Liderados por 'lenda' Miguelito, bolivianos constroem uma família no Santos
O Santos tem um pedaço da Bolívia no clube. O país sul-americano não possui muita tradição no futebol, mas tem quatro representantes no Peixe: os zagueiros Christian Osinaga e Leonardo Zabala, o meia-atacante Miguelito Angel Terceros e o centroavante Enzo Monteiro.
Enquanto Osinaga foi emprestado para o Bolívar, do seu país natal, os outros três estão no sub-20 do Alvinegro praiano e vivem a expectativa de chance no elenco profissional em breve. Dentre eles, Miguelito é quem mais chama a atenção.
Nos bastidores do Peixe, o parecer é unânime: Miguelito será craque. Ele chegou aos 14 anos e precisou esperar até julho de 2022, já com a maioridade e a janela internacional de transferência aberta, para ver seu contrato ser oficializado e poder estrear em partidas oficiais pelo sub-20.
Ainda em 2021, mesmo sem contrato registrado na CBF, Miguel foi chamado pelo ex-técnico Fernando Diniz para treinar entre os profissionais. Para evitar o assédio de outros clubes, o Santos "escondeu" sua promessa e fez um combinado entre funcionários e atletas: o boliviano não podia aparecer. Até o fotógrafo registrava imagens do treinamento antes ou depois de Miguelito estar em campo. Como não podia ver Miguel em ação, a torcida acreditou na "lenda" Miguelito baseada nas apurações da imprensa e no boca a boca na cidade.
"Vivi uma experiência muito boa com o Fernando Diniz. Eu treinava com o elenco profissional quase toda semana. Me ajudava muito, conversava sempre comigo e tenho carinho especial por ele. Sempre me ajudava a progredir, me falava a todo momento sobre os erros a serem corrigidos", disse Miguel, em entrevista ao UOL Esporte, ao lado de Zabala e Enzo.
Fernando Diniz, que é o atual técnico do Fluminense, dirigentes, companheiros de trabalho e funcionários enxergam Miguelito como craque e veem questão de tempo para ele brilhar entre os profissionais. Mas de que forma ele lida com essa expectativa?
Aos 18 anos, Miguel não parece ter todo esse "hype". Tranquilo e com os pés no chão, ele se esforça para não se deixar levar por toda essa expectativa interna e externa: "Não sei se sou bom. Eu não me vejo [risos]", brincou.
"Eu fico muito feliz pelo apoio que recebo da torcida, mas tento não pensar muito nisso, pois pode me atrapalhar. Posso achar algo que não é a realidade. Penso em trabalhar bem todos os dias para que as coisas aconteçam naturalmente. Estou focado em melhorar meus pontos fracos. Fico tranquilo, mas feliz por esse carinho", completou Miguel.
Os compatriotas Zabala e Enzo têm opiniões "clubistas", mas garantem: tudo que se fala sobre Miguelito é real. Depois dos amigos falarem sobre seu futebol, Miguel interrompeu a entrevista para abraçá-los.
"Quando eu cheguei aqui, eu vi todo esse apoio que ele tem. Já tinha ouvido que o Santos estava apaixonado pelo Miguelito. Fico feliz porque ele merece, é muito bom. Tem talento único, vemos isso a cada treino. Tudo que falam tem motivo, não é por acaso. Podem esperar que ele vai dar muitas alegrias ao Santos. Como o Santos começou a dar visibilidade ao Miguel, a torcida da Bolívia também criou essa expectativa que não havia antes. Muitos pedem por ele. Vai ser importante na seleção e no Santos, podem acreditar. Ele é realmente um craque", avaliou Zabala.
"Desde que a gente conhece, sempre fez o futebol ser fácil. A gente tentava fazer a mesma coisa e não conseguia, e ele fazia facilmente. Todos veem ele como craque, não só a gente. Todos viram que ele é diferente. Os torcedores podem esperar muito dele", afirmou Enzo.
Projeto Bolívia e gratidão
Zabala, Osinaga, Miguelito e Enzo são muito gratos a Paulo Roberto, responsável pelo Projeto Bolívia. Ele viabilizou parcerias com grandes clubes do Brasil para trazer talentos bolivianos.
Paulo Roberto é o responsável pelo trabalho no dia a dia, mas o Projeto Bolívia começou em 2015 por meio do presidente e investidor espanhol Jordi Chaparro. A empresa busca talentos bolivianos e os oferece no mercado. No Brasil, o projeto tem parcerias estabelecidas com Santos e Athletico.
Osinaga ainda não se firmou no Santos, mas Zabala, Miguel e Enzo começam a dar passos maiores. Eles são frequentemente titulares do sub-20 e estão no radar do elenco profissional.
Zabala começou a jogar aos 4 anos na escolinha Tahuichi, na Bolívia, onde ficou até os 13 anos. Foi quando apareceu a oportunidade no Projeto Bolívia. O zagueiro atuou por três anos no programa até uma viagem ao Brasil para amistosos contra Santos e Palmeiras. Ele foi aprovado nos dois clubes de São Paulo, mas o Peixe pediu outra semana de teste e o Verdão já se antecipou com um contrato. A decisão foi difícil, mas Zabala optou pelo time da capital paulista.
Zabala atuou por duas temporadas no Palmeiras até, curiosamente, ser contratado pelo Santos em 2021. O defensor de 19 anos treinou com o grupo principal no primeiro semestre, mas voltou para a base e ainda não estreou.
