'Ninguém olha no seu olho': como é a experiência de ser mulher no Qatar
Classificação e Jogos
No país que vai receber a Copa do Mundo de 2022, os olhares praticamente não se cruzam. Toque ou demonstrações de afeto não são permitidos em espaços públicos. Pelas ruas do centro da capital, Doha, com seus prédios espelhados que lembram uma Faria Lima envolvida pelo deserto, não se ouve barulho de gente, só de carro e construção.
As avenidas são largas e os faróis paras pedestre têm tempos intermináveis. Quando subimos no topo de um desses edifícios, com mais de sessenta andares, dá para ver uma névoa encobrindo a cidade. É areia. No fim do dia, você sente essa areia na pele.
De vez em quando, as ruas ficam ainda mais vazias. As pessoas que sumiram estão fazendo as cinco orações diárias do islã. Andar pela capital da sede do Mundial da Fifa, que começa no dia 20 de novembro, é como andar por um condomínio fechado, cheio de seguranças e onde não se pode fazer festa depois da meia-noite.
Talvez o clima árido em que nunca chove colabore para uma sensação de sufocamento. Para mim, foi como se o Qatar fosse seco além do clima.
Eu fui parar no Qatar de maneira um tanto inesperada. No final do ano passado, o UOL foi convidado pelo Comitê Supremo para Entrega e Legado da Copa do Mundo do Qatar para passar uma semana em Doha enquanto acontecia a Copa Árabe. Como parte do convite, estavam excursões guiadas pelos estádios, centros esportivos, museus, safáris, jantares...
Basicamente, tudo o que existe de melhor na região.
Não sou a maior fã de futebol. Para ser sincera, foi nessa viagem que assisti pela primeira vez a um jogo dentro de um estádio, Qatar contra Bahrein, que inaugurou o Al Bayt, estádio em forma de tenda que vai ser a sede da abertura do Mundial. Apesar de todos os repórteres esportivos que estavam comigo falarem que aquele não era um jogo de futebol de tão alto nível, adorei estar ali. Passei mais tempo vendo as arquibancadas do que o campo. Era a chance de ver uma torcida diferente das que aparecem nos estádios brasileiros pela televisão.
Ali, quase todo mundo trajava o djellaba, aquela roupa tradicional árabe que parece um vestido. Branco para os homens, preto para as mulheres. Quando comemoraram o único gol da partida, o som mais alto da arquibancada foi o zaghareet, aquele grito estridente que as mulheres árabes fazem.
Foi a minha primeira visita a um país islâmico. Sabia que não teria muita possibilidade de gravar muito além do que o governo qatari gostaria de mostrar. Nós éramos acompanhados e tínhamos pautas oficiais na maior parte do tempo. Mas era uma chance de conhecer a cultura mais de perto.
Muita gente pensa o Oriente Médio como se fosse uma massa uniforme. Existem similaridades entre os países do Golfo, mas, o Qatar, por exemplo, é um país que destoa de outros fundamentalistas islâmicos — pelo menos para as mulheres turistas. Se você é ocidental ou não faz parte do Islã e viaja para Doha, não existe nenhuma imposição sobre trajes nem a obrigação de cobrir a cabeça (com exceção da entrada em locais religiosos).
Mesmo sabendo disso, na mala coloquei apenas camisetas e calças claras. Achei melhor me vestir de maneira discreta. Não tenho o hábito de trabalhar com roupas curtas, mas, fosse no nordeste brasileiro, teria colocado regatas e shorts na bagagem.
Em novembro, o mês da viagem, a temperatura beirava os 30°C. Um refresco, pensando que no momento em que eu escrevo, a máxima do dia de verão em Doha é de 43°C. Mesmo assim, saindo do avião, comecei a suar dos pés à cabeça dentro da calças e blusa longa. Faz muito calor.
Pelas ruas, algumas turistas usavam roupas mais curtas e decotadas, algo que não seria possível na vizinha Arábia Saudita, por exemplo. Vi também festas de mulheres ocidentais dentro dos hotéis, porque nesses lugares a venda de bebida alcoólica é permitida. Além de beberem, elas usavam vestidos curtos, blusas croppeds, minissaias... As mesmas roupas que vemos as mulheres usarem em festas por aqui.
