Tite relembra calvário que afetou lua de mel e o aposentou no Guarani
A cena de um eloquente Tite, sempre trajado com elegância, dando entrevista coletiva como técnico da seleção brasileira pode trair o torcedor mais jovem. Há pouco mais de 30 anos, o carismático comandante desfilava seu "titês" dentro das quatro linhas. Volante de boa técnica, Adenor Bacchi teve no final da década de 80 sua maior oportunidade como jogador no então poderoso Guarani, mas, por uma fatalidade, viveu em Campinas o último capítulo de sua carreira, antes de completar 30 anos.
Depois de passagens por Caxias, Esportivo e Portuguesa, Tite chegou ao Bugre em 1986, aos 25 anos, para viver o auge de sua carreira em um time pelo qual passaram Tosin, Vagner Mancini, Neto e João Paulo. A trajetória, entretanto, foi brutalmente interrompida por uma lesão no joelho que virou problema crônico. Mesmo assim, o hoje consagrado treinador conseguiu deixar uma marca nos companheiros da época.
Lesão logo no início da passagem virou problema crônico
Tite sofreu a primeira lesão no joelho logo no início de sua trajetória no Guarani. Mais precisamente, na segunda partida, em um momento que o marcou até hoje. "Foi o segundo jogo no Guarani de Campinas, contra o Santo André. A minha estreia tinha sido no jogo contra o Santos na Vila Belmiro, e no segundo jogo, em casa, contra o Santo André eu abri a perna demais e deixei a perna esquerda girar. Sei até o jogador que participava da ação, o Rota. Quando eu girei, senti uma agulhada, uma fisgada, balançou", conta, em entrevista ao UOL Esporte.
Tite não entendeu exatamente o tinha acontecido naquele momento, e tentou voltar a campo depois de receber atendimento. Foi ali que percebeu que tinha sofrido alguma lesão mais séria. "Eu não sabia exatamente o que era, saí do gramado, tive o atendimento do Dr. Cezaroni [José César Cezaroni], e retornei pra dentro do campo. Quando eu fiz o giro novamente, senti uma agulhada, caí e saí definitivamente".
A lesão se transformou em um problema crônico: embora Tite tenha conseguido fazer 40 jogos com a camisa verde (fez um gol), foram três cirurgias em quatro anos e muitas idas e vindas. Por causa dos problemas médicos, encerrou sua carreira com apenas 27 anos, em 1989.
"Tem toda uma história, uma novela em relação a isso. Foram momentos muito difíceis da minha carreira, profissionalmente e pessoalmente também. Eu tive a lesão, e não rompeu totalmente o ligamento cruzado anterior. Fiz uma consulta médica e uma tentativa de fortalecer a musculatura para poder continuar jogando com aquele rompimento parcial. Fiz um reforço muscular muito forte, me lembro que no primeiro recreativo que teve, os atletas pediram 'Tite, vamos embora, vamos brincar, vamos para o recreativo", lembra.
"Antes de um jogo, no sábado, eu fiz o recreativo e fiz o mesmo movimento de giro. De novo o mesmo problema. Fui a São Paulo [capital], me consultei com o Dr. Marco Amatuzzi [Dr. Marcos Martins Amatuzzi, ortopedista]. Na época, eu acho que ele era médico do Santos também. Ele fez o exame e eu senti. Ele disse: 'Esse ligamento cruzado está rompido, tu vais precisar operar e isso aí é de sete a 12 meses de recuperação após a cirurgia'. Fiquei mais um ano parado me recuperando."
A partir daí, Tite viveu um calvário, e teve até a lua de mel afetada pelas lesões. O treinador da seleção relembra que, na época, os tratamentos eram bem menos avançados do que atualmente. "É muito difícil falar de todas as etapas construídas, o processo de recuperação era diferente. Lembro que eu fiquei 30 ou 45 dias de gesso pela operação, e depois eu usei um aparelho de metal que vinha da coxa, do quadril até o sapato. Tinha que acoplar ou um sapato ou um tênis para que ele não pudesse mexer, e eu andava com aquela pseudo-perna mecânica", conta.
"Fazia exercícios o tanto quanto possíveis, de bicicleta ergométrica, de algum peso com uma angulação que pudesse permitir, com isométricos, para que pudesse, aos poucos, recuperar. Passa tudo na cabeça às vezes, conversando com a Rose, minha esposa. A gente estava recém-casados, a minha lua de mel na verdade foi de quatro dias e, na sequência, fui operado no hospital em São Paulo. Passei a lua de mel com operação e tempo de recuperação. Uma coisa eu te digo: eu precisei resiliência, de muita força interior, de muita fé para poder superar isso esse problema."
Companheiros e amigos lembram do sofrimento e falam até em maldição
A luta de Tite contra as lesões no joelho foi acompanhada de perto pelos companheiros de Guarani. João Paulo acabou ganhando espaço no time com a saída do hoje treinador da seleção. "Me lembro bem, inclusive, eu entrei no lugar dele, acho que foi em 84/85. Ele teve a contusão no joelho e ficou alguns meses parado. Eu entrei, lá em Araras, contra o União São João. Ele ficou uns jogos parado, e eu consegui me firmar como titular".
"É difícil, até na época eu me recordo que o Mauro Silva, que também fazia parte do elenco, tinha feito uma cirurgia de púbis. A gente falava mais com eles no departamento médico, porque vieram de cirurgia. É difícil você conviver assim com essas lesões, porque, no meu modo de ver, isso é o que mais prejudica a carreira de um atleta profissional", lembra Pedrinho Maradona.
