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Sou chato como Telê, mas faltam os títulos que ele ganhou, diz Ceni

Roberto Salim

Colaboração para o UOL, em São Paulo

06/09/2022 04h00

Dentro do centro de treinamento do São Paulo, na Barra Funda, uma cena se repete com frequência, dia após dia. No caminho do portão ao gramado, o hoje técnico Rogério Ceni para e olha fixamente para algum detalhe aparentemente trivial: pode ser a altura da grama no campo, o nível da água da piscina ou o sobe e desce de um aparelho de musculação. Pode parecer um momento de distração, mas quem conhece o ídolo são-paulino sabe que por trás dos olhos está a busca, nos detalhes, de algo a ser ajustado.

Perfeccionista é uma palavra usada de forma unânime por pessoas que convivem com Ceni. A semente dessa forma de ser já estava na personalidade do então goleiro de 17 anos que chegou ao São Paulo em 1990, mas foi regada, cultivada e inspirada por Telê Santana, técnico que o recebeu na época, influenciou sua formação e com quem compartilha a obsessão pelos detalhes.

"Sempre gostei muito de treinar, então chegava muito cedo e o Telê gostava muito disso. Os treinos eram às 9h, eu chegava às 8h30 pronto no campo. Ainda faltavam dois ou três atletas no ataque, faltando uns 20 minutos para o treino começar, mas o Telê não esperava e me mandava ir ao gol. Então, trabalhava no gol sem sequer ter aquecido. Depois que o Telê ficou doente, não tinha quem me treinasse mais cedo".

Junto com o olhar atento e a dedicação, veio também a "chatice", assim chamada pelo próprio Rogério. "Eu acho que tenho o perfeccionismo com o gramado. Tento fazer o possível para mantê-lo liso, limpo, molhado. Às vezes, quando estão batendo falta, eu mudo a barreira de lugar, para não machucá-lo. Acho que chatice também, de cobrança, de tentar exigir o melhor do jogador, o horário e a disciplina".

Sob a batuta de Telê, como reserva de Zetti, Ceni venceu Libertadores e Mundial. Como treinador, herdou os traços do mestre, e agora quer repetir também os resultados. "Só não tenho os títulos que ele tem, que são as duas Libertadores e os dois Mundiais, só tenho como jogador. Espero um dia conquistar", diz Rogério, que falou com o UOL, há três meses, para o documentário "És o primeiro", que estreia hoje (6) no UOL Play.

"És o primeiro" conta os bastidores dos três títulos mundiais do clube e está disponível com exclusividade para os assinantes da plataforma.

"Em 93 falei ia repetir esse feito antes de encerrar carreira"

TELE SANTANA, MANAGER, SAO PAULO  (Photo by Peter Robinson/EMPICS via Getty Images) - Peter Robinson - EMPICS/PA Images via Getty Images - Peter Robinson - EMPICS/PA Images via Getty Images
Imagem: Peter Robinson - EMPICS/PA Images via Getty Images

No São Paulo, a carreira como profissional começou ao lado de um elenco de estrelas. Zetti, Cafu, Palhinha foram alguns dos protagonistas dos títulos da Libertadores e do Mundial de Clubes em 1993, derrotando o Milan (ITA) por 3 a 2.

Para Rogério, trilhar os seus primeiros passos ao lado desses atletas é motivo de orgulho. "Aquela geração já era vencedora, com os títulos do Paulista, Libertadores e Mundial de 1992. Esses caras eram referência para o torcedor são-paulino", disse o atual comandante do São Paulo.

"Vivi aquela realidade. O título, naquele momento, foi muito importante. Uma coisa, eu garanto que falei: em 1993, eu falei que antes de encerrar a minha carreira, repetiria este feito. Demoraram 11 anos, mas isso foi reproduzido. Para você ver o tempo que leva! São poucos os times que conseguem concretizar isso. Eu fiquei muito orgulhoso, porque tinha 20 anos quando conquistei o bicampeonato. Com 32 anos, conquistei novamente"

A conquista à qual Ceni se refere veio em 2005. Dessa vez o goleiro foi astro do time durante toda a a Libertadores e eleito melhor em campo na vitória por 1 a 0 sobre o Liverpool na final do Mundial de Clubes.

