Quem vigia o VAR? O que acontece quando o árbitro que não devia errar erra
O jogo era Santos x Cruzeiro, na Vila Belmiro, no dia 1º de agosto de 2018. Aos 11 minutos do segundo tempo, Gabigol, ainda no time paulista, reclamou de pênalti de Romero, da equipe mineira. A bola saiu pela lateral e o árbitro do jogo, Wilton Pereira Sampaio, parou o jogo pela primeira vez em uma competição nacional para uma checagem de vídeo.
Naquela partida, há mais de quatro anos, a torcida brasileira foi apresentada oficialmente ao VAR. A primeira intervenção de um árbitro de vídeo em gramados brasileiros durou pouco menos de 30 segundos e a decisão de campo, de que não tinha acontecido o pênalti, foi confirmada. O jeito como o brasileiro joga, torce e corneta futebol nunca mais foi o mesmo.
Em quatro anos, o VAR virou protagonista —nem sempre positivamente. A reta final da temporada 2022, por exemplo, teve:
- Em Palmeiras 1 x 1 Flamengo, pela 23ª rodada do Campeonato Brasileiro, o juiz autorizou o recomeço do jogo antes da conclusão da checagem de falta dentro da área.
- Em Palmeiras 2 x 1 São Paulo, pelas oitavas de final da Copa do Brasil, o VAR esqueceu de traçar a linha de impedimento em um lance que definiu o gol são-paulino, que levou a decisão para os pênaltis.
- Em Flamengo 0 x 0 Corinthians, pela final da Copa do Brasil, a cabine identificou um toque na barriga inexistente em um lance de pênalti.
O árbitro de vídeo chegou para reduzir os erros graves do futebol, mas não acabou com eles. E agora, quem vigia o VAR?
"O VAR é um seguro, o bote salva-vidas quando a gente estiver se afogando".
A frase é do árbitro Anderson Daronco, um dos mais conhecidos do quadro da CBF. A questão é que, ao assistir a um jogo do Brasileirão, a sensação é que todo mundo pode se afogar junto.
A CBF nega que o campo esteja deixando para a cabine as decisões. O que ela vê é evolução e adaptação. "A ferramenta está sendo domada no mundo inteiro. Vários eventos mostram que ainda há o processo de reconhecimento de algumas situações, que se apresentam de forma completamente nova. A gente tem que ir ajustando. Temos protocolo, regras do jogo, treinamento dos árbitros. O futebol impõe uma pressão sobre a cabine e o campo. Às vezes, a gente tem a melhor reação. Às vezes, não", afirma Péricles Bassols, ex-árbitro que chegou em junho à comissão de arbitragem presidida por Wilson Seneme.
Os dois assumiram o comando dos árbitros após a saída de Leonardo Gaciba, que deixou a CBF justamente por não conseguir conter os erros de arbitragem.
Os problemas
Ao chamar o VAR de ferramenta a ser domada, Bassols traz à tona uma questão que esteve sempre em pauta quando o assunto é erro de arbitragem: a velocidade para se tomar uma decisão. Os árbitros de campo já estão habituados com essa pressão. Quem trabalha com vídeo, porém, trabalha com ela em dobro: o VAR precisa analisar o lance, trocar câmeras para ter a certeza da decisão e então fazer uma análise para os árbitros de campo. Tudo no tempo mais rápido possível.
É aí que entram problemas como o do empate entre Palmeiras e Flamengo, pelo Brasileirão, em que o jogo recomeçou antes do final de uma checagem de pênalti: "agora já foi". A frase foi ouvida no vídeo que a CBF divulgou após a partida, quando o Flamengo já tinha cobrado o tiro de meta. O árbitro Ramon Abatti — que fará parte do quadro da Fifa em 2023 — permitiu o reinicio do jogo mesmo com o tranco do flamenguista Vidal sobre o palmeirense Gómez em revisão.
A comissão de arbitragem considerou a decisão correta. O procedimento, da qual faz parte a linguagem usada, não. Aconteceu um erro de comunicação entre a cabine e o campo.
