Ex-juiz Márcio Chagas diz que foi demitido por falar de racismo; RBS nega
"Cara, isso te incomoda? Se tu quiser sair da transmissão pode ficar à vontade."
Era a voz do meu então chefe, diretor do departamento de esportes da RBS, afiliada da Globo no Rio Grande do Sul. Ouvi essa mensagem no ponto eletrônico, durante a transmissão, enquanto uma torcedora do Juventude a menos de dois metros da cabine, me ofendia com o dedo em riste.
Jogavam Juventude e Internacional pelo Campeonato Gaúcho de 2019.
"Tu tá vendo o que ele tá fazendo, seu negro de merda? Esse pau no c* não marcou um pênalti claro. Ele tá roubando, porr*. Ele tá prejudicando o trabalho do meu marido. Maldita Princesa Isabel, negro sujo."
Enquanto o jogo acontecia, eu tentava me concentrar para continuar trabalhando com todas as adversidades que se apresentavam mais uma vez naquele estádio.
Anos antes, no mesmo Alfredo Jaconi, dois torcedores tentaram invadir a cabine de transmissão para bater em mim.
Para amenizar o clima hostil e violento daqueles torcedores racistas, havia um acordo entre o clube e a Globo para que os familiares dos jogadores ficassem nas primeiras fileiras abaixo da cabine, como se fossem um escudo para nos proteger de eventuais agressões.
Aquela senhora era provavelmente a mulher de um dos jogadores em campo.
"Tu é um morto de fome, favelado, vou quebrar tua cara para tu aprender qual é o teu lugar", ela disse.
Durante o intervalo o clima ficou tenso. Dois seguranças ficaram de olho nos torcedores, pois nós, comentaristas e narrador, demos as costas ao público para poder comentar os melhores momentos olhando para as câmeras.
"Olha bem o que tu vai falar aí, seu negro filho da put*. Hoje as bananas vão entrar pelo teu c* e não no teu carro".
Faz um ano, mas ainda me lembro bem das palavras.
Havia uma referência constante a um incidente que aconteceu em 2014 na cidade de Bento Gonçalves que acabou encerrando a minha carreira de árbitro aos 37 anos. Lá, depois de um jogo, amassaram meu carro a pontapés e colocaram bananas no capô e no cano de escapamento.
Dias depois de novamente sofrer ofensas racistas no trabalho, acabei dando uma entrevista ao UOL Esporte e relatei episódios de racismo que vivi desde o tempo de árbitro e também depois, quando virei comentarista. O meu relato teve um alcance muito importante e abriu uma discussão sobre os casos de racismo no futebol.
No dia em que essa matéria foi publicada, recebi inúmeras mensagens de solidariedade e elogios pela coragem de falar novamente sobre um tema que é tão mascarado e negado no Brasil.
Porém, também fui chamado pelo meu então chefe na emissora em que trabalhava para dar explicações sobre o conteúdo da matéria. Ele não tinha gostado de meu relato ter saído em outro veículo de comunicação.
Reproduzo de memória o diálogo que tivemos.
"Por que essa matéria não saiu por aqui?", ele perguntou.
"Quando houve interesse para falar sobre esse assunto por aqui?", respondi.
"Quer dizer que não somos parceiros, então?"
"Parceiros para tratar de amenidades, sim!"
"Mas esse assunto tu quem tem que propor, quem passa por isso é tu."
"Quem passa por isso sou eu, e vocês assistem calados e nem as imagens me disponibilizam para eu poder denunciar."
Eles tinham feito as imagens da agressora, mas quando eu as pedi informando que queria usá-las na minha denúncia ao Ministério Público, disseram que tinham apagado.
"Mas tu te ofende com isso mesmo?", meu superior continuou.
"Me ofendo e imaginei que vocês também pudessem se ofender, mas pelo visto tanto faz."
"Bom, cara, não gostei do que aconteceu. A matéria ficou boa, mas ter saído por uma concorrente é traição."
"Tua preocupação é o fato de ter saído pela concorrência ou como eu me sinto?"
"Trabalho pelo produto que é passado ao público e não com essas questões de vocês. Se tu não me ajudar, eu não tenho o que fazer."
A partir do relato publicado no UOL Esporte, meu espaço na Globo foi se reduzindo. O clima ficou estremecido no ambiente de trabalho.
Em novembro, após participar de uma edição do programa "Redação Sportv", na semana da Consciência Negra, fui chamado novamente para uma reunião em Porto Alegre.