Cansaço quase impediu Mundial de 2005: "Autuori teve de me convencer que era possível"

"O Paulo Autuori foi fundamental para aquele título. Ele fez uma palestra muito importante na noite anterior ao título. Eu tinha as minhas dúvidas se a gente conseguiria. Essa palestra foi motivacional. Depois do fim dela, passei a enxergar a possibilidade maior de vitória. Ele sempre coloca o grupo acima de tudo. É um vencedor. Gosta de estar à margem do sucesso coletivo. Foi um dos maiores treinadores com quem trabalhei", lembra Ceni, sobre a maior conquista da sua carreira.

Rogério Ceni e Paulo Autuori - Antonio Gauderio/Folha Imagem - Antonio Gauderio/Folha Imagem
Imagem: Antonio Gauderio/Folha Imagem

Segundo o ídolo, o alto número de jogos pesou para o elenco do São Paulo em 2005. Nas palavras dele próprio, o time chegou na reta final do Brasileirão 'desfalcado e desconcentrado'. "Nós jogávamos muitas partidas. Uma média de 78, 80 jogos. Nós estivemos mal no Brasileiro em detrimento da Libertadores. Fomos campeões da Libertadores e ficamos oito partidas sem vencer no Brasileirão. Chegamos a ficar bem próximos ou dentro da zona de rebaixamento. O time era bom, estava um pouco desfalcado e desconcentrado. Tinham alguns jogadores que estavam muito cansados"

Ceni, que começou sua carreira com Telê, trabalhou com nomes como Muricy Ramalho e hoje busca ser um grande treinador mostra grande admiração por Autuori, a quem considera peça chave na última conquista do mundo pelo Tricolor Paulista.

"Perto do Mundial, o Paulo resolveu dar sete dias livres para os seis, sete atletas que mais atuaram. Eu abri mão como goleiro, preferi ficar trabalhando. Isso foi muito contestado por todos. No final, foi muito importante, porque isso arejou a cabeça desses atletas e eles voltaram bem. Naquela noite anterior ao título, o Autuori mostrou os pontos onde a gente podia entrar ou onde a gente tinha que neutralizar o Liverpool".

Muitos falam (que Liverpool foi prejudicado pela arbitragem), porque o Liverpool fez três gols que foram anulados. O gol - que todo mundo fala que eu paro na jogada -, quando o cara bate o escanteio, o bandeira já levanta, apontando que a bola saiu. Para mim, foi bem tranquilo. Aquele de cabeça, por cobertura, a primeira coisa que eu faço é olhar para o bandeira. Mas o terceiro? Se eles empatassem ali, iria para a prorrogação. A diferença era pequena. Era uma chance de você se manter por mais 20 minutos contra um time tão forte fisicamente. O bandeira está bem posicionado. Era uma diferença de 12 cm. Hoje, essa distância vai para o VAR e ainda leva três minutos. O cara teve uma chance de levantar ou deixar correr. Se não estava nos acréscimos, estava bem próximo disso.

Ceni quase não jogou a final do Mundial por dor de dente

"Entre o jogo da semi e a final eu tive que ir ao consultório para extrair o dente do siso. Teve um dia que cheguei a tomar até seis inflamatórios, mas não adiantava. Aí, o doutor Marco Aurélio foi comigo ao dentista. Faltavam três dias para a final. foi um alívio, porque tirou a dor com a mão. Era um consultório minúsculo, até demos os ingressos para o médico", lembra Rogério.

"Ele chegou a fazer uma visita aqui, anos depois. Graças a Deus, deu tudo certo. Então, o dente passou a ser um problema a menos. O Marco também sabia que não era nada tão grave. Eu tinha noção de outra lesão que eu tinha, que era a de menisco. Meu medo era travar. Se não fosse isso, eu tomava injeção e acabava com a dor. Foi assim que conseguimos o título do Mundial. Foi uma superação de todos. A lógica dizia que o Liverpool ganharia da gente".