É um equívoco diferente daquele que aconteceu no empate entre Corinthians e Flamengo, no jogo de ida da final da Copa do Brasil. Nele, em uma bola cruzada na área, Léo Pereira, do Fla, toca com a mão. A cabine fala em desvio na barriga do jogador antes de atingir o braço, o que, de cara, tornaria a jogada legal. Quem assistiu pela TV, e viu o lance em diversos ângulos, percebeu que a bola passa longe da barriga do defensor. No entanto, o ponto central da jogada não está em ter batido ou não na barriga. Para os instrutores da CBF, Léo Pereira "recebe o impacto da bola inesperadamente em seu braço". Além disso, o braço está "em movimento natural para ação de disputa". Logo, "é uma ação normal de jogo, não devendo ser marcada a penalidade".
Para a CBF, os dois casos têm problemas de conceitos de arbitragem — mas a decisão final foi a correta. No primeiro, a comunicação do VAR com o campo não teria sido clara o suficiente para que o árbitro parasse o jogo por mais tempo. Na segunda, o VAR errou a teoria na interpretação do lance, mas acertou ao não enxergar pênalti.
A preparação...
Para amenizar os problemas, a nova gestão da arbitragem da CBF adotou três procedimentos diferentes. O primeiro é uma preparação conjunta de quem trabalha com o VAR em dias de jogo — e que só é possível porque, neste Brasileirão, todos os árbitros de vídeo trabalham do Centro de Excelência da Arbitragem Brasileira (CEAB), em um prédio próximo à sede da CBF, no Rio de Janeiro.
É lá que fica a central do VAR, com dez cabines de árbitro de vídeo da Série A do Brasileirão que se conectam ao campo de jogo por cabos de fibra óptica. A exceção, por questões técnicas, são os jogos na Ressacada, em Florianópolis, estádio do Avaí.
Em dias de rodada, o ritual dos árbitros de vídeo começa cerca de quatro horas antes do jogo. Eles fazem aquecimento em um simulador, usando trechos de partidas anteriores que ficam gravados em um servidor. Com os colegas de equipe em campo, é feito um teste na comunicação para ver se as duas pontas se ouvem.
"É um exercício mental. É igual ensinar alguém a ler ou fazer conta. O VAR é repetição. Se você prepara sua cabeça e seus olhos para aquela ação, quando ela acontece no jogo você tem um estímulo prévio para resolver melhor. E isso ajuda no que o pessoal mais reclama: o tempo que o VAR leva para checar", conta Rodrigo D'Alonso Ferreira.
...a intertemporada...
A segunda ação foi a criação de uma intertemporada. O UOL também acompanhou alguns dias de treinamento na preparação para as semifinais da Copa do Brasil. Treinamentos, seminários e trabalho para melhorar a comunicação cabine-campo — que eles chamam de "conceituação".
Conceituar é dizer por que determinada recomendação foi dada ao árbitro de campo. Além da parte técnica relacionada às regras do jogo, há um foco na linguagem porque o idioma do VAR ainda demanda aprimoramento.
"Se está chamando, é para ter o conceito. Não é para dizer 'eu acho que não foi'. Em geral, se for calmo e assertivo na narrativa do lance, entender bem o futebol, ele vai ter sucesso. Mas não é definitivo. Não vou rotular alguém como bom VAR porque é calmo", diz Péricles Bassols.
O uso do VAR representa uma mudança real de comportamento para juízes que trabalharam uma vida inteira sem o vídeo. Por isso períodos de treinos como esses são importantes. "É difícil falar que você se sente 100% hoje na cabine. Eu apito desde 2000. Por 18 anos, eu estava só dentro do campo. E estamos há quatro, cinco anos na cabine. O número de jogos ainda é bem menor. Porém, como eu estava pré-selecionado para a Copa como VAR, meu foco por dois, três anos estava na cabine", contou Rafael Traci, de 41 anos.
...e a 'geladeira'
O terceiro procedimento é a "geladeira". Oficialmente, ela se chama Pada, sigla de "Programa de Assistência ao Desempenho de Arbitragem". Wilson Seneme, chefe do apito nacional, inclusive, detesta o apelido. Diz que, se fosse só "descongelado", o árbitro ainda seria o mesmo e não haveria mudança.
Rafael Traci é um dos árbitros de vídeo que "congelou". Ele ficou um mês fora das escalas após recomendar ao árbitro de Botafogo x Internacional a marcação de um pênalti contra o time carioca. "A pressão é maior na cabine porque estamos com a imagem. Se a gente tem a imagem e o tempo para rever, a assertividade tem que ser maior. No campo, é questão de um, dois segundos", contou Traci.
