A mão de cartas que tirou Del Nero do poder no futebol brasileiro
Nas noites de segunda-feira, o apartamento do ex-presidente da Confederação Brasileira de Futebol Marco Polo Del Nero costumava receber amigos e poderosos para jornadas de carteado. Tranca era o jogo favorito. O dia 25 de agosto de 2021 caiu, entretanto, em uma quarta-feira. Era manhã, e a seleção de convidados tinha sete dos oito vice-presidentes da CBF. Não havia cartas de baralho à mostra, mas o jogo corria a todo vapor. Aquela mão valia o poder sobre o futebol brasileiro.
No dia anterior, o então presidente da CBF, Rogério Caboclo, tinha recebido 15 meses de suspensão por assediar sexual e moralmente uma funcionária. A punição não cobria a totalidade do mandato e o clima na entidade era de incerteza quanto à capacidade política do dirigente para retornar ao cargo. Era necessária uma alternativa para manter a governabilidade do futebol nacional. A poucos quilômetros dali, também na Barra da Tijuca, os presidentes das federações se reuniam para, supostamente, debater os rumos do futebol no Brasil. Mas a decisão relevante sairia do apartamento de Del Nero. Assim era a regra não escrita desde 2012.
Del Nero está proibido pela Fifa de participar de qualquer atividade relacionada ao futebol desde 2018 — a pena era vitalícia, mas foi reduzida para um período de 20 anos. No habitat do futebol brasileiro, isso nunca foi um empecilho. Naquele apartamento, para além das rodadas de carteado, foram tomadas decisões abrangendo desde as relações entre CBF e as federações estaduais até detalhes sobre o comando técnico na seleção brasileira — contratos de técnicos, como Tite, incluídos.
Naquele 25 de agosto, a pauta era definir quem assumiria interinamente a presidência. Após discussões, quem ascendeu ao poder foi o baiano Ednaldo Rodrigues. Como sempre foi o caso na última década, só após a sinalização positiva de Del Nero que se deu início a um novo movimento nas placas tectônicas do futebol brasileiro. Desta vez, porém, o rumo foi outro. Com um gesto de suas próprias mãos, dentro do apartamento que serviu por anos como seu centro de comando, o cartola distribuiu as cartas para o começo do fim de seu reinado como chefão do futebol no país.
O jogo de cartas
Marco Polo Del Nero (na imagem acima) gosta de jogar tranca. O jogo, em duplas, consiste em um compra e troca de cartas visando à criação de sequências numéricas. A tranca do nome é simbólica: quem tem o número 3 (dos naipes pretos) pode impedir os outros de realizar um movimento. A ausência desse mesmo 3 possibilita que um jogador, quando tem as cartas certas em sua mão, passe a dominar a mesa. Tira, assim, dos seus rivais o acesso a certas sequências e pode obrigá-los a adotar estratégias menos ambiciosas.
Há quem diga que Del Nero, um dos homens mais poderosos do futebol no mundo na última década, não era craque no baralho. Quem entende o jogo de tranca e conhece a trajetória do cartola paulista, hoje com 81 anos, discorda.
Nas noites de jogatina às segundas-feiras, a ideia era formar pelo menos duas mesas com quatro jogadores. Nada de bebida alcoólica. Pizza vinha a calhar, enquanto o jogo da rodada passava na TV.
No começo, havia quem levasse a esposa, mas elas foram, aos poucos, deixando de ir. Os encontros tinham como pano de fundo o baralho, mas eram verdadeiras demonstrações de poder, oportunidades para medir e admirar a influência do homem que dirigiu a CBF, seja sentado na cadeira de presidente, seja como eminência parda, entre 2012 e 2022. Passava por ali uma seleção dos nomes mais influentes do esporte nacional.
É uma frieza na interpretação da postura das pessoas que lhe deixa muito ciente dos fatos. Você tem dificuldades de enrolar essa figura. Ele entende rapidamente seu movimento."
Walter Feldman, ex-secretário-geral da CBF, levado à entidade justamente por Del Nero.
