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A Santos de Pelé: cidade viu um cidadão comum se tornar o Rei do Futebol

Estátua de Pelé no canal 5 de Santos concentrou homenagens após a morte do Rei - Marcelo Justo/UOL
Estátua de Pelé no canal 5 de Santos concentrou homenagens após a morte do Rei Imagem: Marcelo Justo/UOL

Do UOL, em Santos (SP)

02/01/2023 04h00

Em 1956, um garoto franzino de pele negra desceu de um ônibus nas imediações da Praça das Bandeiras no Gonzaga e correu em disparada para o mar. Levantando areia para todos os lados, ele alcançou a imensidão azul e não pestanejou para levar a água à boca. "É mesmo salgada", pensou Pelé, que só muitos anos depois se tornaria o Rei do Futebol.

O ônibus havia saído de Bauru, com escala em São Paulo e última parada no Gonzaga. Foi ali que o Santos buscou o garoto que chegava para testes no clube alvinegro. A partir daí os relatos são muitos sobre a genialidade de Pelé desde a primeira vez que vestiu a camisa santista.

Naquela época, mesmo diante de um sucesso estrondoso e precoce, Pelé morava em uma pensão na rua Euclides da Cunha, 215, no bairro da Pompeia. Coutinho, Dorval, Lima e outros companheiros de time também moravam na casa que pertencia a dona Georgina. Hoje, é Benedicta Rodrigues, 77, que mora no local desde 1998.

"Não sabia dessa história. Quem me contou foi a antiga inquilina, depois que eu adquiri o imóvel. Ela me disse que eu tinha comprado uma casa famosa. Foi uma surpresa legal", contou a nova dona da antiga pensão ao UOL, enquanto atendia também outros repórteres. "Quando a imprensa começou a chegar, eu vi que era verdade mesmo", se diverte.

Pensão que morou Pelé - Marcelo Justo/UOL - Marcelo Justo/UOL
Primeira pensão em que Pelé morou em Santos, na rua Euclides da Cunha
Imagem: Marcelo Justo/UOL

A casa onde morou Pelé não tem luxo. Para entrar, é preciso subir uma escada desde a calçada. No topo dela, um adereço em formato esférico se tornou uma bola de futebol que decora a frente da casa de dona Benedicta. "Fui eu mesma que pintei essa bola, tirei lá debaixo e coloquei aqui. Ainda precisa dar uns retoques", conta.

Pelé viveu os primeiros anos de sua vida em Santos naquele lugar, no andar superior que tem acesso feito até hoje por uma imponente escada de madeira. O local onde Pelé pisou tantas vezes para subir e descer está intacto, sem nenhuma ranhura ou algum ranger.

Em cima, três quartos grandes ainda conservam o mesmo piso de madeira que presenciou inúmeras histórias e travessuras do Rei e seus parceiros de Santos.

Benedicta - Marcelo Justo/UOL - Marcelo Justo/UOL
Benedicta Rodrigues, desde 1998 dona da pensão em que Pelé morou
Imagem: Marcelo Justo/UOL

"Moro sozinha, com Deus e com os amigos que não param de aparecer. Venha, pode entrar e subir, só não repara a bagunça", pede dona Benedicta. "Eu não sei em qual quarto ele dormia, mas é algum desses, tenho certeza que não era na casinha do cachorro", ri.

Era de um daqueles quartos do alto da casa que Pelé tinha que descer correndo pela escada de madeira para não perder bonde que anunciava ruidosamente sua chegada pelos trilhos, acordando qualquer um que porventura perdesse a hora.

Escada de madeira na pensão que morou Pelé - Marcelo Justo/UOL - Marcelo Justo/UOL
Escada de madeira da primeira pensão em que Pelé morou em Santos, na rua Euclides da Cunha
Imagem: Marcelo Justo/UOL

Do tal bonde, que fora a segunda coisa que Pelé vira em Santos logo que desceu na Praça das Bandeiras — logo depois da água salgada do mar —, Pelé pulava na Vila Belmiro para treinar. Na maioria das vezes, voltava diretamente para a pensão para dormir, mas em certos dias atravessava a rua Princesa Isabel em direção à barbearia do Didi, que cortou seu cabelo por mais de 50 anos.

No começo, era algo simples, um corte de cabelo e novamente o bonde para casa. Depois, porém, quando a fama foi crescendo, a aglomeração começou a aumentar toda vez que o Rei do Futebol ia cortar com o barbeiro que havia se tornado seu amigo. Mas ele nunca parou.

De bonde, voltava para a pensão. Pelé não era fã de carteado, como alguns dos seus companheiros de Santos. Nas concentrações antes de jogos, ele gostava mesmo era de dormir.

