'Estamos perto de uma tragédia': jogadores falam da violência no futebol
Em pouco mais de um ano, o futebol brasileiro ficou marcado por casos de violência que poderiam ter tirado a vida de atletas e membros de comissões técnicas. Desde a emboscada ao ônibus do São Paulo, no início de 2021, até os recentes episódios de ataques às delegações de Grêmio e Bahia, a tensão aumentou, mas atitudes e medidas concretas para conter essa onda de violência ainda não foram apresentadas.
"As coisas estão chegando no limite de uma tragédia e a gente não precisa esperar que isso aconteça pra tomar atitude", alerta o goleiro Júlio César, hoje no Red Bull Bragantino, e que nos tempos de Corinthians temeu pelo pior durante uma invasão de torcedores no CT Joaquim Grava.
Mas quem, de fato, pode agir para evitar que essa linha fatal seja cruzada?
Há uma visão entre atletas e dirigentes de que brechas na legislação brasileira e uma suposta brandura das autoridades servem de incentivo para que novos atos violentos sejam cometidos. Também pouco se vê de prática nas reações de dirigentes, políticos e federações quando esses crimes acontecem. E cada vez mais há uma cobrança na classe dos jogadores para que eles se unam mais e deixem de depender de cartolas e sindicatos na hora de lutar por seus direitos. Inclusive pelo direito de trabalhar sem correr risco de morte.
Os últimos atentados
O São Paulo vivia má fase no Campeonato Brasileiro de 2020, vendo o título escapar depois de longas rodadas na liderança. Alegando preocupações com a segurança do elenco no trajeto até o Morumbi para enfrentar o Coritiba, o clube alterou a rota usual para o estádio em segredo, mas mesmo assim o ônibus da delegação foi alvo de ataque de torcedores, que utilizaram bombas caseiras com pregos e bolas de bilhar e carregavam ainda outras armas brancas. A Polícia Civil investiga uma possível participação de um conselheiro do clube no atentado, que, segundo a perícia, poderia ter deixado vítimas fatais. Foram detidas 14 pessoas, que hoje respondem em liberdade pelo incidente.
22/1/2022: faca no gramado
Na semifinal da Copa São Paulo, o Palmeiras vencia o São Paulo por 1 a 0 quando, aos 50 minutos, torcedores do clube tricolor invadiram o campo e tentaram agredir atletas palmeirenses que estavam no campo de defesa. A polícia agiu rápido e, com a ajuda dos próprios jogadores do São Paulo, controlou a torcida. Após o tumulto, foi encontrada uma faca no gramado, atirada das arquibancadas. Até hoje, o culpado não foi identificado.
24/2/2022: bomba explode dentro de ônibus
O ônibus da delegação do Bahia foi atacado antes do jogo contra o Sampaio Corrêa, pela Copa do Nordeste, na Arena Fonte Nova. A bomba atirada dentro do veículo gerou estilhaços que acertaram diversos jogadores, principalmente o goleiro Danilo Fernandes. Por poucos centímetros, Danilo escapou de ter ferimentos graves nos olhos. Já no dia seguinte, a Polícia Civil encontrou imagens do atentado, realizado na Avenida Bonocô, em Salvador. É possível ver seis torcedores pararem carros na via contrária ao trajeto do ônibus e se posicionarem no canteiro central da avenida para atirar pedras e bombas. Os veículos pertenciam a integrantes da torcida organizada Bamor.
26/2/2022: jogador sofre traumatismo craniano em ônibus
Dois dias depois, um novo ataque foi registrado no Brasil. A diferença para os episódios com Bahia e São Paulo é que neste último o ato foi cometido por torcedores adversários. O alvo foi o ônibus da delegação do Grêmio, atingido na chegada ao Beira-Rio, onde seria disputado clássico com o Internacional. Uma das pedras atiradas acertou o jogador paraguaio Villasanti, que sofreu traumatismo craniano e precisou ser levado a um hospital, mas já está recuperado. Os gremistas dizem estar reunindo provas sobre o caso e querem que o Inter seja responsabilizado pelo ataque. O Tricolor Gaúcho, inclusive, já protocolou notícia infração contra os colorados no Tribunal de Justiça Desportiva (TJD-RS)
Sentimento de impunidade
O discurso mais comum de se ouvir após casos de violência no futebol envolve a impunidade de quem comete os crimes. Dirigentes, federações, empresários, clubes, jogadores: a maioria entende que há brechas e falta de rigor no cumprimento das leis, permitindo que pessoas comprovadamente culpadas sigam circulando livremente pelos estádios de futebol do país.