Como no jogo de tranca, Del Nero um dia viu a oportunidade de comprar uma mesa e chegar ao poder. Ao determinar quem tinha acesso ao dinheiro, a grande ferramenta de manutenção do status quo da CBF, ele aperfeiçoou um sistema que o manteve dando as cartas até mesmo quando a Fifa o baniu do futebol.
A mão errada
Como tudo que acontece no monte olimpo do futebol brasileiro, o fim do reinado de Marco Polo Del Nero avançou de forma sutil, nas entrelinhas. Os sinais mais claros de ruptura demoraram a aparecer. É mesmo como um jogo de cartas: pelos olhares, pelos comportamentos e atitudes de cada jogador, percebeu-se algo maior em movimento.
Ednaldo Rodrigues (na imagem acima) foi eleito presidente da CBF para os próximos quatro anos em março de 2022, depois de ocupar o cargo interinamente desde aquele fatídico 25 de agosto. O baiano, ao longo de sua trajetória, já foi do bloco "rebelde" que era contra eleição de Del Nero como vice da CBF em 2012, mas posteriormente pertenceu ao mesmo grupo político do mandachuva. Em um passado mais distante, foi aliado de Ricardo Teixeira.
Embora o conjunto histórico apontasse uma continuidade, as palavras e atitudes de Ednaldo indicaram outro caminho. O novo presidente rapidamente demitiu nomes antigos da CBF, ligados a Del Nero, e falou em "purificar" a entidade. "Não fui lá para dizer amém. Passou a fase do interino. Teve uma eleição e vencemos. Quando se é interino, você tem uma missão. Com mandato de quatro anos, um projeto. E o nosso é o que faz parte da campanha: pacificação e purificação", disse ao UOL, referindo-se ao nome da chapa registrada na eleição.
Na química, purificar é o processo pelo qual as impurezas são removidas. Quais eram as impurezas da CBF? Para compreender isso, é preciso olhar para o homem que conseguiu, mesmo afastado pela Fifa desde 15 de dezembro de 2017, manter na sala da sua casa uma espécie de centro de comando do futebol brasileiro.
Co-conspirador número 12
Del Nero assumiu a presidência da CBF em abril de 2015, mas já era a principal liderança na entidade desde 2012, quando sentava-se na cadeira de vice-presidente durante o mandato de José Maria Marin (retratado na imagem acima, à direita de Del Nero). Os dois podiam ser vistos juntos em todos os compromissos oficiais, representando com tranquilidade a confederação.
As águas calmas foram navegadas por três anos, mas ficaram revoltas na manhã de 27 de maio de 2015. Marco Polo estava no hotel Bar Au Lac, em Zurique, na Suíça, que hospedava dirigentes do mundo inteiro para as reuniões na Fifa, quando recebeu a notícia: Marin havia sido preso, apontado pelo FBI e pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos como partícipe em um colossal esquema de recebimento de propina em negociações de direitos comerciais de competições. O Fifagate.
No mesmo dia, Del Nero, que sustenta até hoje sua inocência, embarcou para o Brasil. Dois dias depois, convocou uma entrevista coletiva. Durou apenas 19 minutos. O relatório do FBI, o mesmo que havia servido de base para a prisão de Marin e de dezenas de outros cartolas de vários países, descrevia — e acusava — outra figura brasileira de currículo e história impressionantemente semelhantes aos do dirigente que estava sentado no púlpito na sede da CBF.
"O co-conspirador 12 é o senhor?". A pergunta foi feita pelo então repórter do UOL Vinicius Konchinski. Del Nero negou, como negou qualquer envolvimento —ou mesmo conhecimento — das denúncias de corrupção. Cinco meses depois, o FBI nomeou o co-conspirador 12: Marco Polo Del Nero. Desde a saída às pressas de Zurique, o dirigente brasileiro nunca mais deixou o Brasil. Procurado pelo FBI e na lista vermelha da Interpol, passou a correr risco de prisão no exterior.
