Luso-brasileiro dedica título do Sporting à mãe-pai: "Faço tudo por ela"
O histórico título nacional do Sporting, que colocou fim ao longo jejum de 19 anos em Portugal, teve um toque brasileiro. Luso-brasileiro, na verdade. Matheus Nunes foi importante na conquista leonina, dentro e fora de campo, especialmente por carregar nas costas o peso de "precisar pagar" o próprio treinador.
Natural do Rio de Janeiro e fora do Brasil desde os 14 anos, o jovem volante, ainda na temporada passada, recebeu um elogio e tanto do presidente do clube de Alvalade: "Só o Matheus vai pagar o Rúben Amorim", disse Frederico Varandas, em alusão aos mais de 10 milhões de euros pagos de multa rescisória ao rival Braga para fazer a mudança no comando técnico do time.
Aos 22 anos, Matheus acabou por não sentir qualquer pressão extra com as palavras do dirigente, isso graças aos sábios conselhos da mãe. Cátia Nunes, que também sempre assumiu o papel de "pai", é - e sempre vai ser - a grande inspiradora do filho: "Tudo o que já conquistei, tudo aquilo que ainda vou conquistar, vai ser dedicado a ela. Faço tudo por ela", revelou, em entrevista exclusiva ao UOL Esporte.
Peço que feche os olhos e pense no Brasil. Quais são as primeiras recordações que surgem?
Lembro-me de muita coisa, porque fui embora do Brasil com 14 anos. Lembro que mudei de casa muitas vezes, a minha mãe estava sempre procurando um trabalho melhor para dar melhores condições para os filhos. Tenho saudades. Sei que muita coisa mudou no Rio de Janeiro, então, quando viajar para fazer uma visita, acho que não vou reconhecer praticamente nada.
Tem alguma imagem mais marcante do Rio de Janeiro na memória?
Sempre que saía da escola, ficava jogando futebol com os meus amigos, umas oito horas por dia. Chegava em casa todo sujo, suado, descalço… a minha mãe reclamava bastante, brigava comigo, porque colocava os pés em cima do sofá, fazia muita bagunça. Aos poucos, fui crescendo, mudando de vida e perdendo isso de brincar. Essa é provavelmente das partes que mais sinto falta hoje, a liberdade que a gente tinha nos tempos de criança.
Qual foi o impacto de pisar pela primeira vez em Portugal? Assustou?
Era muito frio, tempo fechado. Mesmo quando está sol, ainda há ventos fortes. Raramente sentia frio no Rio de Janeiro, era um clima muito diferente. Já aqui sentia frio até mesmo quando estava treinando. Minha mãe falava direto: "Veste um casaco! Coloca uma calça! Vai ficar resfriado, menino!". Até fazia tudo isso, mas continuava de chinelo, porque no Brasil andava sempre de chinelo.
Chegou a pedir para voltar para o Brasil? Desistir de Portugal?
Da minha parte, não. Digo isso porque logo nos primeiros meses consegui arranjar um clube para treinar e jogar, então isso fez a diferença. Fiz muitas amizades também. Aliás, sempre tive muita facilidade em fazer novos amigos, a minha adaptação acabou por ser muito fácil. Já com a minha mãe foi diferente, ela sentiu mais dificuldades, porque havia deixado os meus dois irmãos mais velhos no Brasil. Ela trabalhava muito, demorou bastante para se adaptar… mas fazia de tudo para não demonstrar muito isso. Eu percebia bem o que estava acontecendo com ela, já lia muito bem as coisas.
Pensou nisso tudo quando foi campeão com o Sporting? Lembrou das dificuldades sofridas pela sua mãe?
Tudo o que já conquistei, tudo aquilo que ainda vou conquistar na carreira, vai ser sempre dedicado a minha mãe. Nunca tive pai. Tenho pai [padrasto] agora, mas, até aos dez anos, tinha apenas a minha mãe. Não importa aqui os motivos, mas nunca tive pai. A minha mãe sempre assumiu o papel de mãe e também de pai, criou sozinha os três filhos. Agora, somos em cinco filhos, mas antes, com três, ela precisou fazer tudo sozinha. Ela está comigo no dia a dia, nos meus pensamentos, faço tudo por ela. Levo sempre ela comigo. Tudo o que ela fez e continua fazendo por nós, todas as dificuldades que enfrentou na vida…
Quais são as marcas de não ter um pai presente?
