros por meio de videoconferência entre dirigentes de clubes e entidades que representam os jogadores que atuam no futebol brasileiro. E somente na quinta-feira da semana passada (26) que a situação das jogadoras foi levantada pela Federação Nacional dos Atletas Profissionais de Futebol (FENAPAF). A partir daí, tanto CBF quanto a Comissão Nacional de Clubes prometeram olhar com mais carinho para as jogadoras que disputam o Campeonato Brasileiro da Série A e da Série B.
A ex-jogadora Thais Picarte, que fez parte da FENAPAF como representante do futebol feminino, afirmou à reportagem que pediu para que jogadoras fossem incluídas no grupo de jogadores que debatia a questão e, depois de insistir, conseguiu que algumas atletas participassem. No entanto, elas não conseguiram entrar na discussão, já que tudo o que era falado no grupo dizia respeito exclusivamente ao futebol masculino.
Na reunião da semana passada ficou decidido que os clubes das Séries A, B, C e D do futebol masculino dariam férias coletivas de 20 dias a todos os atletas, no período compreendido entre os dias 1 de abril e 20 de abril de 2020. Para o futebol feminino, porém, não há essa obrigatoriedade, apenas a recomendação de dar férias para as atletas, o que está sendo seguido pelos clubes que têm times femininos.
"Os clubes que as colocarem de férias agora, amparados na Medida Provisória 927, vão fazer o pagamento destas férias, seja em maio, seja no final do contrato de trabalho. E que caso algum clube venha a não cumprir com as obrigações dos contratos elas poderão buscar os seus direitos na Justiça do Trabalho, ou na Câmara Nacional de Resolução de Disputas (CNRD) da CBF a depender do que estiver estabelecido no contrato", esclarece Higor Maffei Belllini advogado trabalhista especializado em questões esportivas.
Situação das jogadoras
Atualmente, o mercado do futebol feminino se aqueceu bem e, com a obrigatoriedade dos times de camisa investirem na modalidade, as atletas têm um pouco mais de respaldo em contratos firmados com os clubes.
Das 52 equipes envolvidas nas séries A1 e A2 do Campeonato Brasileiro feminino, somente 20 delas já se profissionalizaram ou estão no caminho para isso. O que significa que menos da metade dos times mantêm contratos profissionais (CLT) com as jogadoras - assim, elas teriam amparo pela lei trabalhista em qualquer negociação que eventualmente precise envolver redução de salário ou antecipação de férias. Para a maioria das jogadoras, no entanto, a realidade é mais instável: elas recebem uma bolsa-auxílio de prefeituras, em alguns casos, ou ajuda de custo de clubes ou mesmo salários, mas sem registro formal de trabalho.
"Esse é o problema. A Lei Geral do Desporto prevê que profissional é aquele com carteira assinada. Logo, os demais seriam autônomos. Porém, entendo que a mesma lei diz que em desporto coletivo todos devem ser empregados. Então, em tese, não pode ter gente jogando profissionalmente sem carteira assinada. O artigo 28 da Lei Geral do Desporto diz que o atleta profissional tem sua atividade caracterizada por remuneração pactuada em contrato especial de trabalho desportivo", explica o juiz do trabalho Ricardo Miguel, do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (TRT-RJ).
Se nas conversas entre clubes, atletas e CBF já se falou em redução salarial para os jogadores, é importante levar em consideração o que isso poderia representar no contexto do futebol feminino. Entre os homens, a imensa maioria dos jogadores (cerca de 95%) ganha entre 1 e 5 salários mínimos. Mas existe uma elite na Série A que tem um padrão muito acima de vencimentos mensais (que pode variar entre R$ 100 mil, R$ 500 mil e até mesmo R$1 milhão).
No feminino, a elite se equipara aos 95% do futebol masculino. Ou seja, a média salarial das atletas da A1 (primeira divisão) não ultrapassa os 5 salários mínimos. Há algumas poucas exceções que chegam a 10 salários mínimos, mas a grande maioria recebe de mil a três mil reais por mês. Qualquer redução nesse contexto pode fazer uma enorme diferença no sustento da atleta e de seus familiares.
"O que está acontecendo é que o futebol feminino está abandonado, e relegado a segundo plano de novo, com clubes e sindicatos olhando a questão sob o ponto de vista do atleta profissional masculino. O importante é entender que uma mudança de contrato (CLT) se dá de duas formas, ou por lei ou por acordo. Não existe uma lei que permita essa redução salarial no Brasil, já que o art 503 da CLT, que fala em redução por força maior, não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988. Ou seja, é inconstitucional", explica Andrei Kampff, do blog Lei em Campo.
O que dizem os clubes
A reportagem entrou em contato com 18 clubes do futebol feminino para entender como eles estão tratando a situação das atletas em meio à incerteza sobre a data de retorno dos campeonatos. Por enquanto, todos garantem que estão cumprindo os contratos e os pagamentos - alguns já haviam atrasado os vencimentos delas, mas não por motivos decorrentes do novo coronavírus.
Entre os times de camisa, Corinthians, Santos, Internacional, Grêmio, Fluminense, Cruzeiro e Atlético-MG acataram a mesma sugestão feita na negociação com a CBF e os atletas para dar férias coletivas de 20 dias - as jogadoras dessas equipes entrarão em férias no dia 1º de abril e ficarão assim até o dia 20, podendo prorrogar esse período por mais 10 dias.
O Galo, inclusive, anunciou uma redução salarial de 25% para jogadores, comissão técnica e diretoria, mas reforçou que a medida não se aplica a trabalhadores que ganham até R$5 mil - que é o caso de todas as jogadoras do time profissional feminino.
Dos 16 times da A1 consultados pela reportagem, cinco disseram que dariam as férias coletivas em abril (de 20 dias), e sete afirmaram que, por enquanto, não haverá mudanças nos pagamentos, nem nos vínculos das atletas (Audax, Palmeiras, Vitória e Minas Icesp não responderam até o fechamento da matéria).
A percepção de muitas atletas é que as decisões tomadas nessas reuniões de jogadores, clubes e CBF não terão reflexos no futebol feminino. No entanto, a própria sugestão de férias coletivas, que foi acordada nesta reunião, está sendo aplicada também às equipes femininas - ainda que elas não tenham sido ouvidas no debate.
Três jogadoras de clubes do Norte, Nordeste e Sudeste que disputam o Brasileiro aceitaram falar com a reportagem. Uma delas afirmou que o teto salarial do clube que ela joga não ultrapassa os R$ 4 mil mensais, com a folha de pagamento batendo os R$ 60 mil/mês.
Outra relatou não querer ir para casa, pois está com medo de deixar o alojamento e ser dispensada. O maior temor de todas é que haja um retrocesso na modalidade no país, deixando de haver a obrigatoriedade de os clubes terem times femininos por conta dos custos. A CBF, porém, diz que isso não está na pauta e não vai acontecer.
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