"Ele nunca admitiu corrupção. Ao contrário. Dizia que estava muito tranquilo, que iria sair dessa. Vivemos um período dificílimo. Mas a manutenção da calma dele, da segurança, era impressionante. Era um ataque de caráter planetário. E ele tinha que dar continuidade a todos os movimentos. Ele teve frieza para enfrentar a crise e continuar no comando político e gerencial", explica Walter Feldman, que foi secretário-geral da CBF entre 2015 e 2021.
No território nacional, suas estruturas de poder estavam bem consolidadas —apesar de depoimentos na CPI do Futebol, concluída sem indiciamentos. Depois que ascendeu ao topo do futebol brasileiro, vindo da presidência da Federação Paulista de Futebol, aprimorou na CBF uma prática iniciada pelo antecessor Ricardo Teixeira: as mesadas aos presidentes das federações estaduais. Na sua gestão, chegavam a R$ 75 mil. A prática mantinha apaziguado seu colégio eleitoral e garantia hegemonia política. Para proteger seus correligionários, Del Nero, por exemplo, foi rápido ao exterminar as conversas sobre criação de ligas, que ameaçavam os campeonatos estaduais.
Essas práticas aconteciam bem longe dos holofotes. Na verdade, os 19 minutos que Marco Polo Del Nero passou falando com a imprensa na coletiva do Fifagate são a exceção. Discreto, o dirigente mantinha atrás de uma cortina tanto sua vida profissional como a privada. Na segunda, instruía as namoradas, sempre décadas mais jovens, a adotar o silêncio.
Para preservar essa situação, Del Nero sempre contou com escudos. Feldman, trazido da política para o futebol, foi um deles. Ambos se conheceram em 2011, quando Walter era secretário municipal de Esportes de São Paulo e pediu suporte da Federação Paulista, presidida por Del Nero, para organizar um campeonato de futebol amador.
Feldman é um exemplo de que, apesar do grande poder que detinha, Marco Polo não tinha problemas em delegar responsabilidades às pessoas em quem confiava. Foi assim também com Rogério Caboclo, colocado por ele no comando dos setores financeiro e administrativo, e que depois viria a ser seu sucessor. A exceção era a atividade mais rentável da CBF: a seleção brasileira.
Sem ser presidente, trouxe Dunga e renovou com Tite
A Alemanha tinha acabado de ser campeã do mundo no Maracanã, vencendo a Argentina na prorrogação. Naquela noite, 13 de julho de 2014, ainda atordoado pelo 7 a 1 na semifinal do Brasil diante dos alemães, Del Nero chamou Gilmar Rinaldi, ex-goleiro da seleção e então agente de jogadores.
"Lá para umas 22h ele me ligou. Estava na casa do Marin e disse que queria me ouvir um pouco, sobre o que achava sobre futebol. Eu comecei a falar algumas coisas que eu tinha achado errado na Copa. Ele falou: 'Você pode passar às 10h aqui na casa do Marin amanhã?' Eu fui", narra Gilmar, que se tornou coordenador de seleções dias depois daquela conversa.
Era o início do processo de reconstrução da seleção brasileira depois da maior derrota em 100 anos do time mais vencedor do planeta —liderado, em cada detalhe, por Del Nero. Quando Gilmar montou uma lista de cinco treinadores, todos estrangeiros, para assumir a seleção, não conseguiu contar nem quem era o primeiro nome. Antes, Del Nero fez uma pergunta: "Você tem alguma coisa contra o Dunga?" Era uma questão retórica. O ex-volante (na imagem acima) foi treinador na Copa de 2010 e já estava no sofá ao lado de Marin e Del Nero. O cargo era dele.
"Ele dizia para a gente: 'A CBF tem um papel único em relação às seleções e isso é tarefa do presidente. Não quero interferência de ninguém, nem de Walter nem de Caboclo. Quem trata desse assunto aqui sou eu'", lembra Feldman.
Dunga foi demitido em 2016, deixando o Brasil na sexta posição nas Eliminatórias, fora da zona de classificação para a Copa. A falta de produtividade da seleção tirava Del Nero do sério, embora ele nunca perdesse a pose de aristocrata na hora de criticar.
