Ronaldinho evitou por 3 anos pagar pensão a viúva de caseiro morto em sítio
O zum-zum-zum das abelhas penetrava as telhas da casa nos fundos do sítio onde Ronaldinho Gaúcho costuma dar suas festas, em Eldorado do Sul, na região metropolitana de Porto Alegre. Na casa moravam Laci Meireles e Loeci Pereira, o casal de funcionários que cuidava da propriedade do jogador. Alojadas sobre o telhado, as abelhas entravam pelo forro e ameaçavam a família e seus visitantes. Paulo Renato, o filho do casal, também era caseiro de Ronaldinho e morava ali perto com a esposa e a filha, uma criança com deficiência.
O caseiro Laci tinha contado sobre o problema a dona Miguelina Assis, mãe de Ronaldinho e administradora do sítio. Pediu ajuda aos vizinhos, que o aconselharam a chamar os bombeiros para fazer o serviço. Loeci ligou para os bombeiros, mas eles disseram que só poderiam ir ao sítio se solicitados pelo proprietário.
Era por volta de 15h30 de uma sexta-feira quando ele e o filho Paulo foram picados, ao voltar do campo onde tinham ido cortar e recolher a grama. Laci duas vezes, no pescoço. O caseiro era alérgico a abelhas. Foi levado às pressas ao pronto-socorro e imediatamente transferido à UTI do hospital Parque Belém, em Porto Alegre.
Morreu uma semana depois, aos 55 anos.
Aquele dia, 29 de março de 2013, marcou o início da batalha jurídica de Loeci pelo direito de receber uma indenização pela morte do marido. Ronaldinho, que jogava no Atlético-MG e não estava no sítio no momento do ataque, foi considerado pela Justiça responsável pelo acidente, já que um empregador precisa dar boas condições a seus empregados - e isso inclui evitar que o local de trabalho vire habitat de animais peçonhentos.
A viúva deixou o sítio depois da morte do marido e precisou contratar uma advogada para receber aquilo que achava ter direito. Durante três anos, de 2013 a 2015, Ronaldinho teve a ajuda de uma competente equipe de defensores para evitar o pagamento da indenização e de uma pensão mensal à viúva, equivalente ao último salário anotado em carteira. Quando morreu, o caseiro recebia R$ 837.
Loeci faz parte de um grupo extenso de pessoas, empresas e instituições que acionaram a Justiça contra Ronaldinho, seu irmão Assis (ex-jogador de sucesso, agente de atletas e empresário por trás dos negócios de Ronaldinho) e outros parentes próximos ligados às atividades extracampo do ex-jogador. De acordo com um levantamento da empresa Ivenis junto aos Tribunais de Justiça estaduais, feito a pedido do UOL, foram encontrados 85 processos contra os CPFs e CNPJs ligados a Ronaldinho.
O levantamento não é completo porque só leva em conta informações que o software da Invenis consegue acessar automaticamente. Dele não constam casos que estão sob segredo de Justiça e processos criminais ou trabalhistas movidos contra o atleta enquanto pessoa física - como o caso dos empregados Laci e Loeci.
Além dos processos detectados automaticamente, outros vieram a público pelo trabalho de jornalistas que investigam as atividades do atleta, eleito o melhor do mundo pela Fifa em 2004 e 2005. Ronaldinho já foi processado no Rio Grande do Sul por crime ambiental, no Rio de Janeiro para pagar pensão a uma ex-mulher e no Paraguai por entrar no país com documentos falsos - por causa disso, ficou sete meses preso com o irmão em Assunção.
Em 2020, um morador de Mogi das Cruzes, em São Paulo, entrou na Justiça porque meses antes havia sido convencido a depositar R$ 200 mil na conta da empresa 18k Ronaldinho. Os donos do negócio, que prometiam rendimento de 2% ao dia aos investidores, sumiram com o dinheiro e estão sendo investigados por praticarem uma pirâmide financeira. Além de contar com o nome de Ronaldinho, a empresa promovia reuniões com o jogador, que chegou a receber clientes em sua casa na Barra da Tijuca, no Rio. Dezenas de lesados abriram processos para tentar recuperar o dinheiro. Ronaldinho afirma que tinha apenas um contrato de propaganda com a 18k Ronaldinho.
"Encontre-me se for capaz"
Entre aqueles que resolveram entrar na justiça contra o "Bruxo", como Ronaldinho também é conhecido, impera a dificuldade de encontrá-lo e fazê-lo responder aos processos. No dia 25 de novembro de 2015, a viúva de seu antigo caseiro saiu de casa para uma audiência de conciliação no processo por indenização. Antes de seu marido ser picado por abelhas, Loeci tinha nele seu provedor e seu porto seguro, com quem estivera casada por 36 anos. Empregada doméstica e moradora do bairro da Restinga, na periferia de Porto Alegre, a viúva pedia ao jogador R$ 1,2 milhão por danos morais e materiais, valor calculado por sua advogada.
Fazia por volta de 20 graus na Restinga quando ela fechou o portão de metal da casa de tijolos aparentes e pisou no asfalto gasto sobre o qual escorria um veio de umidade das moradias vizinhas. Seu destino era o tribunal do trabalho da cidade vizinha de Guaíba, do outro lado do lago que banha o sul da capital gaúcha.
Enquanto Loeci passava pelas fachadas humildes nas ruas do bairro, ela refletia sobre o discurso que faria à juíza. Naquela época, vivia de bicos, da ajuda dos filhos e do pouco que restara do patrimônio construído com seu marido, morto dois anos antes. Do outro lado da mesa da juíza, olhando pra ela na audiência de conciliação, estaria Ronaldinho.
