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Globo impressionou TVs europeias e viu sonho ruir com derrota para Itália

Paolo Rossi, da Itália, comemora gol contra Brasil na Copa do Mundo de 1982 - AP - 1982
Paolo Rossi, da Itália, comemora gol contra Brasil na Copa do Mundo de 1982 Imagem: AP - 1982

Gabriel Vaquer

Colaboração para o UOL, em São Paulo

11/04/2020 04h00

O ano de 1982 marcaria alguns dos fatos mais importantes da história da televisão esportiva nacional. Pela primeira vez, uma emissora do país teria a exclusividade total na Copa do Mundo. Pela última vez, Luciano do Valle narraria a seleção brasileira na maior TV local. Pela primeira vez, Galvão Bueno faria uma grande cobertura no canal. É inegável: a Copa do Mundo de 1982 foi "a" Copa da Globo. A cobertura da emissora era do tamanho do futebol da seleção naquele ano. E a decepção com a eliminação precoce no 3 a 2 contra a Itália foi igualmente grande.

A exclusividade, ao bem da verdade, caiu no colo da Globo. Até o ano de 1978, os direitos de transmissão eram negociados pela Organização das Televisões Ibero-americanas (OTI), que adquiria os direitos e os repassava para os canais associados que estivessem em dia com seus pagamentos anuais. O problema é que, a partir de 1979, houve uma decisão: só exibirá a Copa do Mundo, chamada de "filé sem osso", quem exibisse os Jogos Olímpicos de Moscou, em 1980, chamado de "filé com osso".

Isso aconteceu porque, nos anos 70, quase todas as emissoras só exibiam a Copa do Mundo, sem ligar para os Jogos Olímpicos. Como a decisão da OTI não foi muito levada a sério, apenas a Globo fez os Jogos de Moscou. Assim, só ela poderia exibir a Copa.

"A imprensa brasileira começou a chamar a Globo de monopólio. Eu ia todo dia, dizia, explicava a situação, mas nunca adiantava. Na verdade, nós não queríamos ter a prioridade, a exclusividade. Porque ter a exclusividade era pagar sozinhos os direitos, que eram bastante caros na época", afirmou Armando Nogueira (1927-2010), diretor de Jornalismo da Globo, em um especial da Copa de 82 no projeto Memória Globo. De fato, o valor era bem alto para os padrões da época: 6 milhões de dólares, pagos diretamente para a OTI.

A Globo sabia o que tinha nas mãos. A seleção vinha de um 1981 espetacular, quando só havia perdido um jogo no ano, para o Uruguai, por 2 a 1, no Mundialito. Venceu grandes times, como a própria Espanha, a Alemanha Ocidental e a Inglaterra. Mais do que isso: encantava com um jogo ofensivo, envolvente e controlador da posse de bola.

A imponência que impressionou as TVs europeias

Na época, a Globo já era a Globo. Em 1982, mais do que a maior emissora de TV do país, a emissora carioca era "o veículo de comunicação número um do Brasil", como alardeava em um reclame publicitário da época. Por mais que a então TVS ameaçasse nos domingos com o seu dono, Silvio Santos, e com o popularesco "O Povo na TV" nas tardes de segunda a sexta, a emissora era dominante de 70% da verba publicitária do mercado na época.

Aproveitando-se da exclusividade e do fato de seu sinal chegar a todo o Brasil via satélite, a Globo não poupou esforços: foram US$ 8 milhões em investimento de logística, estrutura e preparo técnico. Foram mais de 20 toneladas de equipamentos enviadas do Brasil à Espanha para auxiliar na cobertura. Ao todo, quase 200 profissionais foram enviados, e mais 30 da Espanha foram contratados para ajudar na logística.

