Técnicos da Taça das Favelas assumem 'nova função' em meio à pandemia
Escalação, esquema tático e a forma de atuação na próxima partida. Nesta época do ano, essas seriam as preocupações dos técnicos dos times participantes da Taça das Favelas. Porém, com a pandemia de coronavírus e o adiamento da competição, os treinadores têm assumido uma nova função e ao serem o elo entre as comunidades e a Central Única das Favelas, a Cufa, que tem recolhido doações para tais localidades.
Neste período de cuidados para evitar o contágio da Covid-19, os comandantes das equipes são os responsáveis por levar mantimentos e materiais de limpeza às favelas, locais apontados como vulneráveis por inúmeros motivos.
A Taça das Favelas, competição de futebol que conta com equipes de diversas comunidades, reúne uma média de 600 mil pessoas em 12 Estados do Brasil, e a coordenação aguarda as decisões das autoridades para saber se será possível uma retomada ainda este ano.
"Nós estaríamos nos preparando para o jogo, porque já teria começado a Taça. Mas a gente continua sendo liderança e estamos batalhando para fazer com que as famílias da favela tenham um dia melhor. Tem gente em nossa favela que não tem como trabalhar, porque trabalhava vendendo bala, tinha uma barraquinha na esquina da rua. A batalha tem sido grande e difícil, mas, por outro lado, é gratificante o olhar de agradecimento de uma pessoa que recebe um alimento ou até um simples sabonete", ressalta Monique de Oliveira, técnica do Curral das Éguas, comunidade em Magalhães Bastos (zona oeste do Rio), campeã do torneio feminino no ano passado.
Segundo dados do "Voz das Comunidades", até a noite da última segunda (18), foram confirmados 487 casos nas favelas do Rio, com 168 mortes.
"Durante a competição, enquanto treinadora do time, eu teria de montar o treino, avisar às pessoas sobre os jogos, e a responsabilidade seria dentro de campo. Agora, estamos lidando com vidas, uma forma desse vírus não se proliferar", completa Monique.
A conscientização também tem sido um dos focos dos treinadores. Passar informações não só aos jogadores, mas também aos moradores da região, é um ponto aliado nesta luta contra a Covid-19.
"Ao mesmo tempo que há a satisfação em ajudar, é um momento triste. Estamos vendo muita pessoas prejudicadas por causa do coronavírus, deste momento que estamos atravessando. Além das doações, todo dia estamos trabalhando essa questão da conscientização, seja pessoalmente ou por redes sociais. Estamos sempre pedindo para respeitar as medidas, usas máscara, respeitar o distanciamento. É um trabalho constante", indica Orlando Silva, técnico do Parque Santo Antônio, equipe campeã no masculino no ano passado. A área, que fica que na zona sul de São Paulo, conta com mais de 300 favelas.
Orlando, por outro lado, ressalta que o contato pessoal faz falta para que se possa transmitir uma melhor orientação aos mais jovens.
"Temos de manter algumas medidas neste momento de pandemia, é por um bem maior, mas, ao mesmo tempo, não estar perto desses jovens, podendo orientar... A gente se fala pelo telefone e essas coisas, mas é mais complicado transmitir algumas mensagens. Tem região que está tendo baile funk, por exemplo. O contato olho no olho e a conversa são muito importantes", ressaltou.
Mario Love, coordenador de esportes da Cufa e liderança da Vila Kennedy (zona oeste do Rio), indica que o trabalho de campo logo cedo ajudou neste trabalho junto às comunidades.
"Nós [da Cufa] entendemos muito rápido que as favelas seriam drasticamente afetadas com esse momento de pandemia. O primeiro processo que fizemos foi de irmos a campo. Identificamos que uma porcentagem muito alta estava com a renda afetada, sem emprego, sem alimentos. Assim, começamos a trilhar soluções para que esses territórios fossem menos afetados. Fechamos parceria com empresas para doações de mantimentos e utensílios de higiene pessoal" disse ele, que é primo do jogador Vagner Love, hoje no Corinthians.
