Homenageado pela Copa do Nordeste, Lampião nunca jogou futebol
Virgulino talvez nunca pensasse que seu nome transcenderia o seu tempo. Claro que sempre trabalhou para eternizar o personagem, divertindo-se ao dar entrevistas para jornais, sendo fotografado ou mostrando a rotina do seu bando. Era amigo de Padre Cícero, de coiteiros e estampou o nome que até hoje lhe garante fama no jornal "The New York Times". Até sua cabeça gerou comoção nas cidades em que passou, naquele formato de bola, machucada. Abaixo de si, o nome que às vezes ainda é sussurro nos interiores do Nordeste. Lampião.
Ele, que talvez nunca tenha tido contato com futebol, recebe homenagem da maior competição regional. A Copa do Nordeste, carinhosamente apelidada de Lampions League, faz jus ao mito de Lampião, mas não ao homem que foi Virgulino. Uma figura que representa o Nordeste em suas feições, nas formas de se vestir, na coragem e na força de homens e mulheres que não poderiam se abalar. Mas, claro, também é um personagem que guarda para sempre a pergunta: herói ou vilão?
Consciente de suas habilidades e da falta de lei, no meio do coronelismo, Virgulino tornou-se Lampião como consequência do contexto político em que vivia. Tinha-se seca, impunidade. Tinha-se, sem dúvidas, o maior líder da região. Para internacionalizá-lo, talvez Lampião fosse um Robin Hood verdadeiramente humano - com falhas, acertos, brutalidade, violência e todos os elementos que o nome lhe remeta.
O nome, no entanto, virou uma forma de o povo nordestino se identificar com a competição, tanto que o símbolo da Copa é um chapéu de vaqueiro, que foi utilizado e ornamentado por Lampião durante sua vida, até ser emboscado na Grota do Angico, em Sergipe, e morto por uma volante (grupo de policiais militares dedicados a caçar cangaceiros). A Copa do Nordeste usa vários elementos que remetem à região.
"O que foi pego para se inspirar é mais por conta do Lampião mito. Não é possível acreditar que tenha sido pela historicidade dele ou pela sua vida, mas, sim, pela imagem dele que ficou para as futuras gerações. A imagem do Lampião feroz, herói para alguns e bandido para outros, a imagem do mito da pessoa que está marcada há mais de 80 anos", explica a pesquisadora Marta Moura, especialista em pesquisas sobre a vida de Lampião.
"Mesmo a Copa levando o nome de Lampião, é bem pouco provável que ele sequer tenha ouvido falar em futebol. O esporte surgiu no Brasil em 1894, principalmente na região sudeste, quando o Lampião ainda era novo e andava pelo sertão nordestino. Dificilmente ele tinha acesso a informação sobre o esporte", avalia Marta Moura.
Ainda de acordo com a pesquisadora, não há como achar ligação entre Lampião e futebol. "Imagina o Lampião em 1910 e 1920. O futebol era praticado nas regiões sudeste e sul. No nordeste, as pessoas não eram ligadas a esportes. O bando, inclusive, não praticava esportes, mas, sim, realizava atividades domésticas do dia a dia, como bordar e cozinhar. O mais próximo de esporte deles era a pega de boi, que hoje chamamos de vaquejada".
Mesmo sem ligação com o futebol, o cangaceiro mais conhecido do nordeste dá apelido a agora uma das maiores competições regionais do país. Em 2021, o Nordestão provou sua força ao se manter firme em meio a restrições impostas por governos estaduais na tentativa de frear o avanço da covid. Tal situação fez o torneio atrair mais olhares da imprensa e dos próprios torcedores durante o primeiro quadrimestre de 2021.
A Lampions chega nesse sábado (8), à sua 17ª decisão, tendo Bahia e Ceará como protagonistas, após vitória por 1 a 0 do Vozão no primeiro jogo da final. As duas equipes reeditam a decisão do ano passado quando os cearenses conquistaram o troféu. O maior vencedor da competição é o Vitória, com quatro títulos.
Edições canceladas e símbolos nordestinos
Embora tenha tido a primeira edição em 1994, a Copa do Nordeste não se firmou logo de cara como uma competição contínua nem teve uma data fixa no calendário. Naquela edição, que contou com 16 clubes, o campeão foi o Sport, ao derrotar o CRB nos pênaltis após empate sem gols.
Em 1997, passou a ser organizada pela CBF e aconteceu anualmente até 2003, ano em que clubes tradicionais, como Bahia, Fortaleza, Sport, Náutico e Santa Cruz, não participaram da competição, preferiram priorizar o Brasileirão. Outros times, como o Vitória, colocaram reservas ou times mistos em campo, por causa do calendário apertado. Por falta de espaço, a Confederação Brasileira de Futebol decidiu extinguir a Copa do Nordeste no ano seguinte.
Os participantes, então, entraram na Justiça contra a CBF exigindo a volta da competição. A entidade permitiu o retorno somente em 2010, com a condição que o processo judicial fosse extinto. Em 2011, novamente, a Copa do Nordeste não foi realizada, voltando apenas em 2012, passando a sempre disputada no começo do ano desde então. Atualmente, a Lampions garante ao campeão uma vaga na Copa do Brasil.
Além de Lampião, a Copa do Nordeste homenageia outros símbolos do Nordeste. O mascote é chamado de Zeca Brito, numa brincadeira com a expressão "Zé Cabrito". A bola da edição de 2020 foi apelidada de Asa Branca, alusão à canção de Luiz Gonzaga, que também usava chapéu de vaqueiro. Outra particularidade do torneio é a valorização do trabalho de narradores, comentaristas e repórteres da região.
A consolidação foi tão grande no cenário nacional que a Copa do Nordeste chegou a 2021 como pioneira na transmissão de jogos pelo TikTok. Além disso, o SBT estuda transmitir a final da competição para todo do Brasil em 2022.
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