O estúdio, montado no centro de transmissão de televisão (IBC) em Madri, tinha dois andares. Todos os programas, incluindo o "Jornal Nacional", eram feitos diretamente da Espanha. Foi tudo tão imponente que outras emissoras de todo o mundo, como a Rai da Itália, e a BBC da Inglaterra, filmavam e ficavam boquiabertos. "Foi a primeira cobertura de impressionar o mundo", definiu Reginaldo Leme, então repórter da emissora. "A Globo praticamente montou uma emissora na Espanha. Para a época, era o que tinha no máximo", contou Telmo Zanini, um dos nomes fortes do Esporte da Globo até hoje.

A Globo montou um esquema para ter pelo menos um repórter em todas as 14 cidades-sedes. Um deles era um até então jovem jornalista, que fez história nas décadas seguintes. Com apenas 21 anos, Roberto Cabrini, hoje no SBT, foi enviado para a cobertura daquele Mundial. Em depoimento ao UOL Esporte, o profissional diz levar aquela cobertura dentro do seu coração.

"Eu tinha então apenas 21 anos e era o mais jovem repórter daquela cobertura, a revelação da época. Na Copa, cobri Espanha, Irlanda e Honduras, mas o sucesso das matérias com enfoques criativos foi tão grande que me escalaram para ser um dos que cobririam o Brasil depois", relembra o jornalista.

O tom ufanista que virou moda

A seleção sempre teve tratamento especial na Copa do Mundo. Como esquecer as narrações de Geraldo José de Almeida na Copa do Mundo de 1970? No entanto, em 1982, nasceu definitivamente o que viria a ser chamado de "ufanismo global". A cobertura passou a ser bastante focada no Brasil e na torcida. As equipes e os jogos rivais teriam menos destaque do que tiveram em outros Mundiais.

Muito desse ufanismo se deu, para alguns, pela troca de comentaristas em cima da hora. Então principal nome dos jogos da Globo, Gérson Canhotinha pediu demissão faltando três meses para o Mundial da Espanha por discordâncias com a direção de jornalismo. Os executivos o criticavam por ser longo demais nos seus comentários e exagerado nas críticas contra os pontos fracos do Brasil. Até mesmo o medo de avião do campeão de 1970 virou um empecilho.

No seu lugar, para manter o tom carioca das transmissões, já que Luciano do Valle era mais identificado com o público paulista, Márcio Guedes foi contratado, depois de passagem bem-sucedida na Band. Posteriormente, o jornalista faria carreira vitoriosa na extinta Manchete e na ESPN Brasil. Durante o Mundial, Guedes foi criticado por "puxar sardinha" para a seleção de Telê Santana, sem apontar alguns erros do time.

Quem sofreu mesmo foi Luciano do Valle. Tido como exagerado, o narrador foi detonado por um artigo escrito por Maria Helena Dutra, uma das mais importantes críticas de TV da história. Ácida e de estilo único, ela disse que o profissional da Globo não sabia encontrar um meio termo nas suas narrações. "Nos demais jogos, foi frio. Nos jogos do Brasil, apenas torceu", analisou.

No fim das contas, deu tudo certo. Os profissionais estavam na Espanha, e a Globo reinava absoluta. De acordo com o jornal O Globo de 27 de junho de 1982, o segundo jogo da seleção contra a Escócia marcou 88% de participação no número de televisões ligados em São Paulo - ou seja, de cada 100 TVs, 88 sintonizaram a Globo naquele momento. Era uma audiência digna de final de novela das 8, o principal produto da TV brasileira desde o fim dos anos 60.

A derrota que reduziu tudo para 10%

Encantando o mundo, a seleção de 82 impressionou também quem estava cobrindo a Copa do Mundo pela Globo. Roberto Cabrini detalha que havia um otimismo muito grande para que a equipe chegasse na final e vencesse o título que não vinha desde 1970.

"O Brasil era o time dos sonhos de todos", relembra Cabrini. Por isso, a derrota por 3 a 2 para a Itália, ocorrida em 5 de julho de 1982, foi tão sentida. O curioso é que não era para ser. A Globo foi a primeira TV no mundo a dizer que a Itália chegaria forte no Mundial. O motivo? Zezé Moreira, que era olheiro da seleção brasileira no Mundial. Encontrado por Galvão Bueno e Sérgio Noronha, Moreira disse aos seus amigos um fato que virou VT de Ernesto Paglia no "Jornal Nacional": a Azzurra vinha forte.

