Sem os bilhões do PSG, Paris também tem clube raiz que já tentou Garrincha
Os bilhões de euros investidos pelo Qatar colocam há uma década o Paris Saint-Germain em evidência no futebol mundial. Mas se o clube de Neymar e Mbappé é hoje o mais rico e mais forte da França, não chega nem perto da tradição de outra equipe também da capital do país. Com sede em uma área pobre no subúrbio de Paris e sem estrelas no elenco, o Red Star FC tem uma história centenária ligada a valores humanistas e desenvolvimento social de jovens.
O modesto clube foi fundado em 1897 por Jules Rimet, o mesmo que depois foi presidente da Fifa e deu nome à taça conquistada pela seleção brasileira na Copa de 1970. E a relação com o Brasil não para por aí: o time já contou com alguns jogadores brasileiros, entre eles Garrincha, mesmo que por um período curtíssimo.
Nesta quinta-feira (8), o Red Star, que atualmente disputa a terceira divisão do Campeonato Francês, tem um desafio importante dentro de casa pelas oitavas de final da Copa da França. Enfrenta o forte Lyon, de Lucas Paquetá, Bruno Guimarães, Marcelo e Thiago Mendes. O duelo em jogo único acontece às 14h (de Brasília), no modesto e antigo estádio Bauer, com capacidade para apenas 10 mil torcedores, mas que não receberá público por causa das restrições da pandemia do novo coronavírus.
De qualquer forma, a equipe da casa deve receber apoio de centenas de fanáticos que assistirão à partida das janelas e terraços de um prédio residencial localizado bem atrás do campo. É o verdadeiro futebol raiz em Paris!
"Nós acreditamos que devemos ter em mente as origens do futebol e a importância das conexões sociais, nosso papel na educação, por exemplo. Dito isso, um clube profissional precisa se desenvolver. Para nós, significa que temos uma linha editorial clara na escolha de nossos patrocinadores para que compartilhem nossos valores. Sim, como eles dizem 'aqui é Paris' [slogan do PSG]. No Red Star, 'Isto é mais do que futebol'. E o Red Star não apenas representa Paris desde 1897, mas também representa todos os subúrbios da França. Aqui temos uma expressão para dizer que somos o clube do Paname, que é Paris e seus subúrbios", afirmou David Bellion, ex-jogador e hoje diretor de marca do Red Star, em entrevista ao UOL Esporte.
Em razão da diferença financeira e de não disputarem a mesma divisão do futebol francês há muitas temporadas, Red Star e PSG não possuem rivalidade direta entre eles, esportivamente falando. O principal rival da capital é o Paris FC, de nível similar. Mas os 124 anos de história são bastante valorizados pelo clube e um motivo de orgulho em tempos de futebol moderno.
"O Red Star é muito mais antigo que o PSG [fundado em 1970], o que significa que nós não esperamos o novo PSG para descobrir nossa razão de existir. Alguns dizem que somos uma espécie de resistência, de fato. Nós somos quem somos, sem levar em conta o que é o PSG", comentou Bellion.
A primeira sede do Red Star foi ao lado da Torre Eiffel, mas pouco depois a equipe se mudou para Saint-Ouen, comuna ao norte de Paris, perto de Saint Denis, onde fica o Stade de France. A região conhecida pelo CEP com início 93 é considerada uma das mais pobres e perigosas do subúrbio da capital francesa, lugar que acolhe imigrantes de todas as raças e diversos países.
Desta forma, o clube faz um importante trabalho social para o desenvolvimento da juventude local, com atividades esportivas, culturais, artísticas e educacionais, como o projeto chamado Red Star LAB.
Como diz o nome do clube em inglês, o símbolo tem uma estrela vermelha, mas originalmente não tem qualquer relação com o comunismo ou movimentos políticos. O nome foi inspirado na companhia de navios chamada Red Star Line, que era utilizada pela governanta inglesa que trabalhava para Jules Rimet.
Apesar da escolha aleatória e do uniforme principal ter camisas verdes, com o passar dos anos a história do clube francês foi ficando cada vez mais alinhada com ideias socialistas e, consequentemente, com o seu símbolo. A torcida não é grande, mas tem relação próxima e costuma ser engajada em causas sociais. Ajudar as classes mais baixas e dar uma vida melhor a quem mais precisa é definitivamente um dos lemas do Red Star.
"O principal problema é que 93 é um dos códigos de área mais pobres e mais jovens da França. E o Red Star é o clube de futebol mais famoso desta área e o clube mais antigo de Paris. Temos a chance de ser um ator principal nesta luta diária para torná-la melhor para muitas famílias que mandam seus filhos para o nosso clube, e não fazê-los apenas jogadores de futebol, mas primeiro, futuros homens e mulheres bem educados, tanto quanto pudermos. Desde a sua fundação em 1897, Jules Rimet estabeleceu como objetivo oferecer aos jovens uma formação cultural paralela à formação desportiva com o Red Star. Mais de 100 anos depois, o clube faz questão de sustentar o espírito de seu fundador e visionário. Sua ambição: promover o acesso à cultura", explicou Bellion.
