Abel Braga suspira a morte do filho: "Ninguém nessa casa sorri como antes"
Abel Braga está aposentado. Depois de deixar o Fluminense, demorou alguns dias para anunciar a decisão porque estava à espera de um convite da Suíça, onde trabalhou em 2021. Não aconteceu. Do "calendário insano" que cumprem os times brasileiros, Abel guarda belas lembranças, além de uma dor terrível no ciático —que irradia para a perna e "é um negócio louco".
Foi essa, aliás, a razão pela qual pediu demissão do Flu. Disse ao presidente do clube, depois de uma sequência de viagens desgastante, que não aguentava mais. A idade pesa —ele completa 70 anos em 1º de setembro. Se afastar do futebol, no entanto, não é opção: Abel quer ser coordenador técnico a la Muricy Ramalho -cuja história no São Paulo ele compara à sua trajetória no Fluminense.
O treinador recebeu o UOL Esporte em sua casa, no Rio de Janeiro, para esta entrevista. Em um quartinho, preenchido por quadros que estampam homenagens dos clubes pelos quais passou -com destaque para o tricolor carioca e o Internacional-, ficam em evidência as fotos do filho João Pedro, morto em 2017. "Se é difícil falar dele? Difícil é não falar. Tem foto por tudo que é lado. É um vazio que não vai ser preenchido nunca".
Era uma segunda-feira, Dia das Almas, segundo o espiritismo. Toda segunda, Abel acende uma vela para a alma de João Pedro na capelinha construída no terceiro andar de seu triplex -onde, diz o treinador, ninguém mais foi feliz como era. A saudade é diária, e conviver com o luto, para Abel, é uma ferida aberta.
O tempo que não cura
O suspiro firme a cada frase completa se torna o alicerce de Abel Braga quando fala da vida -e da morte- de João Pedro. "O futebol me ajuda a preencher, mas não preenche por completo. O mais importante não foram os títulos que conquistei, mas os amigos que fiz. E perder um filho aos 19 anos é um negócio...". Ele respira.
"Eu estava em treino; minha mulher não estava em casa. O João tinha epilepsia, deve ter... Ele tinha de tomar um remédio por dia. Era um por dia. Deve ter saído na sexta, e aí não tomou o remédio porque ia tomar cerveja, e talvez na quinta também não. Não sei. Ele teve uma convulsão e caiu. É terrível. Terrível. Ninguém nunca mais sorriu como sorria antes nessa casa."
A mulher do treinador, Claudia Braga, ainda vive à base de antidepressivos e precisa se consultar semanalmente com um psiquiatra. São os resquícios inapagáveis da perda e da saudade. "Não é a mesma coisa. Se você entra no meu quarto, toma até um susto, de tanta foto dele que tem".
Católica —"quer dizer, eu sou, minha mulher já não acredita em mais nada"—, a família de Abel Braga se agarra às orações para seguir em frente. "A gente vai seguindo. Estou leve, tenho momentos felizes, mas tem um buraco no meu peito. E eu sei que é um buraco que nunca vai fechar".
"Minha mulher é bonita. Linda. Não sorri mais. Sábado, a gente foi jantar em um restaurante incrível. Para mim, não tem restaurante francês melhor no Brasil do que o La Bourgogne. É uma coisa de louco. Em determinado momento, estávamos só eu e ela, e ela fixou o olhar em algum lugar. Ficou distante. Perguntei o que era, mas ela desconversou. Eu sei o que era. Ela lembra dele sempre, o tempo todo. Só que tenta não chorar na minha frente ou na frente do nosso filho, Fábio."
Fábio, segundo o pai, foi uma rocha. Abel conta que o primogênito estava em casa e foi o primeiro a ver o irmão morto. Relutou, entretanto, a tomar remédio e ir ao psiquiatra. "Só que não existe super-homem para isso", Abel pontua. Fábio parou de jogar futebol para ser o alicerce da mãe. Agora, abriu uma empresa e auxilia o pai nos negócios. "Ele é querido demais", diz o pai, ao receber uma ligação do filho durante a entrevista.
Quem ligou para Abel Braga para avisar do acidente envolvendo João Pedro foi uma amiga de Claudia, que estava com ela no momento da tragédia. Ao receber a ligação, o técnico ouviu da mulher que havia acontecido "um negócio chato com o João". "Voltei como um louco. O Fábio não atendia o telefone, também não conseguia falar com a minha mulher. Na hora, pensei 'meu filho morreu'. Quando cheguei no prédio, vi carro de bombeiro, ambulância. Encontrei a Claudia chorando e tremendo na portaria, não saía do lugar".
"Chega. Já falei bastante disso. Acho que não consigo mais."
Sem Suíça, Abel se espelha em Muricy
Sem o convite para voltar à Suíça, onde teria qualidade de vida e uma agenda menos abarrotada, Abel Braga quer ser coordenador técnico. Como treinador, no Brasil, não quer mais trabalhar, e o motivo da decisão é o calendário intenso de competições e jogos. "Foi por isso que pedi para sair do Fluminense", explica.
