Sobre meninos e porcos - Epísódio 4: 'Calibre 38'
O assassinato do torcedor palmeirense Cleo Sóstenes foi um marco na história das torcidas organizadas e da violência no futebol. Antes, a maioria das brigas eram resolvidas na mão. A partir da morte de Cleo, assassinado com dois tiros ao lado do estádio Parque Antárctica, em 1988, os punhos cada vez mais deram lugar às armas de fogo.
"Nos anos 70, a escalada da violência chegou a tal extremo que a polícia resolveu modificar seu esquema de repressão, passando a dividir as torcidas, oferecendo-lhe portões distintos e lugares reservados às uniformizadas de cada clube."
Esse é um trecho da narração de "Todomundo", documentário de 1980 do cineasta Thomaz Farkas. O filme aborda um questão que começava a incomodar: a violência entre as torcidas. E registra um fato novo que passaria a ser lugar-comum no futebol brasileiro a partir de então: a divisão das torcidas organizadas nos estádios.
Há poucas imagens de brigas no documentário. Um entrevero aqui, outro ali, nada generalizado. As hostilidades só aumentariam na década que começava. Com o assassinato de Cleo, presidente da Mancha Verde, atingiram seu ápice. Essa e outras histórias você escuta em "Sobre meninos e porcos", a terceira temporada do podcast "UOL Esporte Histórias". O quarto episódio foi lançado hoje e você conferi-lo no player acima e nas principais plataformas de áudio.
Cleo foi baleado duas vezes na rua atrás do antigo Parque Antarctica, a poucos passos da então sede da torcida organizada. Os relatos de violência na imprensa da época evidenciam a escalada: se tornaram muito mais comuns de 1985 em diante, quando os confrontos deixaram de ser desentendimentos pontuais para aumentarem em gravidade e organização.
Foi naquele ano que palmeirenses atiraram uma banca de jornal na Avenida Pacaembu em um briga com flamenguistas, e a polícia apreendeu 30 bombas caseiras antes de um clássico entre Palmeiras e Corinthians. Em 1986, Mancha Verde e Gaviões da Fiel se enfrentaram, durante um jogo de futsal no ginásio do Banespa, uma briga narrada ao vivo na TV.
"Não tínhamos brigas até então. Nossa briga era ver quem fazia a melhor festa", diz José Carlos Burti, presidente da TUP (Torcida Uniformizada do Palmeiras) nos anos 80. "O máximo que aparecia era um pedaço de pau, mas a gente já estava acostumado, acabava ali, morria ali, não tinha perseguição depois."
Os torcedores daquela época são unânimes: os confrontos já aconteciam, mas seguiam uma espécie de código de ética. Eles dizem que as brigas eram leais, sem armas ou mais de uma pessoa agredindo um rival que estava sozinho. O código teria acabado com as bombas e emboscadas e foi definitivamente sepultado com a morte do Cleo.
"Fomos à sede da Mancha Verde uma vez buscar bandeiras e faixas que eles tinham roubado da gente. Começou um corre-corre e acabamos encurralando o Cleo sozinho. Todo mundo queria pegar ele naquela época, mas eu falei pros caras não baterem nele", conta Francisco Eugênio Vicentini, conhecido como "Adamastor", ex-líder da Independente, do São Paulo.
"Fui leal, e depois o Cleo foi leal comigo também. Os caras da Mancha foram me pegar em casa, eu acabei sozinho com eles e foi o Cleo que não deixou que me batessem", lembra Adamastor.
Para Dentinho, ex-presidente da Gaviões da Fiel, naquela época teria sido muito mais fácil para os torcedores "se matarem". "Nas brigas que ocorreram, nunca houve arma de fogo. Se houvesse, naquela época tinha morrido muita gente, muito mais do que hoje. Porque a impunidade era muito grande. Não existiam os ´big brother`, as câmeras para filmar tudo", diz o corintiano.
Cosmo Damião, fundador da Torcida Jovem do Santos, segue a mesma linha. "Quando tinha briga, era briga de irmão mesmo. Não tinha negócio de paulada. No dia seguinte, a gente perguntava: ´Por que teve a briga?` Havia uma cobrança, não a covardia de se esconder. Hoje, muitos não põe a cara."
Com o assassinato de Cleo, integrantes de organizadas perceberam que corriam um risco muito maior que apenas o de tomar chutes e socos. Se alguém tão importante quanto o líder da Mancha tinha sido baleado, o que impediria que o mesmo acontecesse com eles?
"Foi um marco", diz José Carlos Burti. Depois da morte do amigo, ele soube que corintianos planejavam atacá-lo em sua própria casa. "Daí em diante eu perdi o sossego. Todo dia ao chegar em casa eu tinha que ficar esperto. Não era mais vida."
Na opinião de Dentinho, não dá para afirmar que as coisas teriam sido diferentes sem o assassinato de Cleo. Mas o corintiano concorda que algo poderia ter sido feito para evitar as mais de 300 mortes em brigas de torcida de 1988 até hoje.
"Se a gente tivesse começado esse trabalho lá atrás, no surgimento das torcidas, se todo mundo tivesse sentado na mesa, feito seu trabalho interno de fiscalização do clube e esquecido as outras torcidas, acho que hoje a coisa seria diferente", afirma Dentinho.
"Sobre meninos e porcos" é a terceira temporada do premiado podcast "UOL Esporte Histórias", que conta a história de como as torcidas organizadas saíram da festa e chegaram à violência. O relato é centrado no assassinato de Cleo Sóstenes nos anos 1980, considerado o marco da chegada das armas de fogo às brigas de torcida. Você pode conhecer essa história, que os repórteres Adriano Wilkson e Daniel Lisboa investigam há um ano, em um podcast de seis episódios:
- 1: Respeito é pra quem tem
- 2: E ninguém vai me segurar
- 3: Sangue derramado
- 4. Calibre 38
- 5. Chumbo de caça
- 6. Sem saída
Os podcasts do UOL estão disponíveis em uol.com.br/podcasts e em todas as plataformas de distribuição. Você pode ouvir "UOL Esporte Histórias", por exemplo, no Spotify, na Apple Podcasts e no Youtube.
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