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Campeã da Libertadores treinou times masculinos e acumula casos de machismo

Lindsay Camila, treinadora da Ferroviária e primeira técnica campeã da Libertadores - Divulgação/Conmebol
Lindsay Camila, treinadora da Ferroviária e primeira técnica campeã da Libertadores Imagem: Divulgação/Conmebol

Thiago Braga

Colaboração para o UOL, de São Paulo

24/03/2021 04h00

Sem conseguir dormir direito há uma semana, Lindsay Camila, técnica da Ferroviária, relata que as últimas noites não se comparam às intermináveis vezes em que ela atravessou a madrugada insone, estudando, para chegar justamente no posto que alcançou no último domingo (21). Ela foi a primeira mulher a treinar um time no título da Taça Libertadores feminina.

Apesar da luta, da importância e do ineditismo da conquista, Lindsay se mostra reticente quando o assunto é oportunidades para mulheres em postos de comando no esporte e na sociedade.

"Mudar? Vou ser bem sincera e fria: não. Espero que não seja algo momentâneo, que acenda uma curiosidade sobre ter a mulher no comando de um time de futebol. Somos sim capazes de treinar times femininos e masculinos", afirma a técnica, de 38 anos, que passou pela base do Lyon-FRA, talvez o melhor time da história do futebol feminino até aqui, além de ter experiências em Dubai, Luxemburgo e como assistente técnica da seleção brasileira sub-17, cargo que ocupou até o início do ano, quando assumiu o comando da Ferroviária.

A Libertadores feminina é disputada desde 2009 e, em suas 12 edições, foi por nove vezes conquistada por um time brasileiro. Somente agora uma mulher é a responsável por treinar uma equipe campeã. O machismo por parte de quem toma as decisões explica, diz Lindsay. É ele o grande impeditivo para que mais mulheres mostrem que podem ser líderes de elencos femininos ou masculinos.

Lindsay Camila, treinadora da Ferroviária e primeira técnica campeã da Libertadores - Divulgação/Conmebol - Divulgação/Conmebol
Lindsay Camila, treinadora da Ferroviária e primeira técnica campeã da Libertadores
Imagem: Divulgação/Conmebol

Machismo na França e no Oriente Médio

Em Luxemburgo e nos Emirados Árabes Unidos, ela treinou times de base masculinos. Na França, esteve à frente de uma equipe semi-profissional masculina. Nos três países, lidou com o preconceito por ser mulher. "A América do Sul é muito machista, não nos acham capazes de falar com igualdade. Mas fiquei na França dois anos, no S.C Terville, clube da 9ª divisão. Quando foi anunciado que eu dirigiria a equipe, muitos jogadores saíram do clube. Depois do primeiro treino, chorei ao chegar em casa, achando que não iriam me aceitar. Depois de um mês, viram que meus treinos eram sérios, que eu tinha conhecimento, que eu sabia me impor, que não é questão de gênero, que era questão de competência. Quando saí do clube, eles estavam na 8ª divisão. Já em Doha, os técnicos dos times adversários não me cumprimentavam por eu ser mulher. Foi um período difícil", recorda.

O nome, dado pela mãe, é uma homenagem a Lindsey Buckingham, ex-vocalista da famosa banda Fleetwood Mac. "Minha mãe e a Simone Jatobá, técnica da seleção brasileira sub-17, são duas pessoas fundamentais para que eu não desistisse. Futebol é muito presente na minha vida, culpa da minha mãe. Minha mãe é pontepretana, desde os cinco anos ela me levava ao Moisés Lucarelli. Depois, cansei de ir em dérbis sozinha. Até infiltrada na torcida do Guarani eu já fui. Claro que com a carreira a gente vai deixando de torcer, porque vira profissional. Mas mantenho o carinho pela Ponte Preta", afirma a treinadora da Ferroviária.

Carreira dentro de campo

Com 13 anos, a canhota Lindsay já entortava marmanjos nos campos de Campinas, no interior de São Paulo. Mas nem sempre era fácil admitir a ligação com o futebol. "Uma vez, queria sair com um garoto e ele falou que não sairia comigo porque eu jogava futebol, poderia me machucar. Um namorado falou para mim que eu precisaria escolher entre ele e o futebol. Não precisei nem responder", contou, relembrando da própria adolescência, uma fase que, segundo ela, é fundamental para as mulheres não cederem aos caprichos da sociedade.

"Muitas mulheres procuram o esporte coletivo para serem representadas, para ter liberdade de ser quem elas querem ser. Mas quando você é nova e começa a jogar bola, somos reprimidas pela sociedade. O preconceito na adolescência, ser julgada, com tantos hormônios, você acha que o mundo está acabando e a desistência acontece mais ali. Muitas meninas acabam se punindo e abrindo mão do que a gente gosta por conta da sociedade. Se ela quiser ser barbeira, chefe de cozinha, ela tem que ser o que ela quiser. Nosso potencial e nossa capacidade intelectual é igual. Algumas comentaristas são repreendidas apenas por serem mulheres e nós vemos que homens também erram e não são tão criticados. São essas coisas que fazem a mulher parar", dispara Lindsay.

Um dos pontos que ela mais questiona é o da pretensa "fragilidade feminina". "Tenho uma jogadora que chegou para mim durante a final da Libertadores e pediu um remédio para cólica. Já temos psicólogos e médicos que trabalham para que as garotas não menstruem durante a competição. Mas é uma coisa comum, como se fosse uma dor qualquer", argumentou, lembrando que essa mesma jogadora teve participação decisiva nas quartas de final e na semifinal da Libertadores.

Depois de rodar parte do Brasil, Portugal, e Espanha, ela se estabeleceu na França ao ser contratada para defender o Lyon. Um ano depois, a carreira de jogadora chegava ao fim precocemente por conta de uma lesão no tornozelo e na fíbula. Para não ficar longe da sua maior paixão, investiu tempo e dinheiro em cursos de formação, como a Licença A da Uefa, que a permite treinar qualquer clube europeu e que poucos técnicos brasileiros têm no currículo.

Passou por diferentes países até ser convidada neste início de ano para substituir Tatiele Silveira, uma das melhores treinadoras do país, no comando da Ferroviária. A escolha não poderia ter sido mais acertada.

"Quando se fala de futebol feminino no Brasil, o nome Ferroviária é muito forte. É um projeto sério. Temos muitas mulheres trabalhando no futebol daqui. Mas por enquanto, infelizmente, não vai mudar [a mentalidade para contratar mais técnicas no Brasil]. Quero apresentar os nossos conhecimentos, com propriedade. Temos muitas treinadoras que têm boa formação no Brasil. Espero estar plantando sementinha", finalizou a campeã da Libertadores, após passar mais alguns dias sem dormir, mas agora de felicidade por ter conquistado o torneio continental e, por quem sabe, ter aberto o caminho para que mais e mais mulheres sejam campeãs treinando times.