Sinceramente, acho que é mais fácil não ter um pai desde o começo, diferentemente de quem perde o pai já com uma certa idade. A minha mãe sempre foi Maria Rapaz, tipo Maria João, teve uma infância muito influenciada por brincadeiras masculinas. A família dela sempre teve mais homens. Ela sempre me ensinou sobre o futebol, sobre a vida de homem, como, por exemplo, aquelas perguntas mais difíceis que a gente costuma fazer aos pais. A minha mãe estava preparada para ouvir tudo, respondia tudo. Por isso, não senti muito o impacto de não ter um pai, porque fui acostumado assim desde o primeiro dia. Nunca soube o que era ter um pai. Felizmente, a minha mãe fez os dois papéis.
Mudou para Portugal aos 14 anos, sentiu uma forte influência da cultura portuguesa, assumiu o sotaque do português de Portugal…. Se sente mais português do que brasileiro?
Não, não. Me sinto tanto brasileiro, como português. Metade, metade. Apesar de as minhas raízes todas serem do Brasil, cheguei aqui já com uma idade boa, não era tão criança. Gosto muito dos dois países, mas, sendo honesto, prefiro viver aqui em Portugal mesmo.
Seleção brasileira ou seleção portuguesa: já decidiu?
Gostaria de jogar nas duas [risos]. Qualquer uma que me chamar, vou ficar muito contente. Seria um sonho realizado, porque falo sobre jogar na seleção desde que me conheço por gente, é algo que sempre conversei com os meus irmãos. Vou continuar trabalhando forte, sei que um dia essa oportunidade vai surgir.
Vou abrir aspas para uma frase que você soltou na festa do título do Sporting: "Ninguém dava nada por nós no começo". Trazendo isso para o plano individual, você também ouviu muito isso antes de ser profissional?
Não diria isso, porque as pessoas mais próximas de mim sempre acreditaram no meu sucesso, criaram as condições para que pudesse ter uma oportunidade de realizar o meu sonho. Já as pessoas que não me conheciam, sei lá, talvez não chegaram a ter uma opinião formada sobre isso…
Ainda na festa do título do Sporting, você talvez foi dos jogadores que mais festejou. Muita animação, gritos, desabafos…
Para chegar ao Sporting, para ter uma carreira como jogador, precisei passar por momentos complicados, fui rejeitado muitas vezes em testes, não passei em várias peneiras. Aos 20 anos, achava que estava praticamente tudo perdido, já dizia para a minha mãe que não dava mais. Então, olhando assim, pode ser por aí mesmo, posso considerar que [na festa] foi um grito de mandar cá para fora a sensação de orgulho, por tudo aquilo que passei, aquilo que passamos.
Logo nos seus primeiros jogos no Sporting, o presidente Frederico Varandas, num sinal claro de confiança, falou que você "pagaria o investimento" feito na contratação do treinador Rúben Amorim - custou pouco mais de 10 milhões de euros. Isso mexeu contigo?
Não, não me impactou de qualquer forma. Quando ele disse isso, conversei com a minha mãe e ela falou: "Menino, isso é bom para o seu futebol". O presidente, ao dizer aquilo, poderia até ter colocado pressão, mas para mim não fez diferença alguma. Só queria jogar, só queria ajudar o Sporting. Sempre pensei no futebol e deixei o restante de lado. E mais: para falar a verdade, não acompanho muito as notícias, os programas de televisão, essas coisas. Sendo assim, as notícias em cima desta frase não tiveram qualquer influência em mim.
A frase do presidente, no entanto, acabou sim por ter muito impacto, principalmente na imprensa. O Sporting sentiu isso? Houve algum cuidado interno para que isso não colocasse ainda mais pressão em cima de você?