As lesões de Tite e Mauro Silva mostram uma tendência que as contusões tinham de atingir, especificamente, os volantes do Guarani. O ex-volante Tosin revela que, para alguns, a camisa 5 do clube era amaldiçoada.
"O problema no Guarani começou desde a época do Éderson. Quando eu cheguei lá, em 82, com 15 anos, todo mundo falava que a camisa 5 do Guarani era maldita. O Éderson machucou e não conseguiu voltar, eu machuquei, mas consegui voltar. O Tite machucava, voltava e machucava de novo, eu voltei, machuquei de novo. A camisa 5 do Guarani era complicada, todo mundo falava que era meio maldita. O Tite vivia dentro do departamento médico, eu passei muito tempo também, e ele vivia muito dentro da sala de musculação."
Deixou Campinas para fazer cirurgia e recebeu arma em troca de móveis
Quem vê a figura quase sempre serena de Tite jamais imaginaria que ele empunhou alguma vez uma arma de fogo. Quando deixou Campinas para fazer uma das cirurgias no joelho, o atual técnico da seleção brasileira recebeu uma pistola do companheiro Tosin, como pagamento por doar a ele todos os móveis de sua casa.
"Ele teve que ir embora por causa da cirurgia, e deixou todos os móveis da casa dele. Eu gostava de arma, e passei uma arma pra ele na época, eu dei uma Colt 45, e o Tite deu todos os móveis da casa dele. Ele não tinha como levar lá para o Sul, por isso falou: 'Dá essa arma pra mim'. Eu troquei, nem sei o que o Tite fez com a arma, eu só sei que ele falou: 'Dá aí que eu te dou os móveis', e eu dei."
Tosin nem se lembra do valor da arma ou dos móveis, e não sabe (e nem se importa) se saiu ganhando ou perdendo na troca.
"O Tite era muito meu amigo também, eu acho que ele fez pela amizade. Até hoje tem aqui na casa da minha mãe móveis que eram do Tite. Alguns já estragaram, mas a minha mãe tem dois jogos de sofá aqui que ela manda arrumar sempre e fica usando, esses dois sofás eram do Tite, de madeira antiga."
Bom com as palavras e sinais de que seria um bom técnico
Os ex-companheiros de Tite já viam nele, na década de 80, algumas características que o levariam a ser o treinador de hoje: gosto pelos treinos, facilidade com as palavras e muita persistência.
"O Tite gostava de treinar, não gostava de ficar sem fazer nada, por isso esse problema no joelho foi difícil, pra ele foi muito complicado, não é como hoje. Na nossa época, machucou o joelho é um ano para se recuperar, mas o Tite era uma pessoa muito inteligente, sabia conversar, falava bem, então ele conseguiu se manter com isso aí", lembra João Paulo.
Tosin se recorda que Tite, além de treinar e jogar durante o dia, estudava à noite, e sempre esteve entre os mais dedicados do grupo.
"Na época que o Tite estava lá, éramos eu, o Boiadeiro e o Barbieri, e aí era complicado pro Tite jogar também. Eram três jogadores que estavam em alto nível, mas só que quando o Tite entrava, vixe Maria, ele dava conta do recado. Era daqueles caras que davam carrinhos de longe, chegavam junto, ele era fera mesmo, estilo do Sul. Aguerrido, treinava para caramba. À noite, ele e a mulher dele iam na faculdade. Por isso, tenho certeza que o Tite merece tudo isso o que está passando."
Carinho pelo Guarani e boas memórias
Apesar de ter vivido em Campinas o fim precoce de sua carreira, Tite guarda um carinho especial pelo Guarani, tanto pela forma como foi tratado com as lesões, como por ter sido parte de dois vice-campeonatos brasileiros, em 86 e 87.
"Nós na campanha geral [em 86] tínhamos três, quatro pontos a mais que o São Paulo, de Silas, Pita, Careca, Muller, Dario Pereira, Oscar, Gilmar, Nelsinho, Zé Teodoro e Bernardo. Era uma pu... de uma equipe, e nós tínhamos na campanha geral três, quatro pontos mais. Jogamos o primeiro jogo e empatamos, fomos jogar no Brinco de Ouro o jogo decisivo. Uma equipe que tinha Sergio Nery, que tinha Ricardo Rocha, que tinha Gilson Jader, Zé Mario, Tosin, Tite, Boiadeiro, Chiquinho Carioca, Catatau, Evair, João Paulo era uma equipe que tinha uma qualificação muito grande", conta o técnico da seleção.
"Mais do que qualidade, ela tinha sintonia pessoal, tinha um espirito de equipe muito forte, era amiga, gostava de estar junto, gostava das relações pessoais, aprendeu a ter amizade e aprendeu a respeitar. Ela tinha uma marca, uma atmosfera, uma alma muito forte."
Tite também guarda boas lembranças da diretoria do departamento médico do Guarani, e diz ter sempre recebido apoio nos momentos difíceis em que lutou contra as lesões, algo que valoriza até hoje.
"Eu sou muito grato ao Guarani, em termos diretivos, ao presidente Leonel Martins de Oliveira, Ricardo Chuff que eram os dirigentes, o Frias que era o fisioterapeuta, o professor Pedro Pires de Toledo que era o preparador físico. Lembro que o Carlos Alberto Silva, que foi o técnico, disse durante minha primeira recuperação [fomos jogar em Sorocaba]: 'tu estás concentrado, eu sei que tu estás machucado, mas eu quero que tu venhas com a equipe toda para lá porque é uma peça importante'. Me valorizando, o lado humano. Foi uma forma humana, emblemática de valorização do profissional, me levar juntamente com a equipe. Eu tenho uma gratidão muito grande por essas pessoas que representavam o Guarani na época que me deram tanto apoio."
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