Red Star do Brasil
Além da coincidência de a seleção de Pelé e companhia ter conquistado no Mundial de 1970 de forma definitiva a taça Jules Rimet, fundador do clube, existem outras relações históricas do Red Star com o Brasil. O primeiro jogador do país a atuar pela equipe francesa foi Yeso Amalfi, entre 1955 e 1957. Depois, também jogaram Ademar Bianchini, na década de 70, e mais recentemente Wellington Dantas, na temporada 2010/2011. Mas o atleta brasileiro mais ilustre a vestir a camisa verde do time foi o campeão do mundo Garrincha.
A história é controversa e foi por pouquíssimo tempo. Na verdade, o ex-atacante do Botafogo não chegou a realizar nenhum jogo oficial pelo time parisiense, pois não houve acordo para a contratação, em negociação feita com o então presidente Gilbert Zenatti, em março de 1971.
O Anjo das Pernas Tortas, no entanto, participou de treinamentos no estádio Bauer durante o período em que sua então esposa, a cantora Elza Soares, fazia shows na cidade. Quem contou mais sobre o episódio curioso de Mané Garrincha no Red Star foi o ex-lateral Guy Garrigues, atleta da equipe na época, em entrevista ao jornal Le Parisien.
"A mulher dele cantava e veio fazer uma turnê em Paris. Então, ele estava procurando um clube para treinar. Nós dissemos 'ok'. Ele estava na casa dos 40 anos [na verdade, estava com 36 anos], mas era o Garrincha. Nós o recebemos como deveria e ele fez uma partida com a gente. No dia seguinte, vimos o jornal L'Équipe e descobrimos um comentário dele sobre nós: 'eles são muito simpáticos, mas dou a eles uma bola redonda e eles me devolvem ela quadrada!' A recepção no dia seguinte não foi a mesma e nunca mais o vimos", disse Garrigues.
Outra presença brasileira marcante no estádio Bauer foi da seleção brasileira às vésperas da Copa do Mundo de 1998, realizada na França. Um texto no site oficial do clube, com o título "Red Star do Brasil", destaca também este dia 3 de junho daquele ano, quando o Brasil comandado pelo técnico Zagallo, com craques como Ronaldo, Bebeto e Roberto Carlos, venceu amistoso contra Andorra por 3 a 0, com gols de Giovanni, Rivaldo e Cafu. Um mês depois, porém, a seleção foi derrotada na final do Mundial pelos donos da casa por 3 a 0, com atuação decisiva de Zidane.
Copa da França no estádio raiz
Nesta quinta-feira, o Red Star tem a chance de reviver algumas glórias do passado e conseguir uma campanha histórica na Copa da França, torneio que o clube já foi campeão cinco vezes, a primeira delas em 1921, exatamente 100 anos atrás. A missão é complicada diante de um adversário bem mais poderoso, o Lyon, que atualmente briga pelo título da Ligue 1 (primeira divisão do país).
"É maravilhoso poder receber o Lyon em casa no Bauer, mesmo que nossos torcedores não estejam presentes. Faremos de tudo para estar à altura", disse o técnico Vincent Bordot.
O sonho é repetir o feito da fase anterior, quando a equipe do subúrbio de Paris ganhou de virada do favorito Lens, atual quinto colocado da primeira divisão, por 3 a 2, com um gol aos 45 minutos do segundo tempo. Foi um dia de ambiente emocionante e inesquecível no estádio Bauer. Apesar das arquibancadas vazias por causa da Covid-19 e sem o barulho habitual dos fãs, o gol decisivo do atacante Alan Dzabana levou os torcedores ao delírio, com direito a festa nas ruas ao redor e nas janelas e jardim do prédio que fica logo atrás do campo.
Privilégio de algumas pessoas que moram neste edifício com visão perfeita para o gramado. Com o apito final e a classificação às oitavas de final, os atletas se juntaram à torcida na comemoração em Saint-Ouen. A expectativa é que nesta quinta a atmosfera seja parecida perto do estádio, apesar das regras de confinamento que a França vive no momento.
O acanhado estádio Bauer, por sinal, também tem elementos que mostram a relação com valores humanistas. O nome é uma referência a Jean-Claude Bauer, médico judeu e comunista, resistente local, preso pela polícia francesa e depois fuzilado em 1942. A tribuna Rino Della Negra, setor onde ficam os apaixonados da torcida organizada, foi nomeada em homenagem a um ex-jogador italiano da equipe, que foi soldado voluntário do exército francês durante a resistência na Segunda Guerra Mundial.
A força e a mística de sua casa é um dos trunfos do Red Star. Em visita ao clube, a reportagem do UOL pôde observar um pouco desta relação próxima entre atletas, torcedores e moradores da região. Além do mata-mata na Copa da França, o time ainda luta nesta temporada para regressar à Ligue 2, a segunda divisão do Francês, objetivos que podem ajudar em uma pretensão financeira do clube.
O projeto é renovar e ampliar o estádio Bauer, iniciando as obras a partir do meio de 2021, com previsão de término em 2024, ano da Olimpíada em Paris. Mas, apesar dos planos de evolução, a essência do futebol raiz vai sempre permanecer no Red Star. É definitivamente uma bandeira de resistência ao futebol moderno.
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