Bondinho - Marcelo Justo/UOL - Marcelo Justo/UOL
Bondinho exposto na Praça das Bandeiras, no bairro do Gonzaga, em Santos
Imagem: Marcelo Justo/UOL

"Ele dormia muito e era sonâmbulo. Quando levantava no meio da noite, a gente brincava que o adversário do dia seguinte estava ferrado. Principalmente quando era o Corinthians", contou Lalá, ex-goleiro do Santos que jogou com Pelé.

Lalá fez faculdade de Educação Física na Unimes com o Rei do Futebol. A universidade funcionava no Brasil Futebol Clube, localizado na Ponta da Praia. O ex-goleiro tinha recém-aposentado, enquanto Pelé ainda jogava pelo Peixe e estudava.

Em certa época, Pelé mudou-se para outra pensão na rua Oswaldo Cochrane, na quadra da praia, mas o imóvel foi demolido e em seu lugar hoje há apenas uma construção em andamento.

"A casa era do Dr. Cury, engenheiro lá das docas, mas quando ele faleceu, sua mulher ficou meio 'xarope'. Ela arrancou a placa que tinha aqui e maltratava todo mundo que tentava vir conhecer o lugar", conta João Antônio, comerciante do bairro. A placa na pensão dizia "aqui residiu Edson Arantes do Nascimento".

A duas quadras dali se encontra o primeiro imóvel que Pelé comprou. Na esquina da mesma rua da pensão com a rua Vergueiro Steidel. Até hoje, o mesmo estabelecimento está aberto no local: uma bicicletaria, que na época era conduzida pelo seu Chico.

"Seu Chico Ladrão, porque ele era muito careiro", conta um senhor sentado em uma mesa de bar enquanto joga tranca com amigos. Ao ser perguntado sobre Pelé, diz: "Eu conheci o Rei, ele que me deu esse relógio", mas não entra em detalhes. Outro complementa a história: "Pelé era um cidadão comum pra gente que mora aqui, todo mundo encontrava com ele, não tinha essa frescura", diz jogando uma carta na mesa.

"Ele sempre vinha aqui dar parabéns para o Chico, que fazia aniversário três dias depois dele. Essa esquina aí (aponta para a rua Vergueiro Steidel) é inteira dele", conta mais um dos jogadores do carteado.

Em 1964, Pelé renovou contrato com o Santos e ganhou uma casa na rua Oswaldo Cochrane a título de "luvas". Ele trocaria essa casa mais tarde por duas coberturas também no bairro da Ponta da Praia: uma para o pai Dondinho e outra onde mora até hoje a mãe dona Celeste. O local onde morou Dondinho acabou vendido anos depois e, em homenagem ao pai do Rei, se tornou o "Residencial Dondinho", nome que detém até hoje.

Residencial Dondinho - Marcelo Justo/UOL - Marcelo Justo/UOL
Residencial que leva o nome do pai de Pelé, Dondinho, no canal 5 de Santos
Imagem: Marcelo Justo/UOL

A poucos metros dali, uma padaria se tornou o point dos companheiros de Pelé. A padaria "A Santista" fica na esquina do canal 5 e tem uma estátua do Rei do Futebol em frente. Toda decorada com imagens da época em que Pelé jogava no Santos, o local era muito frequentado por quatro dos membros do ataque dos sonhos: Dorval, Coutinho, Mengálvio e Pepe.

"Pelé vinha menos vezes e não conseguia ficar, todo mundo ficava em cima dele e logo ele tinha que ir embora", conta Carlinhos, dono do lugar há 31 anos e responsável pela decoração santista.

Mesmo com raras idas até o local, o Rei do Futebol nutria um carinho muito grande pelo dono da padaria. Diversas foram as vezes em que passou de carro no dia de Natal e parou para cumprimentar o amigo. Foram tantas as oportunidades que acabou ficando "manjado" e o povo santista passou a lotar a padaria na esperança de ver o Rei.

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Carlinhos, dono a padaria "A Santista", no canal 5 de Santos
Imagem: Marcelo Justo/UOL

"A primeira vez que ele falou Carlinhos pra mim, eu chorava só de saber que ele sabia meu nome. Só vivendo a experiência para saber o que é a presença dele", contou.

Visado, Pelé mudou a estratégia, mas não deixou de dar um carinho aos santistas que frequentavam o local. Na época natalina ou de Ano-Novo, Pelé passava de carro em frente à padaria, abria o vidro e gritava "Vai Santos!", dando seu característico soco no ar.

A padaria ia ao delírio e os celulares imediatamente eram levados aos ouvidos para contar a todos os amigos que havia avistado Pelé. Um cidadão comum, de uma cidade pequena com hobbies simples. Um cidadão do mundo, admirado por todo o planeta e para sempre o Rei do Futebol.