Não, acho que tentaram levar com naturalidade, porque o objetivo não era passar pressão para mim, entende? Acho que o objetivo não era esse, por isso continuamos normalmente. Até mesmo o mister Rúben Amorim, durante os treinos, brincava com isso. Ele dizia para eu dar mais em campo, que precisava trabalhar mais, porque tinha que pagar a contratação dele [risos]. Não houve qualquer pressão extra.
O Rúben Amorim já declarou diversas vezes que acredita em "sorte" e tem uma espécie de "estrelinha". Você, em alguns jogos, foi decisivo e acabou por ser a "estrelinha" do treinador. Também acredita nisso?
Acredito na sorte, mas acredito também no trabalho. É preciso trabalhar e ter sorte. Acredito nisso, acredito muito nisso. Ter o momento certo, a hora exata, as condições ideais… e também é Deus.
Você atuou como primeiro volante, segundo volante, lateral, jogou mais próximo ao ataque… podemos então dizer que foi o "décimo segundo jogador" do Sporting na campanha do título?
Todos os jogadores que participaram foram importantes. É claro que a gente quer sempre jogar mais, mas quem decide é o mister. Estarei sempre à disposição para jogar em qualquer posição.
No habitual banho de champanhe no treinador campeão, o elenco do Sporting mostrou ter uma enorme afinidade com o Rúben Amorim. Aquela comemoração deu a entender que há muita liberdade, algo até acima do comum, entre vocês…
O mister, com certeza, é um pai para nós. Dá espaço para brincar, porque também gosta disso, mas, na hora de trabalhar, cobra sempre 200% dos jogadores. Isso acontece dos mais jovens aos velhos, todo mundo se sente muito confortável com ele. Temos todos uma relação muito próxima, com trabalho, brincadeiras, sorrisos. Sempre que pode, o mister dá oportunidade para todos se soltarem um pouco mais, para ver o lado pessoal de cada um. É daí que vem essa cumplicidade entre jogadores e treinador. É um profissional que dá muita confiança a todos.
Além de ser o responsável por encerrar um jejum de 19 anos, o Rúben Amorim ficou marcado por ter sido constantemente expulso, suspenso e perseguido nos bastidores. Como ele lidava com isso?
Ele levava sempre na brincadeira, arrumava sempre alguma forma de brincar com isso. Até nós, às vezes, arrumávamos alguma brincadeira com ele em relação aos castigos.
O Rúben Amorim já é dos melhores treinadores portugueses?
Acho que o mister tem totais condições de ser um grande treinador. Mas a gente sabe que no futebol, e isso é uma opinião minha… ele tem talento, uma forma muito inteligente de trabalhar. Tem tudo para ser um grande treinador no futuro.
Você era titular do Sporting, mas, com a contratação (por empréstimo da Inter de Milão) do João Mário, acabou por virar reserva. Levou numa boa?
Desde o início, e digo até mesmo antes da contratação dele, sempre vi o João Mário como uma mais-valia para o Sporting. Procuro aprender muito com ele, olho para cada movimento dele no campo, porque é um jogador com anos de carreira, que foi campeão com a seleção portuguesa. Dou o meu melhor nos treinos, ele também, então passa a ser uma decisão do treinador. Estamos todos prontos, todos à disposição.
Recentemente, você passou a ser agenciado pelo famoso empresário português Jorge Mendes, numa parceria com a empresa brasileira TFM. Tem a noção da importância disso no mercado da bola?
É sempre bom, né? É mais uma empresa por trás, mais uma pessoa para me ajudar, mais um profissional para me dar conselhos, gerir bem os momentos da temporada, preparar bem o meu psicológico, a parte do marketing, etc. Acho que tê-los atrás de mim só vai me ajudar ainda mais.
Para fechar: o que o Sporting tem que é uma marca do Matheus Nunes?
Tenho pouco tempo de Sporting, sou jovem, então é difícil incutir algo meu de forma tão rápida no Sporting… mas uma coisa que tenho, e sei que todos aqui também têm, é desejo de união. Todos valorizam todos, todos suam a camisa da mesma forma. Há união. Trabalhamos todos da mesma maneira, unidos, o que acabou por ser crucial nesta temporada.
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