Topo

De elogio da Fifa a denúncias de assédio, era Caboclo acaba hoje na CBF

Rogério Caboclo, presidente da CBF, entre os presidentes da Conmebol e Fifa, Alejandro Domínguez e Gianni Infantino - Lucas Figueiredo/CBF
Rogério Caboclo, presidente da CBF, entre os presidentes da Conmebol e Fifa, Alejandro Domínguez e Gianni Infantino Imagem: Lucas Figueiredo/CBF

Igor Siqueira

Do UOL, no Rio de Janeiro

24/02/2022 04h00

Em um auditório cheio de convidados VIP, o presidente da Fifa, Gianni Infantino, usava uma mistura de português com espanhol para exaltar a posse de Rogério Caboclo como presidente da CBF. Nas palavras dele, era muito importante para o futebol mundial que a entidade máxima do futebol brasileiro fosse "uma associação forte, poderosa e profissional". Quase três anos depois daquele 9 de abril de 2019, presidentes das 27 federações estaduais voltam ao mesmo prédio, hoje (24), para uma assembleia-geral que vai referendar mais uma punição a Caboclo

Pela interpretação interna do estatuto da CBF, isso irá terminar de vez o mandato do dirigente já afastado da entidade.

Não há mais a pompa de Infantino ou o simbolismo da presença de Alejandro Domínguez, presidente da Conmebol, que também veio à posse. Há o desejo acelerado de virar a página, ingressar em mais um processo eleitoral e movimentar o xadrez do poder no círculo que tem como voz mais forte as entidades estaduais.

  • Veja análises e últimas notícias do futebol no UOL News Esporte com Domitila Becker:

A imagem de uma casa arrumada e "profissional", como citou o presidente da Fifa, era a mensagem que Caboclo queria passar. Mas tropeços pessoais fizeram o projeto fracassar. O de maior repercussão, a denúncia de assédio moral e sexual feita por uma funcionária da entidade. Por isso, Caboclo já foi suspenso por 21 meses. O segundo, que gera a assembleia de hoje, é o assédio moral ao diretor de tecnologia da CBF, Fernando França. A Comissão de Ética aplicou mais 20 meses. Somadas, as penas chegam a 41 meses, extrapolando o mandato para qual Caboclo foi eleito em 2018.

O processo envolve temas e termos jurídicos, mas é abastecido pela política. Nesse campo, bem antes do erro na conduta com a funcionária, Rogério Caboclo falhou. Ele termina sua passagem pela CBF isolado e sem aliados: será surpresa se a reunião não render uma confirmação da pena com o placar de 27 a 0.

Caboclo foi alçado ao poder carregando consigo uma imagem de dirigente sério, implacável e bom gestor financeiro. Quando era diretor executivo de gestão, era a pessoa que dizia "não" a alguns pedidos de federações que não faziam sentido para a lista de gastos da CBF. A bênção de Marco Polo Del Nero foi crucial para que fosse eleito em um pleito com candidato único.

"Ele aprimorou a qualificação que Marco Polo tinha dado, fez um grande trabalho do ponto de vista administrativo. Fechou grandes contratos, arrecadou valores consideráveis. Eu, pessoalmente, tinha bom relacionamento com ele. Mas, como ele nunca foi político, ele não soube se relacionar politicamente com os pares. Marco Polo sempre foi querido, exímio político. Rogério é executivo", avalia Evandro Carvalho, presidente da Federação Pernambucana.

Cachorro Paçoca vira motivo de piada

Hoje em dia, Del Nero virou inimigo de Caboclo. E ações do cartola ao longo do mandato se tornaram motivo de piada em conversas informais nas rodinhas do futebol. Uma delas aponta que Paçoca, o cachorro da família Caboclo, viajou mais no avião da CBF do que qualquer dirigente.

De fato, planilhas sobre voos da entidade mostram que o animal era passageiro recorrente. Paçoca, inclusive, é pivô involuntário de uma cena constrangedora descrita pela funcionária que fez a primeira denúncia à Comissão de Ética contra Caboclo. O relato dá conta de que o dirigente ofereceu a ela biscoito do cachorro.

Na posse, Caboclo anunciou um pacote de medidas que se propunham a caminhar na rota do profissionalismo. A começar por uma nova logomarca, mais moderna, para a CBF. Ao fim daquele ano de 2019, a CBF fechou o balanço com receita bruta de R$ 957 milhões.