"Tudo começa pelas leis e como elas são cumpridas ou não. Vimos agora um torcedor entrar até com faca no gramado na Copa São Paulo e nada acontecer. O futebol é reflexo do país. O cara é criminosos e pode esconder o rosto, fica impune. Eles sabem que se jogarem uma pedra, é só ficar escondido um tempo, deixar passar o flagrante, pagar umas cestas básicas e ficar livre. Não tem nenhuma penalidade", aponta o ex-lateral Lúcio, que defendeu o Palmeiras no início dos anos 2000 e sofria com ataques verbais de torcedores com frequência.
Infelizmente, não é só no futebol. Hoje temos visto muitos casos de violência contra mulheres, contra negros. Muita gente luta para acabar com esse problema, que está cada vez mais exposto. É hora de dar um basta em todo este tipo de violência dessas pessoas que estão respondendo a tudo com muito ódio".
Júlio César, goleiro do Red Bull Bragantino
A coisa está saindo do controle. É um reflexo da violência que nós estamos tendo na nossa sociedade e não vejo ninguém ser punido. Você tem condição de identificar os principais indivíduos que participaram de um ato e eles têm que ser punidos. Estão fazendo com que haja risco de morte".
Geninho, técnico de futebol
CBF, federações e a ausência de punições esportivas
Legislação e autoridades brasileiras são apontadas como culpadas por essa suposta impunidade, mas o universo do futebol no país também parece viver na inércia quando o assunto é violência. Com as relações promíscuas entre clubes e torcidas organizadas já enraizadas, pouca ou nenhuma ação se vê. Pelo contrário. Dirigentes abrem as portas dos clubes para promover encontros forçados e ameaçadores entre líderes de suas torcidas com técnicos e jogadores.
As federações estaduais e a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) também engatinham no combate à violência. Em resposta aos recentes ataques na Bahia e no Rio Grande do Sul, a CBF anunciou a criação de um grupo de estudos. A decisão foi tomada durante a última Assembleia Geral da entidade, que envolveu também seus clubes afiliados. Não há nenhum prazo para divulgação desses estudos, que serão elaborados por representantes de diferentes segmentos do esporte e da sociedade. Nos últimos anos, o que se viu foram punições com jogos realizados sem público e conversões de penas com pagamento de multas ou ações sociais.
"Deveria ter uma punição maior, inclusive no âmbito esportivo. As federações e a CBF precisam tomar algumas medidas para que essas atitudes rendam punições também para os clubes. Se o clube não tiver nada a ver, que a torcida organizada seja proibida de ir ao estádio. Se chegar no limite de uma agressão a membros do clube, o time precisa ser punido e perder pontos", argumenta o técnico Geninho, sem clube, aos 73 anos.
Se um torcedor de um clube cometer algum ato violento, o clube precisa perder pontos. Talvez assim a torcida comece a se policiar, pensar que vai perder mais do que mando de campo".
Lúcio, ex-lateral de Palmeiras e Grêmio
Se acontecer um caso, o clube vai ser punido? Aí eu quero ver. Não adianta ficar com essa conversinha, porque se acontecer com o Xique Xique da Serra, a CBF vai lá e pune, suspende por um ano. Quero ver se punir o Flamengo, o Corinthians e o Palmeiras".
Rinaldo Martorelli, presidente do Sindicato de Atletas Profissionais do Estado de São Paulo (Sapesp)
Atletas pecam em falta de união?
O ex-lateral Lúcio hoje tem 42 anos. Está aposentado desde 2020. E não vê falta de ação apenas nas autoridades, federações ou dirigentes. Para ele, os jogadores brasileiros também deveriam se mobilizar mais. "Deveríamos ter uma união maior, mas aqui é assim: se estou na Série A e não me sinto prejudicado, não me importo. Quando saí de times grandes e passei a jogar em divisões inferiores, senti isso na pele", observa Lúcio.
