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Barcelona está 'vendendo almoço para comprar jantar'. Qual o futuro disso?

Robert Lewandowski foi apresentado para a torcida do Barça no Camp Nou - Reprodução/Twitter
Robert Lewandowski foi apresentado para a torcida do Barça no Camp Nou Imagem: Reprodução/Twitter

Thiago Arantes, colaboração para o UOL em Barcelona

28/08/2022 04h00

Durante toda a temporada 2022-23, a cada vez que Lewandowski e cia. entrarem em campo, o Barcelona estará em busca de algo além das vitórias e títulos. Não é exagero dizer que a equipe catalã joga para garantir a própria existência - pelo menos no modelo em que se tornou conhecida mundialmente como "mais que um clube".

Para entender a situação atual, é necessário voltar a 2021. No dia 6 de outubro do ano passado, diante de uma plateia de dirigentes e de milhares de sócios e torcedores que assistiam ao vivo pelo Youtube, o CEO do clube, Ferran Reverter, mostrou os resultados de uma auditoria externa contratada para revisar as contas do clube catalão. A conclusão, dita sem meias palavras, foi aterrorizante: "Se fôssemos uma sociedade anônima, seria motivo de falência".

Com uma dívida de 1,4 bilhão de euros (7 bilhões de reais), queda no faturamento e uma folha salarial inchada, o Barcelona tinha dois caminhos a seguir: o mais conservador seria redimensionar as expectativas e equilibrar as contas lentamente, num processo de reconstrução que poderia levar de cinco a dez anos. Joan Laporta, presidente do clube, escolheu a via oposta: uma estratégia ousada que ele mesmo batizou de "palancas" (alavancas, em português).

"Eu não gosto desse nome. Na prática, o que o clube fez foi vender ativos", resume Marc Menchén, diretor do site 2Playbook, especializado em negócios do esporte. Desde o fim da temporada 2021-22, o Barcelona já usou 4 "alavancas". Para evitar o dialeto de Laporta, o clube vendeu 4 lotes de ativos.

As duas primeiras vendas foram de frações de direitos de TV de La Liga dos próximos 25 anos - primeiro foram negociados 10%, depois mais 15%, com a empresa de investimentos Sixth Street. Assim, o Barcelona recebeu um adiantamento de 25% do valor que ganharia com a venda de direitos durante este período. Ou seja, nos próximos 25 anos, receberá apenas 75% do valor a que teria direito; em 2021-22, o clube faturou 161 milhões de euros anuais desta fonte.

As "alavancas" 3 e 4 foram acionadas vendendo partes iguais (24,5% + 24,5%) do Barça Studios, o braço multimídia do clube, que engloba a Barça TV além do departamento responsável por tecnologias como tokens e NFTs. Com essas quatro ações, o clube arrecadou cerca de 800 milhões de euros (4 bilhões de reais) de forma imediata.

"É importante dividirmos as alavancas em duas partes", explica o consultor financeiro Marc Ciria, diretor da Diagonal Inversions. "A venda dos direitos de TV faz com que o clube não tenha prejuízo neste ano fiscal. O Barcelona teria 150 milhões de euros de prejuízo, e agora terá um lucro aproximado de 90 milhões. Além disso, o clube também precisa ir sanando outros prejuízos de quase 500 milhões. A diretoria tem que acabar o mandato com um resultado positivo das contas, sob o risco de ter responsabilidade patrimonial. Já os 200 milhões da venda de 49% do Barça Studios foram usados para ir ao mercado e comprar jogadores".

Nesta ida ao mercado, o clube gastou como nunca: foram 153 milhões de euros para contratar Lewandowski, Raphinha e o francês Jules Koundé. Além do trio, também chegaram o volante Franck Kessié e o zagueiro Andreas Christensen a custo zero. O perfil das contratações deixa clara uma urgência por resultados: todos são jogadores de seleção, com experiência em grandes ligas. Ao contrário de anos anteriores, não há apostas em jovens que possam crescer aos poucos.

A aposta ficou toda por conta de Laporta. "É uma estratégia de altíssimo risco, que beira o desespero. Laporta foi eleito com uma proposta de devolver a glória ao Barcelona, não de organizar o clube. Organizar o Barcelona levaria muito tempo. Laporta precisa de resultados imediatos", disse ao UOL Esporte um especialista com trânsito no Camp Nou.

Vencer, o único caminho

E o que acontece se o Barça não vencer? As previsões para o futuro do Barcelona são pouco otimistas. Do ponto de vista econômico, é primordial que as próximas temporadas sejam de superávit, para estancar a dívida e repor o desfalque de 25% dos direitos de TV a cada ano, causado pelo adiantamento das cotas (atualmente, o valor seria de 40 milhões de euros anuais).

Em números aproximados, o Barcelona atualmente tem um faturamento de 800 milhões de euros anuais, e gastos de 900 milhões -um déficit de 100 milhões de euros por ano. Nesta temporada, com os 500 milhões dos adiantamentos de direitos de TV ("alavancas" 1 e 2), o clube subiu esse faturamento para 1,3 bilhão. Mas esse número não se sustentará com tempo, como explica Marc Ciria.