Atualmente com 18 anos, Enzo começou aos 4 numa escolinha chamada Toreto Garcia, na Bolívia. O atacante ficou até os 11 anos no local, quando foi para o Blooming. Aos 13, o atleta reforçou o Projeto Bolívia. Um ano depois, ele enfrentou o Santos em amistoso e foi aprovado na mesma peneira que selecionou Miguelito. Enzo também precisou esperar a maioridade para assinar contrato profissional e sair do anonimato.
Miguel Angel Terceros começou com 5 anos também na escolinha Tahuichi, a mesma de Zabala. Ele esteve por lá até chegar no Projeto Bolívia aos 11. Com 14, foi aprovado pelo Santos. Ele está no Peixe desde 2018 e só ganhou notoriedade nos últimos meses.
O trio santista deve muito ao Projeto Bolívia. Os três, e principalmente Miguelito, foram procurados por agentes do meio do futebol e recusaram qualquer investida. O empresário de todos é Paulo Roberto.
"Temos um carinho enorme pelo Paulo. Ele nos procurou na Bolívia, onde ninguém mais foi. Ele nos deu a oportunidade que precisávamos. Chegamos a um clube reconhecido a nível mundial por causa do Paulo. Somos fiéis a ele, desde o começo acreditou em nós. Nada atrapalhará a nossa amizade. Contamos tudo a ele, nunca escondemos nada", garantiu Miguelito.
Em 2018, quando Miguelito e Enzo foram aprovados nos testes do Santos, Paulo Roberto promoveu uma grande pegadinha. O responsável pelo Projeto Bolívia simulou que a dupla havia sido reprovada.
"Foi uma das piores piadas [risos]. Fizemos uma semana de testes e sentimos que fomos bem. Ele recebeu a resposta final, nós esperamos... E a gente achava que daria certo. Mas ele chegou no quarto e falou assim: 'vocês acham que foram bem?'. Respondemos que sim, mas ele disse que a diretoria não entendeu assim, perguntou se não queríamos sair da Bolívia. Perguntou como nossos pais iriam nos sentir. Estávamos acabados, chorando. Ele saiu do quarto, a gente ficou sem saber o que fazer. Aí, ele voltou e disse que era mentira. Demorou muito. E aí choramos mais, mas de alegria", lembrou Enzo.
"Eu pensei: 'f... vou ter que estudar'", recordou Miguelito, aos risos.
Família boliviana em Santos
Zabala, Miguel e Enzo moram juntos em um apartamento na cidade de Santos. Depois de um período vivendo sozinho, Zabala, o mais velho, passou a morar com os compatriotas. O zagueiro esperou a dupla assinar contrato profissional para efetuar a mudança. Miguel e Enzo moravam no alojamento disponibilizado pelo Peixe.
Os Meninos da Vila tentam fazer do apartamento um pedaço da Bolívia. Para isso, eles contam com os envios de chás do país natal e com a encomenda das "salteñas", um tradicional salgado.
"A gente não é acostumado a tomar chá de coca, por causa do doping. Os atletas não podem. Mas temos um chá que gostamos muito, principalmente o de canela. Camomila também", disse Enzo, antes de Zabala interromper.
"Eu tenho, né? Uma vez minha mãe enviou, eu tinha duas caixas no meu antigo apartamento, que morava sozinho. Minha ex-namorada ficava comigo às vezes, eu ia para lá e voltava com menos saquinhos de chá. Eram uns 60 chás de canela ou camomila e uma vez não tinha mais nada. Eu deixava a chave com os meninos e ficavam lá, mas tomavam meu chá. Minha mãe mandou caixas de 50 saquinhos para o resto do ano agora. O chá é muito gostoso, é diferente daqui. E na Bolívia é muito normal tomar um chá à noite, mais do que jantar."
As salteñas são providenciadas por uma família boliviana que mora em Praia Grande, outra cidade da Baixada Santista: "É bem diferente, não se parece com nada daqui. A gente cresceu com um sentimento de família por isso, era um costume comer salteña. A gente come e se sente em casa", falou Zabala.
Zabala também brincou sobre um dos principais pratos da gastronomia brasileira: a feijoada. O zagueiro não gostava de feijão na infância e chegou a vomitar quando obrigado a comer, mas hoje não recusa: "Agora eu adoro".
Miguelito também se acostumou com o feijão brasileiro: "Feijão e farinha nunca faltam na mesa lá em casa", contou o meia, antes de Zabala novamente refutar. Aí Miguel disse: "Temos que ficar bem com o Brasil pô [risos].
Essa casa de bolivianos no Brasil faz até o idioma ser esquecido: "Eu fui para a Bolívia há pouco e, quando minha mãe falou algo que eu não entendia, respondi com 'oi', relatou Zabala. Miguelito brincou: "Eu falo oxe agora, a gente esquece de falar espanhol em casa".
Seleção
O zagueiro Zabala e o meia-atacante Miguelito estrearam pela seleção boliviana principal antes mesmo de uma chance no elenco profissional do Santos. Eles são símbolos da ideia de reformulação planejada pelo novo técnico do país, Pablo Escobar. O centroavante Enzo está nos planos da Bolívia, mas ainda não foi chamado.
"A Bolívia tem revelado grandes jogadores e estamos otimistas por uma vaga na próxima Copa. Esse é o nosso maior sonho", concluiu Miguel.
O Santos adota cautela, mas deve ter ao menos Miguelito entre os profissionais em 2023. A expectativa é dar tempo à promessa no sub-20 antes de torcer para a lenda virar realidade.
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