Membros da comissão de arbitragem, Giuliano Bozzano e Rodrigo Joia fizeram vídeo-chamadas com Traci para abordar a interpretação do lance de forma específica. Essa é uma das apostas de Seneme para unificar os critérios da arbitragem no Brasileirão — uma das maiores cobranças dos clubes.
Traci conta que fez vários treinamentos em vídeo até que ser aprovado na requalificação. "Não era diário, mas eram dois, três testes por semana", lembra.
Depois de um mês afastado, ele fez três jogos da Série B antes de retornar às escalas do VAR na Série A. Ao contrário dele, outros nomes que cometeram erros crassos ao longo da temporada ainda não voltaram à cabine neste ano.
É o caso do mineiro Émerson de Almeida Ferreira. Ele não checou a linha de impedimento no lance que resultou em um pênalti para o São Paulo no jogo de volta das oitavas da Copa do Brasil. Com a cobrança certeira, o tricolor conseguiu levar o clássico diante do Palmeiras para os pênaltis e, assim, eliminar o rival. O Palmeiras ficou com prejuízo financeiro e esportivo — a presidente Leila Pereira fez cobranças públicas e diretas a Seneme. Émerson ficou dois meses e meio fora das escalas da CBF. E quando voltou, foi para fazer, no campo, duas partidas do Brasileirão Sub-20.
A opinião dos jogadores
Do outro lado do campo, o resultado da introdução da tecnologia no futebol não traz resposta unânime dos jogadores. "O VAR faz o futebol, entre aspas, mais chato. Perde a essência do que era antes. Supostamente, o VAR é para corrigir os erros. Mas você acaba vendo algo pior, o erro fica pior ainda. Eu não vejo o bônus. Essa é a palavra", contesta o volante Erick Pulgar, do Flamengo.
Renato Augusto, do Corinthians, tem um olhar positivo a respeito da ferramenta. "O jogo fica mais justo. Claro que o VAR vai errar de vez em quando. Faz parte do jogo, mas traz um senso de justiça maior", disse ele.
"Eu acho que tudo pode ser melhorado. O VAR vai ser melhorado, as coisas vão mudando. Eu vejo com bons olhos. Eu acho que às vezes demora um pouco [para checar], mas tem mais coisas positivas do que negativas", completa o meia corintiano.
Mas será que erra tanto assim?
A opinião de Renato Augusto é justamente a defesa de dirigentes e árbitros: estatísticas próprias indicam percentual de acerto na casa de 90%. Um relatório de 2019 feito pela CBF citava 98% de precisão nas decisões finais do VAR. Os dados de 2022 ainda estão sendo compilados.
"Não vejo o VAR de forma caótica. Se o VAR fosse uma empresa, com 95% a 98% de acerto, seríamos referência de qualidade no mundo. O que eu vejo é desequilíbrio na repercussão do que é erro e do que é acerto. Só se registra ao público a sensação do equívoco", argumenta Péricles Bassols.
Esse gatilho tem um nome: Central do Apito. É assim que Rede Globo chama sua análise de arbitragem. Vale também para o que fazem as outras emissoras, como a ESPN, que também têm no elenco ex-árbitros. Todos atuam como o VAR, com câmeras e replays à disposição. Mas sem a pressão pela decisão correta, com mais tempo para formar uma opinião e a possibilidade de trocar de ideia no meio do caminho.
"A função deles é levantar os lances polêmicos. E sempre vamos ter lances polêmicos. É o trabalho deles. São funções diferentes. No campo de jogo, temos segundos para tomar decisão. Na Central do Apito, eles têm tempo", contemporiza Bruno Pires, árbitro assistente (Fifa-GO).
"Central do Apito? Não dá para a gente se basear neles, cara. É igual crítico de cinema: tem gente que gosta de drama, de terror e de ação. E ali tem quem gosta disso tudo junto. Eles se misturam e vira uma ficção. Têm que fazer aquilo para ter ibope. Respeito a opinião, mas não dá para a gente ver tudo. O importante é a opinião da comissão, essa é a que vale. Há vezes em que a comissão tem opinião totalmente diferente deles", diz Rodrigo D'Alonso Ferreira.
No fim das contas, a Central do Apito é um dos vigias do VAR. A comissão de arbitragem é outro. E isso só deixa as coisas mais tensas.
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