"O balanço real, se excluirmos essas operações extraordinárias, voltará a ser de 100 milhões de euros negativos. Esse valor de 1,3 bilhão é fictício, sem as alavancas ele volta a ser de 800 milhões. O desafio do clube nos próximos anos, além de aumentar o faturamento, é reduzir as despesas e voltar a ser sustentável. Para isso, é necessário reduzir as despesas de 900 milhões para 600 milhões de euros", avalia o consultor financeiro.

O foco principal no processo de redução é a folha salarial. Na gestão de Josep Maria Bartomeu, o Barcelona transformou-se no clube com os maiores salários do mundo, e a queda no faturamento durante a pandemia escancarou o problema. O ponto máximo da crise foi a saída de Lionel Messi, em agosto de 2021, pela falta de condições para inscrever o argentino. O fair play financeiro da Liga Espanhola exige um equilíbrio entre o faturamento dos clubes e os gastos com salários.

Os primeiros passos para reduzir a folha começaram logo depois da saída do argentino, ainda em 2021, mas o processo é lento. Para a temporada 2022—23, o clube continua com dificuldades para liberar espaço e inscrever jogadores. O zagueiro Jules Koundé, titular da França na reta final do ciclo para a Copa do Mundo, não participou das primeiras rodadas de La Liga porque não pôde ser regularizado, devido às limitações do fair play financeiro.

Se o processo de reduzir as despesas já está em curso, aumentar o faturamento não deve ser uma conta simples. Para as próximas temporadas, o clube conta com o "círculo virtuoso" de Laporta para melhorar os números. O presidente não fala abertamente, mas já afirmou a interlocutores que o clube precisa brigar por todos os títulos da temporada: La Liga, Copa do Rei e, principalmente, a Champions League.

Na competição europeia, o objetivo da diretoria é chegar pelo menos às semifinais. Na temporada 2021-22, o Villarreal, derrotado nesta fase do torneio, embolsou 65 milhões de euros em premiação. Liverpool e Real Madrid, finalistas, ganharam por volta de 90 milhões de euros. Para um clube que precisa chegar longe, o sorteio dos grupos, na quinta-feira, não ajudou: o Barcelona caiu no "grupo da morte", ao lado de Bayern de Munique e Inter de Milão -os checos do Viktoria Plzen completam a chave.

Além da urgência fiscal, há outro motivo que torna urgente o aumento das receitas: o projeto de reforma do Camp Nou e de todo o entorno do estádio. De acordo com a consultoria Deloitte, metade do faturamento do Barcelona provém da arrecadação em dias de jogo (o termo é conhecido como "matchday", em inglês)-vendas de ingressos, produtos, visitas ao museu do Camp Nou entre outras atividades relacionadas às partidas. Neste sentido, jogar de portões fechados durante a pandemia foi um golpe especialmente duro para os catalães.

Um problema que, guardadas as proporções, pode se repetir. Durante a temporada 2023-24, o clube mandará seus jogos no Estádio Olímpico de Montjuic. Com capacidade para 55 mil torcedores (o Camp Nou, que estará em reformas, acomoda 99 mil) e sem as estruturas de lojas, entretenimento e museu, a nova casa gerará apenas uma fração da receita com os dias de jogos.

E se tudo der errado?

Enquanto Laporta fala em conquistar títulos e a devolver o Barcelona a seus dias de glória, uma ala da diretoria, dos sócios do clube e parte da imprensa se perguntam -ainda timidamente- e se o tal "círculo virtuoso" não acontecer? Qual poderia ser o destino do clube?

Especialistas ouvidos pelo UOL Esporte divergem sobre o tamanho do problema, mas há uma opinião unânime que a primeira rota de fuga seria vender ainda mais ativos: a BLM, empresa que controla a venda de merchandising do clube, é uma carta na manga que ainda não foi usada. De acordo com avaliações feitas em junho deste ano, o valor de 49% da companhia poderia chegar a 275 milhões de euros.

Outro passo que não é descartado é de negociar novos adiantamentos de direitos de TV e, eventualmente, uma parte ainda maior do Barça Studios, que deixaria de ter o controle majoritário do clube. A partir daí, as soluções passariam por medidas mais drásticas e impopulares, como explica Marc Ciria.

"Poderia chegar a vender patrimônio imóvel? Sim. Isso significaria vender instalações do clube, como o estádio, mas para isso a assembleia dos sócios precisaria estar de acordo", explica. Os sócios (143 mil, segundo dados da temporada 21-22) são os donos do clube e participam das decisões mais importantes.

A saída final, no caso de nenhuma estratégia funcionar para estancar a sangria, seria mexer nessa estrutura. Para usar o termo na moda no futebol brasileiro, virar uma SAF. "Transformar o Barcelona em uma SAF é uma linha vermelha. O principal objetivo de qualquer diretoria deve ser manter o modelo de propriedade. Essa personalidade jurídica em que todos os sócios se sentem proprietários não deveria ser perdida jamais", acrescenta Ciria.

Em um encontro recente com jornalistas, o empresário Victor Font, candidato derrotado por Laporta nas últimas eleições, afirmou que "o modelo de propriedade do Barcelona está em risco". Durante a campanha, Font chegou a mencionar a possibilidade de o clube se tornar uma SAF e, diante da reação dos sócios, teve de ir a um cartório assinar um documento em que garantia que não mudaria o estatuto do clube.

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