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Sem fazer média, ex-bandeira perde amigos por falar de arbitragem na TV

Renata Ruel, comentarista da ESPN - Divulgação
Renata Ruel, comentarista da ESPN Imagem: Divulgação

Do UOL, em São Paulo

01/11/2022 04h00

Festa dos amigos da época em que foi árbitra assistente? "Ah, não tem mais isso", conta Renata Ruel, entre risos, ao UOL Esporte.

"Há pessoas com quem eu tinha amizade mesmo, fora de futebol, de ir na casa, de viajar junto, e que hoje passa reto quando me vê", diz a atual comentarista de arbitragem da ESPN, que foge do corporativismo como um jogador faltoso corre de um cartão amarelo.

Tudo isso porque Renata tem coragem de dizer na TV, semana após semana, o que parece óbvio para muita gente que acompanha futebol.

"Eu eu juro para você, eu nunca vi a arbitragem do jeito que está. No Brasil, está ruim, mas eu vejo uma dificuldade geral e reclamações no mundo aumentando em relação à arbitragem: é na Espanha, na Inglaterra, também, é na Itália, em Portugal, é até aqui nos nossos vizinhos [sul-americanos]. É geral", afirma.

Renata não tem qualquer prazer em fazer tal afirmação, muito pelo contrário. A ex-assistente é apaixonada pela arbitragem. Ao ponto de chorar ao ser indagada se ter realizado o sonho de adolescência, de se tornar árbitra de futebol, valeu a pena.

"Nossa, valeu. Eu falo que eu sou muito grata a Deus porque cheguei onde não imaginava. Assim, eu me emociono mesmo. A Renata de 14 anos só queria fazer um jogo de futebol, sabe? Ver aquele estádio cheio de gente. E a arbitragem me trouxe muito mais", afirma.

Críticas não são contra pessoas, mas ao sistema

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Renata Ruel, em entrevista ao UOL Esporte
Imagem: Diego Iwata Lima/ UOL Esporte

Renata deixa claro que não tem nada pessoalmente contra os árbitros. Suas críticas são contra o sistema, em especial no que diz respeito ao futebol brasileiro. A comentarista, por exemplo, não se conforma com o fato de a arbitragem não ter sido oficializada como uma profissão.

"A regulamentação para a profissionalização existe, é a lei 12.867, de 2013. Acabou de fazer nove anos, e a gente nunca viu ninguém fazer nada para colocar em prática, não há interesse", diz.

Por outro lado, ela também acredita que tornar árbitros e auxiliares como profissionais não necessariamente resolveria a questão, porque há problemas de gestão nas entidades que cuidam da arbitragem no Brasil.

"[A profissionalização] Ajudaria, mas zerar problema na arbitragem não existe. A profissionalização ajudaria, mas não adianta eu profissionalizar árbitros e ter gestão amadora", analisa.

"Existe política na arbitragem. Tem os que chegaram por mérito, mas nem todos. Às vezes, é porque você é mais meu amigo, porque você é mais bonito, mais legal, porque eu confio mais em você. Por várias questões políticas. Vamos dizer assim pela influência que você tem, por quem você conhece", afirma.

"E se você nem sempre vai ter os melhores, e a gente vai sentir isso no campo de jogo, o produto futebol vai sentir. Se você tem uma qualidade ruim de arbitragem, você diminui o valor do seu produto, que é o futebol", diz.

Para Renata, a reforma na arbitragem brasileira precisa ser feita de cima para baixo.

"Você precisa de uma gestão profissional. E como eles escolhem uma comissão de arbitragem normalmente? 'Você foi árbitro Fifa'? Ah, então deixa eu te colocar aqui, como gestor", explica.

"Quem disse que porque a pessoa foi um árbitro ou uma árbitro Fifa vai ser um bom gestor? Nem todo bom jogador vai virar bom treinador, é a mesma lógica. Isso é um dos pontos que dificulta a gente ter uma arbitragem melhor. Enquanto a gente não mudar isso, não vai mudar nada", afirma.

Árbitro tem que jogar futebol

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Renata Ruel, durante entrevista ao UOL Esporte
Imagem: Diego Iwata Lima/ UOL

Outro ponto levantado por Renata diz respeito às regras propriamente. Segundo ela, muitas das recomendações dadas pela International Football Association Board (IFAB), órgão internacional que funciona como guardião das regras do jogo, não têm sentido porque quem as escreve simplesmente não entende do jogo.

"Não basta você conhecer a regra, você tem que conhecer o futebol, você tem que entender o futebol, o que é um contato faltoso, o que não é. O futebol é um esporte de contato. O que é uma ação de bloqueio faltosa? E o que é uma ação de bloqueio que faz parte do jogo?", comenta.