E veio. Nem mesmo a audiência recorde em São Paulo, de 93% dos televisores ligados, fez a Globo e seus profissionais não ficarem baqueados com a eliminação da seleção. Marco Antônio Rodrigues, na época editor de Esportes da emissora, resumiu a situação ao Memória Globo: "A gente não chorava só a derrota do Brasil; chorava a nossa cobertura". Roberto Cabrini volta a relembrar aquele dia com muito pesar e recorda que até jornalistas espanhóis ficaram tristes.

"O impacto foi colossal. Primeiro pela magia daquela seleção, o que fez que nós, jornalistas brasileiros, recebessem nos momentos seguintes à derrota uma série impressionante de demonstrações de carinho de jornalistas de outros países, encantados o time de Telê e agora desapontados com a inesperada perda do brilho intenso daquele mundial. Lembro-me de um jornalista espanhol me abraçar aos prantos no centro de TV em Madri. Em uma fração de segundo, a arte foi abatida pelo súbito oportunismo de Paolo Rossi, que até então vinha muito mal na Copa", contou Cabrini ao UOL Esporte.

O impacto nos números foi imediato. Apenas 10% dos profissionais enviados ficaram na Espanha após a eliminação do Brasil, como revela o próprio Cabrini. Mas pelo menos para o jovem repórter, o Mundial teve um bom fruto. "Para minha história pessoal, o trabalho naquele Mundial abriu as portas para me tornar um ano depois parte do time de correspondentes no escritório da Globo em Nova York com apenas 22 anos".

Luciano do Valle apresenta o Globo Esporte - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

O fim de Luciano do Valle na Globo

Ao fim do Mundial, Luciano do Valle decidiu colocar em prática uma ideia que já trabalhava fazia um ano e meio. Chateado com as acusações e críticas de bairrismo em transmissões de futebol, inclusive na Copa do Mundo, o narrador saiu da Globo em agosto de 1982. O "Seu Bolacha" fundou a empresa PromoAção para fazer ações esportivas e noticiar eventos. Inicialmente, a parceria foi com a TV Record.

Mas posteriormente, o projeto foi para a Band. Começava nessa ideia o conceito de canal do esporte. Para Cabrini, a saída de Luciano do Valle teve um impacto grande na época, mas foi algo visionário: "Foi um marco na história do jornalismo esportivo do país, por tudo que ele iria criar a partir daquele momento. Uma autêntica revolução no esporte e na TV. Um ato de coragem e ousadia digna dos grandes visionários".

Em entrevista para o Jornal do Brasil do dia 8 de agosto de 1982, Luciano do Valle foi muito claro. Lógico que tinha dissonâncias profissionais com a Globo, mas o fator pessoal e financeiro dos eventos da PromoAção pesou bastante.

"Minha saída da Globo, apesar de ter sido por razões profissionais, tem um caráter pessoal. Há um ano e oito meses tenho uma empresa de promoções esportivas e precisava trabalhar em uma emissora sem os grandes compromissos comerciais que a Globo tem para cobrir tais eventos. A Record topou essa parada: o negócio é compensador do ponto de vista financeiro. Por isso, saio da Globo", afirmou Luciano, à época.

No fim, o que prometia ser uma cobertura apoteótica terminou de forma melancólica para a Globo, com mudança de rumos significativas no horizonte dos anos que vieram a seguir. Uma delas, facilitada pela saída de Luciano, foi o crescimento de Galvão Bueno até o posto de número 1 do esporte da casa.

Jogadores da seleção de 1982 fazem campanha contra o coronavírus

UOL Esporte
Errata: este conteúdo foi atualizado
O nome da empresa de marketing esportivo de Luciano do Valle era PromoAção, não Promoção.
Os direitos eram negociados pela OTI até 1978, não 1998 como escrito anteriormente.