Às 10h45, quando a juíza Julieta Pinheiro Neta abriu a audiência, o banco do jogador estava vazio.
Na noite anterior, o advogado Sergio Queiroz tinha protocolado um pedido de adiamento da audiência, alegando que seu cliente estava repousando. A juíza recebeu um atestado assinado pelo dentista Leonardo David recomendando a Ronaldinho "repouso absoluto" por causa de uma "raspagem periodental, devido à abscesso periodental no quadrante inferior direito, elemento 44 e 45, apresentando secreção, edema e inflamação local". A audiência foi adiada.
O atestado assinado pelo dentista, que tem consultório no Rio, foi datado em 23 de novembro. No dia 24, Ronaldinho deveria estar em "repouso absoluto", mas postou em suas redes sociais uma foto em uma concessionária de carros de luxo em Miami. "Muito maneira essa Lamborghini aqui na @exclusivemiami!! Vocês não imaginam como ficou por dentro kkkkk", escreveu ele.
No dia 25, faltou à audiência com sua antiga empregada.
Procurado para comentar os processos descritos nesta reportagem, o advogado Sergio Queiroz, que trabalha há anos com os irmãos Assis, preferiu não se pronunciar. Ronaldinho foi procurado através da agência de comunicação Nooke, mas também não atendeu aos pedidos de entrevista.
A vida depois do acordo
Os pedaços da galinha caipira se misturam na panela, e um cheiro de comida caseira sai do fogão a lenha e toma conta da pequena casa em Imbé, no litoral gaúcho, a 120 km de Porto Alegre. Quando a comida é feita na cozinha, Loeci se tranca no quarto por não suportar sentir o cheiro sem poder comer.
Há oito meses ela vive e se alimenta por uma sonda que entra pelo nariz e desce até o estômago. Quando ela enfim fechou um acordo com os advogados de Ronaldinho, sua vida entrou em um turbilhão de acontecimentos vertiginosos. A viúva se mudou da Restinga, casou de novo, teve depressão e um câncer na garganta, fez uma cirurgia e gasta quase toda a pensão paga pelo ex-jogador na farmácia. São remédios para dor que a acompanha desde que Laci a deixou.
"Foram 36 anos de vida morando junto que acabaram assim, em um dia", ela afirma, segurando a carteira de trabalho do caseiro. Sobre a mesa, estão uma caixa cheia de comprimidos e uma folha de papel onde ela anota os horários. "Hoje, a minha vida é essa. A única coisa que eu queria mesmo era que eles tivessem tirado aqueles bichos quando a gente avisou."
Sua voz sai abafada, frágil e às vezes ininteligível, efeito colateral da sonda, que lhe permite se alimentar, mas não se comunicar como ela gostaria. Loeci é pequena e caminha com dificuldade pela casa de quatro cômodos, seu olhar já cansado no final da manhã, o olhar de uma mulher bem diferente daquela que está num porta-retratos ao lado da televisão. Aquela Loeci gostava de dançar, ir à praia e até de trabalhar duro todo dia ajudando o marido nos afazeres do sítio. A Loeci de hoje tem medo de sair à rua sozinha, precisa de ajuda para comer e de um lenço para limpar a saliva que insiste em escorrer quando ela fala. Ela tem 65 anos.
Quando seu ex-marido morreu em 2013, o enterro foi pago pela mãe de Ronaldinho, mas o jogador não assumiu imediatamente a responsabilidade pelo acidente. Os advogados alegaram que, como Ronaldinho não tinha contratado pessoalmente os caseiros, ele não poderia ser considerado o empregador, e sim sua mãe. Na defesa enviada à Justiça, o jogador também afirmou que apenas Laci era culpado pela própria morte.
"Sabedor que era alérgico a picada de abelhas, o falecido foi imprudente e negligente ao se aventurar a subir no telhado para espantar as abelhas. A culpa pelo óbito foi do próprio falecido", escreveu o advogado Sergio Felício Queiroz.
O caso foi julgado em 2015, e a juíza de primeira instância não concordou com o pedido de R$ 1,2 milhão feito pela defesa de Loeci. Na decisão, estipulou que o jogador deveria pagar à viúva uma indenização de R$ 20 mil, mais uma pensão de um salário (R$ 910) durante 20 anos. Ronaldinho recorreu, pedindo para não pagar indenização e para que a pensão fosse reduzida pela metade.
Três desembargadores mantiveram a indenização, mas reduziram a pensão em um terço. Um deles afirmou que R$ 20 mil era um valor "ínfimo" para o jogador, mas que nada podia fazer porque Loeci não recorreu. Antes que o jogador começasse a pagar, os advogados dos dois lados se reuniram e assinaram um acordo. Ronaldinho concordou em pagar R$ 72 mil a Loeci em dez parcelas mensais, mais a pensão. A empregada deu metade desse dinheiro para o filho Paulo e usou a outra metade para recomeçar a vida no litoral.
Procurado, o escritório Pereira e Mallman, que representava a viúva e recebeu honorários de R$ 30 mil por fechar o acordo, não quis dar entrevista. Depois de nove anos da morte do marido, Loeci segue tendo problemas com o antigo patrão. De acordo com comprovantes de depósito anexados ao processo, Ronaldinho transfere a pensão em dias aleatórios, o que prejudica o planejamento da viúva. Ela é representada pelo advogado Fabrício Tartarelli que vem tentando fazer a Justiça obrigar Ronaldinho a pagar a pensão em dias fixos.
"Eu não acho que o Ronaldinho seja uma má pessoa, não acho mesmo. Às vezes ele não sabe o que eu estou vivendo, não conhece a realidade. Talvez se ele soubesse, poderia ajudar de alguma forma porque com certeza ele pode", afirma a viúva.
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