O meu então chefe me disse:
"Cara, estou pensando em te desligar no final do Campeonato Gaúcho, mas não quero que pense que seja por ser negro. Teus posicionamentos estão causando muitos desgastes."
O Campeonato Gaúcho não precisou encerrar. Veio a pandemia e, com ela, meu desligamento, através de um telefonema.
Tem uma frase do Martin Luther King que cabe muito bem nesse contexto: "O que me preocupa não são os gritos dos ruins, mas sim o silêncio dos bons."
RBS afirma que sempre repudiou agressões contra Márcio
Procurada, a RBS, afiliada da Globo no Rio Grande do Sul, onde Chagas trabalhou por 5 anos e 11 meses, afirmou que "denuncia regularmente episódios discriminatórios em seus espaços editoriais" e "apoia a formação e o desenvolvimento de grupos internos de diversidade de gênero, sexual e racial".
O grupo disse que a saída de Márcio Chagas, em abril, "ocorreu em meio a uma reestruturação da área de esportes". E que ofereceu ajuda jurídica quando o profissional foi vítima de insultos racistas.
Leia a nota da RBS
O Grupo RBS defende e respeita a diversidade, seja ela de opinião, costumes, raça, credo, orientação sexual, e repudia de forma veemente qualquer tipo de preconceito. A empresa não só denuncia regularmente episódios discriminatórios em seus espaços editoriais como também apoia a formação e o desenvolvimento de grupos internos de diversidade de gênero, sexual e racial.
No caso específico do ex-juiz Márcio Chagas, sua saída ocorreu em meio a uma reestruturação da área de esportes que incluiu a movimentação de outros profissionais. O contato foi telefônico em razão do distanciamento social exigido durante a pandemia de coronavírus.
A exemplo de qualquer de seus profissionais que sofrem ameaças ou agressões durante sua atividade, a empresa ofereceu apoio jurídico ao comentarista em razão dos indignos ataques sofridos por ele, que preferiu recorrer a advogado próprio que já o assistia em processos anteriores à atividade na RBS.
Ressalte-se que as agressões sofridas por Márcio Chagas sempre tiveram amplo destaque e repúdio nos veículos da RBS, como demonstram alguns exemplos relacionados abaixo:
https://gauchazh.clicrbs.com.br/opiniao/noticia/2020/07/marcio-chagas-carta-aos-meus-filhos-ckcm28x69002s0147g0ldo8d4.html
https://gauchazh.clicrbs.com.br/esportes/noticia/2019/12/ex-arbitro-marcio-chagas-da-silva-e-vitima-de-injuria-racial-durante-jogo-em-ajuricaba-ck47rdz9b022e01qhdwilukvk.html
https://gauchazh.clicrbs.com.br/opiniao/noticia/2019/11/marcio-chagas-os-arbitros-nao-sabem-o-que-realmente-e-racismo-ck2unbqdh00b001pnr35545tj.html
https://gauchazh.clicrbs.com.br/esportes/noticia/2014/03/arbitro-marcio-chagas-da-silva-e-vitima-de-racismo-apos-partida-em-bento-goncalves-cj5viv8yb0dfkxbj02ipgrsqc.html
https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/diogo-olivier/noticia/2019/05/o-desabafo-do-marcio-chagas-e-o-conveniente-incomodo-branco-na-hora-de-falar-de-racismo-cjv4e3s3l001a01pt4294clki.html
https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2014/03/vitima-de-racismo-marcio-chagas-se-emociona-e-desabafa-eu-nao-gostaria-que-meu-filho-passasse-por-isso-4438429.html
https://gauchazh.clicrbs.com.br/esportes/noticia/2014/07/Sentimento-e-de-impunidade-diz-Marcio-Chagas-sobre-encerramento-de-inquerito-4543604.html
https://gauchazh.clicrbs.com.br/esportes/gauchao/noticia/2018/02/esportivo-e-condenado-por-caso-de-injuria-racial-e-tera-de-indenizar-marcio-chagas-cjdboig86078g01ke3kr7pcjs.html
https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2014/03/o-pais-inteiro-quer-saber-de-marcio-chagas-a-solidariedade-e-total-estou-mais-forte-4440074.html
https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2019/12/15/ex-arbitro-marcio-chagas-da-silva-e-vitima-de-injuria-racial-durante-jogo-em-ajuricaba.ghtml
https://www.youtube.com/watch?v=-NSnJ2EtLJw
https://globoplay.globo.com/v/8102479/
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