Prefeitura avança para substituir campos de várzea em SP por museu privado
Todo final de semana, cerca de 150 jogos de futebol são disputados em seis campos de terra localizados no Aeroporto Campo de Marte, na Zona Norte de São Paulo. Milhares de pessoas e times de toda a cidade passam pelo lugar, que é considerado o último reduto do futebol de várzea da capital. O espaço, no entanto, está prestes a mudar radicalmente: a Prefeitura oficializou na última quarta-feira (9) a intenção de conceder toda área à administração privada.
A Prefeitura abriu um Procedimento Preliminar de Manifestação de Interesse (PPMI) para saber se há empresas dispostas a pôr em prática o projeto de um parque e de um museu no terreno em que hoje há os campos de futebol e uma vasta área de Mata Atlântica. O chamamento público foi publicado no Diário Oficial, e os interessados têm 45 dias para se manifestar.
A gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB) promete entregar o que seria o quinto maior parque da capital, além de um museu sobre tecnologia aeroespacial. O anúncio avisa que, se o projeto sair do papel, a iniciativa privada teria que "garantir a universalidade e gratuidade do acesso ao parque", mas os times que frequentam o Campo de Marte temem ser expulsos dali.
"Ninguém da Prefeitura nos fala nada, tratam a gente como lixo", reclama Otacílio Ribeiro, líder comunitário e secretário-geral da Associação dos Clubes Mantenedores do Complexo de Esporte, Lazer e Cidadania do Campo de Marte. "Estamos lá há 60 anos sem verba pública nenhuma, sem um centavo. Nós somos favoráveis ao parque, ao museu, mas não há a necessidade de tirar a gente de lá. A gente ocupa só uma área pequena do parque", argumenta.
A Prefeitura tem um projeto pronto para parque e museu desde 2017, à época sob a gestão de João Dória (PSBD). Dos 417 mil m², cerca de 10% seriam destinados a três campos de futebol novos e duas quadras de society. A administração deste espaço, porém, passaria a ser da iniciativa privada e não de um Clube da Comunidade (CDC), como é desejo coletivo dos times que frequentam o local.
À época os clubes se reuniram e sugeriram a criação não de três campos, mas de cinco, mesmo que menores e sem as quadras, mas não obtiveram resposta concreta. Agora, foram deixados de lado e pegos de surpresa pelo chamamento público. A Prefeitura não esclarece o motivo de insistir em reduzir os campos pela metade.
"No final das contas são os times que estão lá há muito mais tempo. Um dos clubes é o Grêmio Recreativo SADE, por exemplo, que nasceu de uma empresa siderúrgica e existe desde 1963. Não é um pessoal que chegou ontem lá. Eles viram e fizeram o bairro crescer e se desenvolver, mas na hora que o tão sonhado parque chega, este pessoal é ignorado", alerta o arquiteto Fabio Farah Cavaton.
Cavaton participou de várias conversas com representantes da Prefeitura em 2017, na tentativa dos times de participar das decisões sobre o destino da área. "É uma oportunidade para a cidade de São Paulo de salvar o último oásis do futebol de várzea."
Prefeitura exclui post e se distancia de projeto anterior
Em posicionamento oficial, a Secretaria Executiva de Desestatização e Parcerias, vinculada à Secretaria de Governo Municipal, deu um passo atrás em relação ao próprio projeto que tem na gaveta (e que ilustrava o anúncio público feito nesta semana) e alegou que nesta etapa ainda não há qualquer definição sobre o uso do espaço.
"Após a conclusão desta fase, o percurso de modelagem para este projeto prevê etapas como consulta pública, audiência pública ou mesmo o atendimento de entidades organizadas que solicitem alinhamento com a Administração", diz um trecho da nota enviada ao UOL Esporte.
O texto argumenta que a imagem usada na publicação é "uma representação meramente ilustrativa, que consta do acervo da Prefeitura". A Secretaria de Desestatização e Parcerias excluiu a publicação que fez anteriormente nas redes sociais e o refez com outra imagem. Na prática, o projeto e os debates realizados há cinco anos com os times de várzea e outras partes interessadas foram esquecidos.
Várzea resiste por disputa judicial
Joga-se futebol de várzea naquele terreno desde o final dos anos 1950, quando o primeiro time se instalou ali. Com o passar das décadas, o local virou um eixo do esporte amador em São Paulo e também o último grande espaço dedicado à atividade na região central da cidade.
Os campos de terra resistiram à especulação imobiliária por causa de uma arrastada disputa nos tribunais. A Prefeitura e o Governo Federal travaram uma longa batalha na Justiça pela propriedade do terreno, que tem cerca de dois quilômetros quadrados. Não fosse este imbróglio de décadas, o futebol de várzea ali talvez já tivesse sumido, o destino mais comum da maioria dos espaços que um dia serviram ao esporte amador na capital.
Entre idas e vindas, enquanto o caso ficou parado no Supremo Tribunal Federal (STF), os governos chegaram a um acordo no mês de dezembro, e a União comprou o terreno por R$ 25 bilhões. A pista e a estrutura serão propriedades do Governo Federal, mas a área vizinha que abriga os campos fica com a Prefeitura — ou, no futuro, com a iniciativa privada.
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