Antes de sacar Dunga, sofreu pressão para contratar Jorge Sampaoli, que, em janeiro de 2016, tinha deixado a seleção chilena. Não deu trela. "Nunca sugeri o Sampaoli. Seu nome foi ventilado por alguém que não me lembro e respondi 'não'. Tinha Tite em mente por seus méritos. Ele se negou a qualquer conversa inicial, enquanto a seleção tivesse técnico. Quando decidi fazer mudanças, saíram Dunga e Gilmar. Aí, abriu-se o caminho para conversações com Tite", explica, ao UOL, o próprio Del Nero.
Tite reorganizou a equipe e levou o Brasil à Copa do Mundo. Del Nero não foi à Rússia. Já tinha sido afastado pela Fifa e a presidência da CBF estava com Coronel Nunes, dirigente das antigas que ocupava o lugar para cumprir as ordens de quem de fato mandava. O chefe de delegação no Mundial foi Rogério Caboclo, àquela altura já eleito presidente para o mandato seguinte —escolha de Marco Polo.
Em 2021, áudios de uma conversa entre Caboclo, então CEO da CBF, e Edu Gaspar depois da Copa de 2018, revelados pela ESPN, evidenciaram que era Del Nero quem ainda mandava. Veio dele o aval para renovação de Tite.
O poder escorre pelas mãos
Com o afastamento de Rogério Caboclo da presidência da CBF em junho de 2021, coube mais uma vez — foi a terceira — ao vice-presidente mais velho da entidade, Coronel Nunes, assumir o cargo interinamente. Ninguém na confederação irá admitir publicamente, mas o histriônico Nunes sempre serviu como uma espécie de laranja, ocupando a cadeira para que Del Nero desse as cartas nos bastidores.
Nunes (na foto acima) protagonizou alguns episódios peculiares como presidente. No mais notório deles, traiu acidentalmente os países da Conmebol ao romper, em 2018, um acordo amarrado para que todas as seleções americanas votassem na candidatura de EUA, Canadá e México para a Copa de 2026. Nunes votou no Marrocos.
Pelo histórico do interino, quando Caboclo foi afastado em 2021, a presença de Nunes deixou uma CBF sem um dono específico da caneta. Os diretores tocavam suas respectivas áreas, enquanto os vices se aproximaram para manter a roda girando, inclusive na seleção. Todos os lados, em um primeiro momento, tinham se unido para derrubar o presidente —tendo na denúncia de assédio a oportunidade para isso. Agora, era preciso definir o futuro de fato da confederação.
Naquela reunião de 25 de agosto de 2021, havia uma fila de candidatos para o lugar de Nunes. Gustavo Feijó queria. Francisco Novelletto, também, assim como Ednaldo Rodrigues e Castellar Neto. Fernando Sarney não desejava esse holofote, enquanto Marcus Vicente e Antônio Aquino Lopes não foram nem cogitados. Cada um com sua história política no futebol e todos ligados pela aliança que, em 2018, os levou à chapa de Caboclo.
No meio do futebol, ninguém fala abertamente sobre a reação de Del Nero e sobre o quão ativa foi a voz dele naquela situação. Há quem despiste e diga que, depois de muita conversa, ele aceitou a sugestão dos vices de que Ednaldo seria o nome adequado para o momento. Outras figuras políticas dizem que a atitude de Del Nero foi mais direta, tendo ele escolhido Ednaldo.
Como foi durante a última década, o que aconteceu na casa de Del Nero ficou na casa de Del Nero. Da porta para fora, há apenas versões. É, mais uma vez, como um jogo de cartas. Cada jogador expressa suas palavras e emoções de acordo com os elementos que tem na mão e suas aspirações dentro do jogo.
O próprio Ednaldo, publicamente, nega que Del Nero teve papel decisivo na sua ascensão. A decisão teria vindo, segundo ele, de uma reunião já na CBF, somente entre os vices e sem Marco Polo. "Eu fui escolhido pelos vices na CBF. A ata e as assinaturas foram processadas lá", diz ele, que presidirá a entidade até março de 2026.
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