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Justiça mantém multa a Neymar por sonegação de imposto, mas diminui dívida

Adriano Wilkson, Pedro Lopes e Ricardo Perrone *

Do UOL, em São Paulo

03/11/2022 04h00

Um juiz federal de Santos decidiu que Neymar terá que pagar uma multa aplicada para contribuintes que cometeram sonegação, fraude e conluio, de acordo com a lei. Publicada na última segunda-feira (31 de outubro), a decisão, por outro lado, diminuiu o valor que Neymar deve à Receita Federal, já que a Justiça concordou com alguns de seus argumentos e o autorizou a abater do valor devido no Brasil impostos já pagos na Espanha.

O valor que o atacante do PSG e da seleção terá que pagar à Receita ainda é desconhecido e será calculado ao final do processo, levando em consideração uma série de fatores. A multa original, cobrada em 2015, era de mais de R$ 188 milhões, mas uma série de decisões favoráveis ao jogador deve diminuir bastante esse montante. Como a decisão é de primeira instância, ainda cabe recurso, tanto de Neymar quanto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, o órgão responsável por defender o Estado.

O processo foi movido por Neymar, seu pai (Neymar da Silva Santos) e sua mãe (Nadine Gonçalves) e duas empresas da família, que questionavam uma multa aplicada pela Receita por transações feitas entre 2011 e 2013, este último o ano no qual Neymar se transferiu do Santos ao Barcelona. Segundo a Receita, a família Neymar simulou negócios com o único objetivo de pagar menos impostos. O juiz Decio Gabriel Gimenez, da 3ª Vara Federal de Santos, concordou:

"O comportamento dos autores permite qualificar a conduta praticada, visto que houve ajuste, livre e consciente, entre as pessoas envolvidas, colidente com a boa-fé objetiva, com vistas a qualificar um acréscimo patrimonial como indenização, por meio da utilização de multa contratual, com vistas a evitar a imposição fiscal e a responsabilização tributária do atleta", escreveu o magistrado.

Na prática, o juiz admitiu que a Receita poderá cobrar uma multa de 150% sobre o valor do imposto devido. Essa multa é aplicada para casos de "sonegação, fraude e conluio", segundo a lei 4.502, de 1964.

O que Neymar e sua família fizeram. Ainda quando Neymar jogava no Santos, seus pais abriram duas empresas para administrar sua carreira, negociar seus direitos e receber verba de contratos que Neymar assinava. Entre 2011 e 2013, o Barcelona pagou 40 milhões de euros a uma dessas empresas para ter o direito de contratar Neymar quando ele saísse do Santos. A empresa pagou imposto de renda por essa transferência, mas com uma alíquota menor, especial para pessoas jurídicas. A Receita entendeu que o valor pago pelo Barça era destinado a Neymar como pessoa física e, portanto, deveria ser tributado em 27,5%. O mesmo procedimento foi adotado em outros contratos de Neymar, como os de direito de imagem, pagos à empresa e não ao jogador como pessoa física.

A Receita multou Neymar e seu familiares por considerar que esse tipo de operação é uma forma de ludibriar o Fisco e sonegar impostos.

Juiz diz que faltou boa-fé e questiona idoneidade dos negócios. Diz o juiz Decio Gabriel Gimenez: "Considerado esse quadro fático, a meu sentir, além dos aspectos formais objeto do auto de infração, que colocam em dúvida a idoneidade da transação, há no mínimo três aspectos materiais críticos, que comprometem a aceitação da operação, visto que colidem com o princípio da boa-fé objetiva."

Esses aspectos seriam:

1 - Neymar escolheu receber 40 milhões de euros do Barcelona na forma de multa como um "subterfúgio", uma maneira de esconder que esse valor era na verdade renda própria e, portanto, deveria ser tributada como renda de pessoa física.

2 - Neymar tentou receber como pessoa jurídica, "vendendo" ao Barcelona o direito de contratá-lo no futuro, um direito incerto, já que ele tinha contrato com o Santos.

3 - Neymar fez o contrato com o Barcelona sem ter a total anuência do Santos, clube para o qual trabalhava na ocasião.

O juiz também argumentou que o próprio Barcelona, ao ser questionado pelas autoridades espanholas, mudou sua declaração dos valores envolvidos na transferência de Neymar e recolheu imposto com a alíquota de pessoa física, maior do que a de jurídica.

Por que a equipe de Neymar comemorou a decisão? Apesar de manter a multa por sonegação, o juiz Decio Gabriel Gimenez concordou com dois importantes argumentos dos advogados de Neymar, o que pode levar o jogador a ficar quite com a Receita.

A primeira delas é o reconhecimento de que os direitos de imagem que o Santos pagou entre 2011 e 2013 às empresas da família de Neymar podiam sim ser tributados como rendimento de pessoa jurídica, com alíquota menor do que a de pessoa física. Os direitos de imagem são pagos a jogadores de futebol por eles terem a imagem explorada em campanhas publicitárias e na divulgação dos clubes e dos campeonatos. Geralmente, são valores superiores aos salários registrados em carteira. Por isso, é importante para os atletas que essas verbas sejam pagas a suas empresas, assim eles podem pagar menos imposto.

