Craque, boêmio e calado: Dorval driblou racismo e empilhou taças no Santos
O Santos informou hoje (26) a morte de um dos principais ídolos de sua rica história. Aos 86 anos, o ex-ponta-direita Dorval estava internado na Casa de Saúde de Santos em razão de um "quadro clínico delicado, com muita tosse", segundo relatou a família, e não resistiu. O clube decretou sete dias de luto.
Dorval é o quinto jogador com mais partidas (610) e sexto maior artilheiro do Santos (193 gols), além de ganhador de 17 títulos. Ele também defendeu times como Palmeiras, Racing (Argentina) e Athletico-PR, sem contar 13 partidas pela seleção brasileira entre 1959 e 1963. Para além dos feitos dentro de campo, o jogador nascido em Porto Alegre em 1935 foi um personagem marcante fora das quatro linhas.
Segundo o recém-lançado "Almanaque dos Craques" do Santos, Dorval "era um dos jogadores mais festeiros daquele elenco na década de 1960. São inúmeras as histórias de noitadas com colegas de equipe, porém nunca teve o desempenho prejudicado". O apelido que o ponta tinha entre os jogadores de "Pé de Valsa" tinha a ver com sua personalidade boêmia, que gostava de festas e de dançar.
Ele mesmo admitia a fama. Dividia quarto na concentração com o goleiro Gylmar, que era mais comportado, casado e preferia ficar no quarto do hotel lendo livros. Dorval, por sua vez, não dispensava uma noitada. "Eu saía, chegava tarde e o Girafa [apelido de Gylmar] ainda estava lendo na cama", chegou a dizer. Em uma dessas ocasiões aconteceu uma história que Pepe nunca se cansa de contar.
O Santos excursionava na França para a disputa do Torneio de Paris nos anos 60 quando os jogadores tiveram uma noite de folga. Segundo a lembrança de Pepe, o técnico Lula teria dito algo como: "Cuidem-se, ninguém bebe. Meia-noite, todos no hotel". Lá foram os jogadores. Em algum momento, Dorval começou a dançar de rosto colado com uma loira, fazendo valer o apelido de Pé de Valsa. Aí a música parou, os casais da pista de dança se separaram e Pepe viu a loira de Dorval entrar no banheiro masculino.
Quando os jogadores foram até Dorval contar essa curiosidade é que veio a resposta que entrou no rol de melhores lendas urbanas do futebol brasileiro: "Não tem problema. Eu também a estou enganando, ela pensa que eu sou o Pelé."
Segundo Pepe, Dorval pediu para que ele parasse de contar essa história, mas o ex-ponta-esquerda se recusou porque era "a melhor de todas". Dorval dizia que Pepe é "um tremendo mentiroso".
Racismo antes da carreira vencedora
Nascido no Rio Grande do Sul, Dorval começou no futebol nas categorias inferiores do Internacional. Segundo o historiador Odir Cunha, era este o time que o ídolo santista torcia na infância. Depois do Colorado, o menino parou no Grêmio, mas precisou trocar de posição a todo tempo e nunca conseguiu uma sequência. Segundo ele, houve um elemento racial nesta dificuldade de ascensão profissional.
Às vezes eu jogava na meia, às vezes na ponta, fui escalado até na ponta-esquerda. Mas era difícil um jogador de cor se firmar no Grêmio."
Depois do Grêmio, Dorval transferiu-se para um clube chamado Força e Luz, hoje extinto. Daí foi descoberto por olheiros do Santos e assinou contrato em 1956 - curiosamente, o mesmo ano que Pelé chegou ao clube. Ambos chegaram a dividir quarto na famosa pensão da Dona Georgina, onde viviam muitos jogadores santistas.
"Uma vez nós brigamos e ficamos um ano sem se falar. O curioso é que a gente dormia no mesmo quarto e não se falava. Só ia se falar no campo", disse Dorval, que ganhou do Rei o apelido de "Macalé", numa entrevista recente.
Até 1967 foram 17 títulos pelo Peixe, entre Mundial (duas vezes), Libertadores (duas vezes), Brasileiro (quatro vezes), Paulista (cinco vezes) e Rio-São Paulo (quatro vezes). Durante o período ele também jogou pelo Juventus-SP e pelo Racing, da Argentina. O clube do país vizinho chegou a comprar o passe do santista em 1964, mas não pagou e isso o fez voltar para a Vila Belmiro.
Dorval era conhecido por crescer em decisões, pela velocidade e também pela inteligência tática, que lhe permitia ser um dos maiores autores de passes para gols durante os tempos de ouro do Santos. O "ataque dos sonhos" lado de Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe marcou 314 gols em 97 jogos. O ponta direita desta formação foi um dos primeiros jogadores de ataque com responsabilidades defensivas — algo que hoje é muito comum. Ele se lembrava orgulhoso de um Santos 3 x 2 Botafogo no Pacaembu em que sua única obrigação era anular Garrincha. Conseguiu.
Dorval ainda jogou 20 partidas pelo Palmeiras e foi campeão paranaense pelo Athletico-PR antes de encerrar a carreira em 1972, num time hoje extinto da cidade de São Caetano do Sul. Pela seleção brasileira foram 13 partidas, um gol marcado e a frustração por não ter sido convocado para a Copa do Mundo de 1962.
Pós-carreira discreto, mas orgulhoso
Dorval teve várias ocupações depois da carreira como jogador. Foi professor de uma escolinha de futebol popular na periferia da capital paulista, trabalhou em uma empresa de plástico, foi funcionário da Secretaria Estadual de Esportes de São Paulo e chegou a ser treinador de times amadores na região do ABC Paulista.
O ídolo santista passou alguns anos reclamando do tratamento que o Santos dava aos seus ex-jogadores. Ele disse que mesmo dando nome a um camarote da Vila Belmiro não podia entrar no estádio de graça. A história mudou em 2014, quando o clube criou o projeto "Ídolos Eternos". A ideia é contratar alguns ex-jogadores como funcionários do departamento de marketing do clube. Ao lado de Mengálvio, Pepe, Lima, Edu, Clodoaldo, Manoel Maria e Abel, Dorval participava de eventos, programas de TV e ações promocionais ao longo dos últimos anos.
Também era uma forma de amparo financeiro ao ex-jogador, que passou por atribulações desta natureza no fim da vida.
Até antes da pandemia, Dorval frequentava normalmente a Vila Belmiro. Empilham-se casos de torcedores que reconheciam o ex-jogador em ocasiões sem badalação, às vezes passando até batido e sem ser abordado nos setores que frequentava. Um homem discreto, que falava pouco sobre si mesmo e as glórias do passado. Mesmo assim, era comum vê-lo com uma camisa que tinha estampada a foto de uma formação do Santos nos anos 60, como demonstração de orgulho.
Dorval deixa um filho, Émerson Fernando Rodrigues, e uma história para poucos.
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