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Brasileiro rodou 11 países, superou oferta falsa e treinou filho de Ronaldo

Fernando Sales ao lado do logo do Ulsan Hyundai, clube em que ele trabalha atualmente - Arquivo pessoal
Fernando Sales ao lado do logo do Ulsan Hyundai, clube em que ele trabalha atualmente Imagem: Arquivo pessoal

Eder Traskini

Colaboração para o UOL, em Santos

29/04/2020 04h00

Espanha, Polônia, Inglaterra, Catar, Laos, Mianmar, Indonésia, Tailândia, Macau, China e Coreia do Sul. Aos 40 anos, o técnico Fernando Sales já se aventurou em todos esses países, alguns deles bastante desconhecidos no Brasil. Estruturas precárias, homens de "saia", terremotos, filhos de jogadores do Real Madrid e títulos marcaram a carreira do brasileiro, que hoje trabalha no gigante coreano Ulsan Hyundai.

Sales jogou futebol profissionalmente, mas decidiu pendurar as chuteiras ainda cedo. Sair do futebol, no entanto, nunca passou pela cabeça dele.

"Eu não me via como jogador de destaque no futuro, estava nas andanças da bola indo para o América de Morrinhos-GO, mas chegando lá vi que não seria nada do que disseram. Resolvi colocar um ponto final perto dos 23 anos e buscar meios de continuar no futebol, pois sempre vivi futebol desde novo, então era tudo que eu queria, mas agora como treinador", contou Sales, em entrevista ao UOL Esporte.

Sua carreira fora das quatro linhas teve início no Villa Nova-MG, onde Sales trabalhou como preparador físico da categoria juvenil e auxiliar técnico. Foram dois anos no clube, sempre dando um jeito de buscar novas oportunidades.

"Eu não tinha internet, então ficava nas lan houses mandando currículo. Um dia me responderam de Huelva (ESP) dizendo para eu ir. Paguei a passagem e fui, mas chegando lá o clube não existia. Tive que tomar uma decisão: ou voltava pro Brasil ou arriscava e ficava na Espanha", relembrou.

Ele conseguiu, então, um emprego como assistente de Jorge Vilda, atual técnico da seleção feminina da Espanha, na categoria sub-15 do CD Canillas, clube em que jogavam os filhos dos jogadores do Real Madrid. Lá, trabalhou com descendentes de craques como Zidane e Ronaldo.

Na Espanha, o brasileiro chegou a fazer cursos com técnico renomados, mas não foi autorizado a tirar a licença da UEFA por não cumprir alguns requisitos. Ele precisou ir à Polônia para conseguir autorização para tirar as licenças.

"Eu consegui um trabalho como treinador do sub-17 do KS Orzel. A partir daí, consegui fazer o primeiro curso na Inglaterra e estagiei no Legia Varsóvia, maior clube do país. De lá, fiz estágios também no Catar, com técnicos conhecidos no Brasil como Diego Aguirre e Silas", lembra.

A aventura asiática, então, se iniciou. Sales recebeu o convite de um amigo que tinha feito na Polônia para trabalhar no Lanexang United, de um pequeno país no sudeste da Ásia chamado Laos. Lá, o brasileiro foi assistente do clube e treinador principal da filial do time, com ajuda de um técnico local por conta do idioma.

O primeiro trabalho como treinador principal de um clube profissional foi também um dos melhores da carreira. Sales assumiu o Manaw Myay, de Mianmar, e levantou o primeiro caneco.

"Eles tinham acabado de cair para a segunda divisão. Era um clube completamente sem estrutura e sem verba, mas fomos agraciados com o título. Subimos, mas por questões financeiras a equipe decidiu não disputar o torneio no ano seguinte. Quase saí sem receber, mas acabaram pagando tudo", afirmou.

Sales foi para a Tailândia e conseguiu uma vaga no Yasothon FC, clube da quarta divisão do país. O brasileiro fazia boa campanha à frente do clube e chamou atenção do Persijap Jepara, time da segunda divisão da Indonésia. Ele deixou o Yasothon na segunda colocação do torneio e rumou para o novo desafio, que se mostrou uma decepção.

"Chegando lá prometeram um salário, casa, carro, e eu praticamente não recebi. Os jogadores já estavam sem receber há meses e até começamos bem, mas esses problemas tiraram a motivação dos atletas. Existia cobrança, o time tinha uma torcida enorme, mas não pagavam e isso minava", lembra Sales, que chegou a ficar cinco meses sem receber na época.

O brasileiro foi, então, para Macau, onde trabalhou em um clube chamado CPK. De lá, Sales recebeu um convite do Kasersart FC, da segunda divisão da Tailândia, com a missão de salvar o clube do rebaixamento.

"Conseguimos a permanência na segunda divisão, na Tailândia as duas ligas são fortes. No entanto, o clube estava em época de eleição e não renovou o contrato. Para pagar minhas contas, consegui um trabalho em um clube sub-23 da China. O presidente da China tem ambição de fazer o país campeão do mundo até 2030 e investe bastante na base", conta.

O trabalho na China abriu a maior porta para o treinador brasileiro até aqui: ele acertou com o Ulsan Hyundai, da Coreia da Sul, um dos maiores clubes da Ásia e que disputa a Liga dos Campeões do continente. Sales é auxiliar no sub-20, mas comanda toda a preparação da equipe.

"Não sou o treinador principal mais por uma questão cultural. Logo antes da parada por causa do coronavírus, recebi um convite do Rayong FC, mas esbarrou na questão de não contar com um empresário. Currículo no futebol não acrescenta muito, você tem que ter agente. Eles acabaram fechando com o Arthur Bernardes. Seria um salto enorme na carreira: sozinho sair da quarta divisão para a primeira em menos de três anos", comenta.

Dificuldades e call center

"Já tive que sair de casa por questão de segurança em Mianmar por causa de terremoto. Questão estrutural em Mianmar e Indonésia foi bem complicado. Alimentação totalmente diferente, embora consiga encontrar coisas parecidas para comer, mas se for a fundo na cultura você encontra coisas que você nem imagina, como comer inseto. Nunca provei, mas já vi no dia a dia. A questão religiosa é bem diferente também. Em Mianmar os homens usam uma espécie de saia para ir rezar. Diferente, mas bem enriquecedor também"

Trabalhar em países com pouca tradição no futebol já seria uma dificuldade por si só, mas tudo isso alinhado aos problemas estruturais e de língua tornaram a tarefa ainda mais desafiadora.

"A maior dificuldade é o idioma. Nos meus primeiros meses na Polônia eu queria me jogar da janela. Hoje eu já falo fluente, mas falar o tailandês e o coreano é impossível se você não estudar com afinco", conta.

Se falar o polonês era difícil, trabalhar em um emprego atendendo o público parece impossível. Mas não foi para Fernando Sales. O técnico brasileiro, que ainda tirava suas licenças, da UEFA chegou a trabalhar em um call center na Polônia por dois anos.