"O Mário Bittencourt não me pressionava, sempre me deixava a vontade para exercer meu trabalho. Falou para mim que o clube estava em reconstrução financeira. Além dos títulos que tínhamos que disputar, o Fluminense não podia cair para a Série B porque a perda das cotas seria o desastre financeiro completo. Como o time montado era muito bom, eu dizia para ele que essa chance de rebaixamento era improvável e que íamos ganhar alguma coisa. Logo ganhamos a Taça Guanabara e o Carioca, depois de 10 anos".
"Mesmo assim, eu não estava dando conta. Num domingo, jogamos o Brasileiro. Na segunda, viajamos para Barranquilla, na Colômbia, para a Sul-Americana. Jogamos na quarta. Voltamos para o hotel e pegamos um voo para Manaus, já que sábado jogaríamos em Cuiabá e lá não tem aeroporto internacional. Chegamos no Mato Grosso sexta de madrugada, os jogadores sem dormir -eu, consequentemente, sem dormir. Jogamos. Voltamos para o Rio de Janeiro na mesma madrugada. Chegamos no domingo de Páscoa. Segunda-feira, treino. Na terça, jogo no Maracanã pela Copa do Brasil. Cheguei para o presidente no dia seguinte e disse: 'Não dá mais'".
"Todo mundo da minha geração que ainda está no futebol paga um preço muito alto. O Zico que o diga, botou uma placa no quadril. Eu só operei o joelho, mas sofro mesmo é com o citático. A dor irradia na perna e é um negócio louco. Eu não suporto mais essa rotina, não é só desgaste físico. É mental também. Como vou motivar um grupo de 27 jogadores desse jeito? Quando me contratou, o presidente do Flu me perguntou se eu ainda tinha tesão. Eu sou apaixonado por se treinador -muito mais do que era quando jogador. Mas prometi a ele que avisaria quando deixasse de estar feliz. Eu não estava mais feliz. E para motivar um jogador, ele precisaria me ver motivado. Uma hora, eu não ia conseguir mais."
Ele quer, agora, aprender e se desenvolver como coordenador técnico que, segundo Abel, é um cargo de liderança acima de tudo. Antes de decidir o novo rumo, o treinador diz que conversou muito com Muricy Ramalho, que, hoje, exerce exatamente essa função no São Paulo. "A relação Muricy-São Paulo é parecida com a relação Abel-Fluminense. Também fui jogador e treinador".
Abelão treinou o Flu pela primeira vez em 2005, e já chegou conquistando com o tricolor o Carioca. Teve, desde então, mais três passagens vitoriosas pelo clube. Em 2022, encerrando sua trajetória como técnico, recebeu do clube uma homenagem ao dar seu nome ao campo 2 do centro de treinamento.
Um contador de histórias
O sucesso e a longa carreira Abel atribui à própria personalidade que, segundo ele, foi o que fez com que conquistasse a confiança de todos os clubes pelos quais passou. Ele relembra uma das histórias de início de carreira que, diz, é das mais marcantes que já protagonizou.
Enquanto técnico do Santa Cruz, de Recife, Abel foi campeão em cima do principal rival do clube, o Sport. Dois preparadores físicos do Santa, assim que o time venceu o favorito, foram contratados pelo rival -e, logo, a proposta chegou a Abel. "Eu disse que não iria, que não poderia fazer isso com o presidente do Santa Cruz, que me deu uma chance".
Abel conta que Marcos Soares foi um dos preparadores levados do Santa para o Sport. Um dia, Marcos o convidou para almoçar e tomar uma cerveja. "A gente era muito amigo". Durante o encontro, segundo o treinador, o amigo disse que precisava ir até um lugar com certa urgência. "Ele pagou a conta, me colocou no carro e a gente começou a andar. Daí, começamos a subir. Perguntei aonde íamos, mas ele me enrolou. Até que chegamos a uma mansão, coisa de louco. Tinha dois caras com fuzil na porta", conta.
Marcos teria pedido que Abel se acalmasse. Eles entraram. "De repente, aparece o presidente do Sport, Homero Lacerda. Ele queria falar comigo. Cumprimentei. Olhei para a mesa e não acreditei. Tinha camarão, lagosta, champanhe. Ele pediu que eu fosse trabalhar com eles, mas eu neguei mais uma vez. Disse: 'Não posso fazer isso com o Santa Cruz, assim como não faria com você'. Ele perguntou quanto eu queria para aceitar a proposta, e expliquei que não era uma questão de dinheiro. O Sport estava mais estruturado que o Santa Cruz financeiramente, eu iria ganhar mais. Mas ficaria mal comigo mesmo", conta Abel.
Abelão seguiu firme na decisão de recusar a proposta, o que fez com que a moral com o presidente do Santa, José Neves Filho, ficasse nas alturas. Em três meses, ao chegar para o treino, o roupeiro do clube disse que o presidente estava à espera do técnico. "Ele me disse: 'que bom que você não se trocou. Você vai para o Inter'. Ninguém tinha falado comigo ainda. Mas com ele, já. E fui."
Ali, começou uma trajetória vitoriosa e valorizada, que transformou Abel Braga. "Me descobri como técnico e como pessoa. Entendi que amava estar em campo, mas não mais como jogador. Agora, entendo que quero continuar no futebol, em outra posição. O futebol sempre vai ser a resposta. É o que quase preenche o buraco do meu peito."
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