Destaque de 2019 perdeu a mãe
Na última semana, Debora Barcellos, mãe de Ronald Barcellos, destaque da campanha vitoriosa do Gogó da Ema no ano passado, morreu após estar internada com sintomas da Covid-19.
Ronald, que foi eleito o melhor do torneio, assinou contrato com o Flamengo dias depois da final. A comunidade fica em Belford Roxo, município da Baixada Fluminense.
"Recebi [essa notícia] com um impacto muito grande. Não pode ser mais um número. Um jovem perdeu a principal referência, uma mãe que poderia ter uma vida longa, ver o filho brilhar. Foi com um pesar absurdo que recebi essa notícia. Não consigo mensurar a dor desse jovem. A favela vive tanta adversidade... Por mais que nós soubéssemos que iríamos ser atingidos, sempre pensamos que vamos sobreviver, que tudo vai passar. A gente vive na adversidade, mas acontece algo assim e o chão se abre", disse Mário Love, que completou:
"É um momento de ressignificar muitas coisas, identificar os principais valores. Não pode uma vida se perder e não ter responsável por isso, se é que pode falar assim. Queria muito que o poder público olhasse isso. Mas estamos na missão de evitar que outros jovens percam os pais e as respectivas vidas."
Vinícius da Silva, técnico do Gogó da Ema, indicou que, segundo o próprio Ronald, a mãe tinha demonstrado melhora pouco antes de se tornar uma das vítimas fatais da Covid-19.
"Um dia antes [da morte], tinha mandado uma mensagem ao Ronald perguntando como estava a mãe, e ele disse que tinha apresentado melhora. No dia seguinte, você recebe uma ligação com essa notícia. É muito triste! Uma moça nova, podendo ver um futuro brilhante do filho, e morre devido a essa doença. Torço para que Deus dê muita sabedoria a ele porque, quando se perde uma mãe, se perde muito."
No fim de março, o UOL Esporte mostrou que, por conta da pandemia e paralisação das atividades do Flamengo, Ronald estava mantendo a forma no campo do Gogó da Ema. Na ocasião, Debora conversou com a reportagem e alertou sobre os cuidados que vinha tendo por conta do coronavírus.
Treinos em casa
Assim como nos clubes com equipes profissionais, os jogadores dos times da Taça das Favelas também estão buscando realizar treinamentos em casa durante a pandemia.
"Fiz um grupo e pedi que elas postassem, três vezes na semana, uma sessão de exercício. Eu mesmo comecei a fazer treinos com coisas, tipo subir escada e descer escada, exercícios com cadeira, polichinelo, abdominal... Coisas que conseguimos fazer em casa. A gente está tentando. Até porque, meu time é um pouco mais velho, então, temos de nos manter em movimento para não deixar cair. Somos campeãs, né? Temos de defender o título", explicou, com bom humor, Monique, técnica do Curral das Éguas.
O caminho foi parecido ao adotado por Orlando com os atletas do Parque Santo Antônio.
"Quem está mais à frente dessa parte é o nosso professor Rogerinho. Nós temos colocado alguns desafios no grupo para que eles possam fazer e manter, em parte, as atividades".
Sem previsão
Ainda não há uma perspectiva em relação a quando a bola poderá rolar na Taça das Favelas. A competição foi adiada por conta da pandemia e, como outros eventos esportivos, aguarda decisão das autoridades para saber se haverá tempo hábil de retorno ainda este ano.
"Desde que começou isso tudo, ainda não encontrei forças e tempo para falar de futebol. São milhares de mortes por causa de um vírus, é algo terrível. Tudo vai depender das respostas das autoridades e datas possíveis. Se houver tempo para planejarmos tudo para esse ano ainda, tudo bem. Se não [houver tempo]... O foco, hoje, é a vida", apontou Mário Love.
O coordenador de esportes da Cufa ressaltou a importância dos esportes nas comunidades mais carentes:
"O esporte é uma ferramenta pedagógica de fácil penetração e deveria ser mais utilizado não apenas pelas entidades, mas também pelas Secretarias, para se ter um bom relacionamento com a favela. Eles [membro das Taças das Favelas] estarem ajudando neste momento mostra bem isso."
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