Por essa razão, Renata Ruel defende que os árbitros não apenas assistam a jogos de futebol, mas que o pratiquem, sempre que possível.

"Quando eu posso brincar de futebol, eu vou, porque na hora que você joga, você vive algumas situações do jogo. Se você junta isso com seu conhecimento técnico, das regras, fica muito mais fácil para você analisar o jogo", reforça.

Por outro lado, Renata fica possessa com algumas recomendações dadas para os árbitros. Por exemplo, a tal designação para se observar se um movimento de braço é natural ou antinatural.

"Fala sério, a gente tem analisado hoje o que é movimento natural. Você acha que isso é coisa pra gente analisar, de que tipo é um movimento? Eu não sou formada em biomecânica", brada, irritada.

Renata acredita que as análises de toque de mão na bola se beneficiariam muito se uma antiga recomendação voltasse a ser dada:

"Antigamente, a gente sabia quando era a mão e quando não era, porque havia a questão da intenção, mão na bola ou bola na mão. Em vez de facilitar, eles complicaram. Falar de intenção resolvia", defende.

Exemplo para outras mulheres

Renata trabalhou por 15 anos na arbitragem, enfrentando sol e chuva, xingamentos, machismo e vendo sua condição como mulher pouco afeita ao jogo político complicar sua carreira.

"Um antigo chefe me disse uma vez: não se preocupe, você vai conquistar seu espaço, vai subir na profissão. Mas não vai ser tão rápido, porque você vai subir apenas por seus méritos?", recorda.

A comentarista largou os campos em 2019, quando recebeu convite da Disney para trabalhar na ESPN e entendeu que não tinha mais o que aprender ou o que fazer para ajudar na profissão. "Eu ajudo muito mais daqui da TV, comentando", acredita.

Mas foi ainda como assistente que Renata viveu um dos momentos mais importantes de sua vida, decorrente de um lance traumático que acabou virando um troféu para ela. A ponto de o vídeo com ele estar ainda fixado em seu perfil no Twitter.

Em 2013, Atibaia e Tupã se enfrentavam na fase final da Segundona do Campeonato Paulista (equivalente à quarta divisão do estadual). Em jogo que valia o acesso para a terceira divisão, ela marcou impedimento em um gol, aos 40 minutos do segundo tempo.

Leandro Zanoni, jogador do Tupã, ficou revoltado com a decisão e partiu para cima de Renata. Ele ficou perto da bandeirinha e a encarou como um lutador de MMA durante a pesagem antes de um evento, a centímetros de seu rosto. Ela se manteve imóvel, encarando o atleta impassível.

"Ele veio com tudo. 'Você está louca, você marcou impedimento meu'?. E aquele cara a cara. Eu não sei nem te falar [no que pensei], eu acho que é uma coisa que você não espera no momento. Eu só olhava para ele e falava assim: 'marquei impedimento seu, sim', e chamava o árbitro e o outro assistente pelo fone", relembra-se.

"E aí eu pensei, 'não vou recuar', porque a hora em que você recua é a hora que a pessoa vem mais para cima ainda. Eu corri um risco. Eu lembro que, na época, o Coronel Marinho [ex-chefe da arbitragem da Federação Paulista de Futebol] falou que eu devia ter colocado a mão à frente e dado uma distância, porque eu corri o risco de levar uma cabeçada", disse.

O fato é que Renata não se moveu, e Leandro levou apenas um amarelo. O lance chateou Renata, é claro, mas a recompensa viria depois.

"Eu falo e me arrepio, porque eu acho muito forte, até fiquei sem dormir. Um dia, recebi uma mensagem de uma mulher dizendo que sofria agressão do marido em casa", relembrou-se, muito emocionada.

"'Esse seu vídeo mudou totalmente a minha vida, minha atitude, meu comportamento', ela disse. A minha posição de enfrentamento, de não recuar, foi importante para ela. Eu li, e aquilo me deu um baque. Eu até escrevi de volta, e falei assim, 'como eu posso te ajudar, eu posso fazer alguma coisa de outra forma?'. E ela só falou assim: 'você já fez muito'. Eu queria continuar conversando, sabe, mas ela parou de conversar", conta.

"Eu não me esqueço disso. Esse vídeo não tem preço, não tem preço. Porque, infelizmente, a gente vive num país em que as mulheres são muito agredidas. Se essa pessoa sofria violência doméstica, e o vídeo conseguiu melhorar algo para ela, para mim, ele já foi melhor do que qualquer outra coisa que fiz na vida", desabafa.