A outra e talvez a mais importante é que o juiz aceitou que Neymar use a quantia que ele já pagou de imposto na Espanha para abater sua dívida com o Estado brasileiro. Desde 1999 existe um acordo para evitar que pessoas que transitam entre os dois países paguem imposto duas vezes. De acordo com a sentença, Neymar já pagou 8 milhões de euros pelos 40 milhões que o Barcelona transferiu, e agora essa quantia poderá ser deduzida de sua dívida no Brasil.

Procurada pela reportagem para comentar o caso, a assessoria de imprensa de Neymar afirmou que nem ele, nem seus pais ou seus advogados se pronunciariam publicamente.

Quanto é a dívida de Neymar hoje? Não dá para saber. Os documentos oficiais consultados pela reportagem não mostram a atualização da dívida depois das decisões favoráveis e contrárias a Neymar. Seu caso já tramita desde 2015 no Carf (Conselho de Administração de Recursos Fiscais), um órgão vinculado ao Ministério da Economia que julga reclamações de contribuintes. Naquela época, o montante foi calculado exatamente em R$ 188.820.129,25. Depois de várias decisões contrárias e favoráveis ao jogador, inclusive as da última segunda-feira, esse montante precisará ser recalculado.

Depois do julgamento do Carf em 2017, a equipe que defende Neymar afirmou ter calculado que a dívida seria abatida de R$ 188 milhões para cerca de R$ 8 milhões, mas esse não era um número oficial. A reportagem entrou em contato com Bianca Rothschild, que foi relatora do processo no Carf em 2017, e ela afirmou não ter como precisar o valor atual da dívida. "O Carf não é responsável pela liquidação. Ou seja, não apura os valores finais devidos no processo após a decisão", disse ela.

Agora, a defesa de Neymar tem dito a jornalistas que a dívida deve ser zerada, em razão dos impostos já pagos na Espanha. Mas não existe um cálculo oficial sobre isso. "Essa é uma conta difícil de fazer sem ter o demonstrativo do débito que normalmente acompanha os autos de infração", afirmou Paulo Vieira da Rocha, professor de direito tributário e sócio do VRMA Advogados. "Alguns tribunais administrativos dão um valor aproximado, embora o valor exato no final nunca seja o mesmo. Seriam necessários os autos e muitas horas de trabalho para chegar ao valor exato."

A pedido da reportagem, o tributarista Flavio Sanches, sócio da área tributária do CSMV Advogados, que não tem ligação com o caso, fez um cálculo aproximado com base nos números que encontrou na sentença. Os valores a seguir estão em euros:

Neymar recebeu 40 milhões e deveria ter pagado 11 milhões de imposto de renda no Brasil. Ele acabou pagando 8 milhões à Espanha. Como esse valor pode ser abatido de sua dívida no Brasil, então ele estaria devendo 3 milhões à Receita brasileira (valores todos em euros). Como recebeu uma multa de sonegação de 150% sobre esse valor, a dívida total estaria em 7,5 milhões de euros. O montante ainda teria que ser corrigido pela taxa de câmbio da época e pela taxa Selic.

Sentença define que Neymar praticou sonegação de imposto, fraude e conluio? Diz o tributarista Paulo Vieira da Rocha: "Essa não é uma resposta que eu possa dar de forma categoria, mas em princípio, sim. A multa qualificada significa que na visão do juiz, o jogador incidiu nesses ilícitos. O juiz não deixa muito claro se é uma fraude ou uma simulação. Pela narrativa que o juiz faz, pela leitura que ele, a Procuradoria e a Receita fazem do contrato, eles acreditam que o contrato tem significativos traços de simulação. Até porque esses ilícitos são pressupostos da multa qualificada. O juiz não teria outra razão pra manter a multa se não fosse a incidência desses ilícitos."

Neymar foi ajudado por Jair Bolsonaro para pagar menos impostos? Depois do apoio intenso que Neymar deu à campanha de reeleição de Jair Bolsonaro, passou a circular a ideia de que o presidente teria influenciado a Receita Federal a beneficiar seu cabo eleitoral. Em uma entrevista durante o segundo turno, seu adversário, Lula, afirmou que Bolsonaro e Neymar fizeram um acordo para melhorar a situação fiscal do jogador.

Neymar pai em encontro com Jair Bolsonaro - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Imagem: Reprodução/Instagram

No entanto, não há nos documentos oficiais consultados pela reportagem nada que permita chegar a essa conclusão. A decisão do Carf, um órgão do Ministério da Economia, foi tomada em 2017, ainda sob a gestão de Michel Temer. Neymar entrou com recurso a uma instância superior em abril de 2019, já no governo Bolsonaro. Quatro dias depois, seu pai encontrou o ministro Paulo Guedes em Brasília para tratar do assunto. Mas o recurso não foi apreciado, a multa foi mantida pelo Carf, e Neymar resolveu abrir um processo na Justiça, saindo da esfera de influência do governo.

"Não vejo a menor relação entre uma coisa e outra", afirmou o tributarista independente Paulo Vieira da Rocha. "O auto de infração é anterior ao atual governo. O julgamento seguiu o entendimento prevalecente do Carf sobre a matéria, não se desviou em nada do que ele normalmente entende sobre a matéria. Não vejo nenhuma relação entre qualquer benefício com a aproximação do jogador com o governo. Essa correlação que algumas pessoas estão fazendo, com todo respeito, não tem o menor fundamento."

* Colaborou Igor Siqueira, do UOL, no Rio de Janeiro