Para ele, há exemplos muito claros do poder da união dos atletas, como os protestos contra o racismo que acontecem antes de todos os jogos da Premier League, na Inglaterra, ou as recentes mobilizações de atletas da Espanha, que chegaram a adiar o início da Primeira Divisão até que dívidas com jogadores de clubes e ligas menores fossem sanadas. Até mesmo as estrelas de Barcelona e Real Madrid costumam participar dos protestos.
"Quando alguém quer realmente mexer naquela casa de marimbondo, parece que tem alguma coisa que impede. Como se fosse um 'para por aqui porque senão tu vai começar a perder regalias'. Então, todo mundo deixa quieto. Lembra do movimento Bom Senso? Os jogadores se uniram, fizeram uma comissão e pode ver que sumiu. Então quer dizer o quê?", questiona o ex-lateral.
O papel dos sindicatos de atletas
No Brasil, as entidades que representam os jogadores ainda possuem pouca força, diferentemente do que ocorre no Uruguai, por exemplo. Lá, uma associação de atletas foi criada para coexistir com a confederação nacional de ligas e clubes, em um movimento que trouxe mais representatividade para jogadores, para a modalidade feminina e para a arbitragem e afetou até mesmo negócios envolvendo patrocínios e transmissões.
Isso é algo que parece bastante distante da realidade brasileira. Em partes, por essa inação dos jogadores, que custam a entender a importância de se unirem e se defenderem como classe.
"Se eles representam os atletas, deveriam tomar alguma posição, pedir uma reunião com autoridades competentes e entender o que estão planejando. Se não, serve para quê? Tem que haver alguma coisa mais organizada, vir de cima para baixo. O jogador tem que se sentir respaldado. A gente lamenta porque é uma coisa ruim. Quem perde acima de tudo é o futebol", contesta Geninho.
Com a palavra, Sapesp
O presidente do Sapesp, Rinaldo Martorelli, motivado pelas cobranças que recebeu para se manifestar diante dos recentes casos de violência, escreveu um artigo em que aponta limitações para a atuação do sindicato. E reforçou a tese em entrevista ao UOL Esporte.
"Todo mundo, quando acontecem casos como esses, pergunta: 'por que o sindicato não faz nada?'. Mas o que o sindicato pode fazer? O sindicato tem que cobrar do empregador a garantia de segurança do empregado. É isso que a legislação permite. Se um clube sabe que pode ser rebaixado, como foi o caso do Paraná Clube, que enfrentou uma invasão, deveria ficar mais atento a isso e garantir a segurança. Agora, o Grêmio, que caiu em emboscada de torcida adversária, como vai adivinhar? O ideal seria ter uma agência de inteligência no futebol o tempo todo. É maluco, a violência está aí como um todo, não só no futebol. As pessoas estão descontextualizadas do que é viver em sociedade".
Eu acho que os sindicatos até tentam agir, eles trabalham pra isso, mas eu acredito que as leis do nosso país não ajudam com que a gente tenha segurança e que as pessoas sejam punidas do jeito que tem que ser".
Júlio César, goleiro do Red Bull Bragantino
Caos que persiste
Nesta matéria, o foco foi direcionado aos recentes casos de violência que colocaram em risco a vida de atletas, técnicos e outros colaboradores de grandes clubes brasileiros. São cenas que acontecem em centros de treinamento, estádios e até mesmo aeroportos. Enquanto isso, o velho problema dos confrontos entre torcidas organizadas permanece também sem solução.
Em São Paulo, entra no sexto ano a decisão do Ministério Público de permitir apenas a presença da torcida mandante em clássicos e duelos que envolvam os grandes do Estado e os times de Campinas, Ponte Preta e Guarani. Enquanto isso, casos de violência seguem se acumulando longe dos estádios. No último Majestoso, torcedores de São Paulo e Corinthians se enfrentaram em uma estação de trem e a confusão fez com que um bebê que estava no colo da mãe caísse nos trilhos e fraturasse a cabeça.
Tudo o que está acontecendo não é de hoje. A gente só vai fechando o olho, mas se a gente não der um basta, botar um ponto final nesses casos, isso ainda vai acabar em tragédia".
Júlio César, goleiro do Red Bull Bragantino
* Colaboração para o UOL, em São Paulo
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