Defesa mais difícil não foi a defesa mais famosa

Rogério Ceni cumprimenta Steven Gerrard após a final do Mundial de Clubes de 2005 - REUTERS/Issei Kato - REUTERS/Issei Kato
Imagem: REUTERS/Issei Kato

Quando o torcedor fala na performance de Ceni na final do Mundial, contra o Liverpool, a imagem que vem à mente é da cobrança de falta de Gerrard, no início do segundo tempo. O goleiro tricolor voa até o ângulo e desvia. É a imagem que resume aquela partida, mas, para o arqueiro, não foi sua defesa mais difícil naquela partida.

Segundo ele, uma defesa em uma cabeçada de Luis Garcia no final do primeiro tempo foi mais impressionante. "O Fabão está dentro da pequena área e, quando a bola desvia, ela passa no meio da perna [de Fabão]. Eu achei que ele tiraria e saltei para acompanhar. A distância entre eu e o Fabão deve ser de dois ou três metros e a reação foi muito rápida", lembra.

"A da falta, não. São vinte e poucos metros que separam o gol da cobrança e eu consigo ver a trajetória neste tempo. Aquele jogada na área, não", diz. "Tecnicamente falando, foi uma defesa de reflexo e de instinto. Na falta, você induz o batedor e traz a responsabilidade para si".

O passe do Aloisio foi o que fez a diferença

A história daquele jogo mudou aos 26 minutos do primeiro tempo quando Aloísio recebeu uma bola, girou e fez um passe por elevação para Mineiro. O volante, que apareceu de surpresa na área do Liverpool, dominou e bateu para o gol.

A jogada foi tão inesperada que a impressão que todos tiveram foi que a movimentação foi pensada para abrir espaço entre os zagueiros ingleses. Não foi. "Não lembro de termos desenhado a jogada em si. Mas era normal que o Mineiro infiltrasse, já que era o volante que saia mais. E era normal o Fabão jogar aquela bola para o meio. O que surpreende, mesmo, é o passe do Aloysio. Isso foi algo que eu não tinha visto ainda até então".

"As infiltrações do Mineiro eram corriqueiras, em partidas anteriores a esses jogos ele fez isso. O que você não encontrará é aquele passe do Aloysio. Esse foi o coelho tirado da cartola, o grande lance, a grande diferença".

O segundo tempo de 90 minutos

Depois do gol de Mineiro, porém, o São Paulo parou de atacar. Foram 3 gols anulados do Liverpool e uma pressão que poucos times aguentaram em uma partida tão grande. "Os últimos cinco minutos parecem um terceiro tempo. Eles finalizaram mais umas quatro ou cinco vezes. A bola passava e o relógio não caminhava", lembra Rogério. "O segundo tempo durou 90 minutos, enquanto o primeiro teve 45".

Segundo Rogério, a escalação de Paulo Autuori para aquele jogo já previa problemas. A manutenção de Edcarlos no trio de zaga, ao lado de Fabão e Lugano, foi pensada para o time inglês.

"O São Paulo era muito forte [fisicamente] para os padrões sul-americanos, mas quando colocava ao lado de atletas com 1,90m, 1,91m? Sabíamos que seria um time que nos faria sofrer na bola parada", conta o hoje técnico. "Teve lance em que eles tiraram três, quatro bolas consecutivas, que foram cruzadas na área. Sofremos 21 finalizações contra 13 nossas e 18 a 0 em escanteios. Para se ter ideia do tamanho da pressão.

"Até fazer o gol, acho que a partida foi muito igual. Depois disso, parece que o campo deu uma inclinada e nós não saímos muito de trás. Tivemos muita força mental para suportar a pressão durante 60, 65 minutos".

* O documentário "És o primeiro" está disponível com exclusividade para assinantes do UOL Play.