No cotidiano, a mudança, no entanto, se mostrou superficial na visão de dirigentes de clubes ouvidos pelo UOL — eles optam por se preservar.

Na gestão Caboclo, houve maior investimento no futebol feminino, a contratação da sueca Pia Sundhage para a seleção feminina, o título da Copa América 2019 e a consolidação do VAR.

Rogério Caboclo posa ao lado da nova treinadora da seleção feminina de futebol, Pia Sundhage - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Rogério Caboclo posa ao lado da nova treinadora da seleção feminina de futebol, Pia Sundhage
Imagem: Reprodução/Instagram

Mas as reclamações dos clubes não pararam, especificamente em relação à arbitragem. Leonardo Gaciba, presidente da Comissão de Arbitragem contratado por Caboclo, foi demitido ano passado por Ednaldo Rodrigues, atual presidente em exercício.

Centralização do poder e vinho

Caboclo também anunciou o projeto de construção de um centro de desenvolvimento do futebol. Mas a burocracia impediu que os trabalhos avançassem ao longo do mandato. O dirigente propagou que se reuniria periodicamente com um chamado "conselho de craques", formado por ex-jogadores e técnicos. Mas o que se viu foi um isolamento gradativo nas tomadas de decisão, em geral, no comando da CBF.

"Ele passou a ser um personagem muito centrado e centralizador. Aí, ele começa a tropeçar. Quando o novo palco estava construído, o personagem principal começou a não compreender o que chamaria de papel de estadista. Ele perdeu essa compreensão de como ele poderia ser estadista do futebol. Começou a personificar a presidência e centralizar o comando", disse o ex-secretário-geral da CBF, Walter Feldman, em entrevista ao UOL pouco depois de ser demitido da entidade.

Feldman, inclusive, tinha esse papel político, de conciliador, nessa CBF de Caboclo. Na verdade, até antes, quando Marco Polo Del Nero — enrolado no Fifagate — optou por não dar as caras mais à imprensa.

O secretário-geral na ocasião teve mais peso na articulação das pautas da CBF, seja no âmbito interno, junto a clubes e federações, ou no externo, com entes públicos e governamentais. Ao fim das contas, virou um traidor, nas palavras de Rogério.

Nos últimos meses no poder, cenas constrangedoras passaram a minar o trabalho de Caboclo. Um dos episódios foi aparecer para uma reunião virtual com os clubes com sinais de embriaguez. A funcionária que o acusou de assédio, inclusive, relata que o consumo de vinho durante o expediente era recorrente.

Desgaste chegou à seleção

Em termos estratégicos, Caboclo colocou as manguinhas de fora, em um voo solo, já na fase final do mandato, puxando para o Brasil a organização da Copa América 2021, em um momento controverso e sensível em relação à pandemia. A proximidade com o presidente Jair Bolsonaro foi crucial. Com direito a uma ligação às 6h.

Rogério Caboclo, então presidente da CBF - Thiago Ribeiro/AGIF - Thiago Ribeiro/AGIF
Rogério Caboclo, presidente da CBF
Imagem: Thiago Ribeiro/AGIF

No entanto, isso gerou a perda de suporte até mesmo dentro da seleção brasileira, o último reduto de tranquilidade na gestão Caboclo, que já tinha perdido apoio de toda diretoria. A denúncia da funcionária já corria nos bastidores. Mas veio a público em 4 de junho, quando o GE publicou a informação. Dois dias depois, veio o afastamento preventivo e Caboclo nunca mais voltou à cadeira de presidente, por mais que tenha tentado posteriormente.

Caboclo atualmente segue morando no Rio e faz o trajeto para São Paulo com frequência. Profissionalmente, concentra esforços nos negócios da família. Mas aproveita o conforto que obteve ao longo da vida - como presidente da CBF, o salário bruto já estava na casa dos R$ 340 mil. Em um passeio recente, pela orla da praia da Barra da Tijuca (zona oeste do Rio), deu de cara com Castellar Neto, um dos vices da CBF, e mais dois dirigentes de federação. O contato, segundo um dos envolvidos, foi cordial.

Caboclo sempre negou que tenha cometido assédio contra a funcionária, que voltou ao trabalho em setembro e segue alocada na entidade agora gerida provisoriamente por Ednaldo Rodrigues. Caboclo também desmente a versão de Fernando França, que trouxe a segunda condenação. Mas nada disso foi suficiente para livrá-lo do afastamento da presidência.