De maneira geral, há uma sensação de segurança ao andar pelas ruas da cidade. O único momento em que um receio passou pela minha cabeça foi depois de uma partida no estádio 974, aquele que é feito de contêineres. Apesar da torcida ser mista na arquibancada, na saída do jogo funcionários ficam com luzes indicando filas diferentes para quem está sozinho e para quem está com a família. Isso facilita a entrada nos vagões de metrô que são divididos da mesma maneira.
Eu estava junto de um repórter de UOL e nos guiaram para o lado família. No primeiro momento, me senti segura por ter sido colocada ali, já que o outro lado era mais cheio e tinha apenas homens. Mas, enquanto andava entre mulheres e crianças, fiquei me perguntando se teriam me colocado na outra linha se não estivesse acompanhada. Como eu me sentiria estando ali? Essa ideia me deixou bastante desconfortável.
A separação entre homens e mulheres é uma constante nos estados islâmicos. Apesar disso, o Comitê Supremo para Entrega e Legado da Copa do Mundo do Qatar, que nos convidou para conhecer o país, é formado por uma equipe mista e com maioria feminina. Os membros do Comitê com quem eu conversei fizeram questão de me contar que trabalham em um ambiente plural e que as mulheres ocupam boa parte das posições de liderança.
Não é exatamente uma realidade brasileira, que tem diferença salarial e boa parte dos cargos de chefia é ocupada por homens. Quando a Diretora Executiva de Comunicações, Fátima Al Nuaimi, me contou sobre as oportunidades para as mulheres no mercado de trabalho e que ela própria lidera uma equipe com mais de 100 pessoas, eu fiquei com uma ótima impressão do Qatar.
Só quando voltei para o Brasil, e com mais calma fui montar o roteiro do documentário que você pode assistir aí em cima sobre a viagem, foi que me aprofundei nas pesquisas e vi que a situação não é tão igualitária quanto me contaram. Parece justo dizer que perto de outros países do Golfo, o Qatar está fora do padrão. Nem tem comparação quando a gente pensa no Afeganistão, onde o Talibã, entre outras coisas, proibiu as mulheres de frequentarem universidades em prol de "um verdadeiro estado islâmico".
No Qatar, as mulheres têm direito à formação acadêmica, ao trabalho e são criadas oportunidades para que elas sejam ativas em seu campo de atuação. Só que existe um porém. Tudo isso desde que tenham uma autorização de algum homem da família, indicando que não se importa que elas exerçam tais funções. As mulheres de até 25 anos não podem viajar desacompanhadas sem essa mesma autorização. Para que elas possam fazer exames ginecológicos em qualquer idade, a autorização também é necessária. Ou seja, as mulheres vivem sob uma tutela masculina: têm direitos, mas dentro de um horizonte limitado pelo homem.
Eu recomendo a leitura de um relatório que encontrei durante a pesquisa, que coletou o relato de várias mulheres qataris. Entre eles, algumas contam que, mesmo sendo maiores de 25 anos, não puderam sair do país sem que o pai ou outro homem autorizasse. Muitas ficam casadas em relações abusivas porque a justiça qatari dá razão ao homem e elas ficam sem direitos em situação de divórcio. Sem contar os casos de abortos, escondidos, arriscados e sem acompanhamento médico -as leis condenam as mulheres que engravidam sem serem casadas.
É como se a liberdade das mulheres fosse incompleta. Algo no meio do caminho, como é o próprio Qatar dentro do Oriente Médio. Um país que acena para o ocidente, contrário aos regimes autoritários de seus vizinhos, mas que é, ele próprio, um regime absolutista.
Em 1999, pouco depois de tomar o poder, o emir Hamad bin Al Thani abriu eleições para um Conselho Municipal Central recém-criado. Havia 248 candidatos (sendo 6 mulheres) concorrendo a 30 vagas como representantes da população. O órgão legislativo tem a função de propor aos ministros projetos locais de saúde pública, alimentação e agricultura. O plano poderia fazer parte da criação de um futuro Parlamento, que elegeria deputados por meio do voto direto. Algo que até hoje não aconteceu e provavelmente não acontecerá. Mas foi digno do noticiário internacional na época e deixou o Qatar bem visto pelas democracias ocidentais.
Em Doha, dá para perceber esse meio do caminho. Parece que tudo por lá funciona como um verniz, uma primeira camada por cima de um país contraditório exatamente por tentar se aproximar do ocidente tendo bases muito antigas no oriente.
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