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As pessoas que conheci enquanto esperei por 2 horas para dar adeus a Pelé

Fila para o velório de Pelé na Vila Belmiro - Eder Traskini/UOL
Fila para o velório de Pelé na Vila Belmiro Imagem: Eder Traskini/UOL

Do UOL, em Santos (SP)

02/01/2023 19h02

O relógio marcava 14h06 quando entrei na fila para dar adeus a Pelé. O sol quente castigava do alto, mas não afugentava os presentes na fila. Da entrada da imprensa, eu andei só duas quadras para entrar no fim dela, mas não se engane: era tanta gente que já havia dado a volta nos arredores do estádio.

Na minha frente, uma mulher acompanhava a filha. Cristina e Verginia não são santistas, mas o que isso importa nesse momento? "Eu adoro o Pelé e esse é um momento único", disse a mãe a Ana Carolina, a quem conheceu na fila. As duas se tornaram amigas no caminho até a despedida ao maior jogador de todos os tempos.

Um pouco atrás, Fábio Silva reluzia na fila. O sol que não dava trégua refletia em sua camisa imaculadamente branca do Santos. Trazia ao peito um autógrafo como se fosse um troféu: "Ao Fábio, com abraço, Pelé".

DJ de 53 anos, Fábio havia ganhado a camisa do Peixe em uma aposta com um amigo corintiano. Foi uma sobrinha de Pelé, que trabalhava com uma parente de Fábio, que intermediou para, três meses depois, o manto voltar imortalizado. Chegou no dia de seu aniversário. Revivendo a história, ele se arrepiou novamente.

Fábio autógrafo - Eder Traskini/UOL - Eder Traskini/UOL
Fábio Silva, 53, na fila para o velório de Pelé
Imagem: Eder Traskini/UOL

Um pouco mais atrás, uma voz mais alta contava que veio ao velório representando o pai. Ana Cláudia, de 40 anos, não viu Pelé, mas ouviu histórias do pai. Com 85 anos e um reumatismo, ele não conseguiu comparecer.

Perto dela estava Iracema Sampaio, de 72, que também veio sozinha para dizer adeus. Ela bem que tentou chamar amigos para acompanhá-la, mas ninguém aceitou. É que Iracema passou muitos anos imaginando o Rei. No sertão da Bahia, ela ouvia no rádio os jogos do Santos e da seleção brasileira. Relembra com carinho a música "Camisa Dez", de Luiz Américo, que logo após a Copa de 70 questiona: "Dez é a camisa dele, quem é que vai no lugar dele?"

De algum lugar da fila, alguém diz que "parece que Deus está brincando de xadrez. Levou a rainha, o rei e o bispo". Era uma referência às mortes da Rainha Elizabeth II, do Rei Pelé e do Papa Bento XVI no mesmo ano. Outros balançam a cabeça em concordância.

O clima quente, a distância da entrada da Vila e a natureza da ocasião criam uma atmosfera de tensão. As conversas são em volume baixo e o semblante é abatido mesmo naqueles que alegadamente não são os maiores fãs de futebol. Ao contrário dos dias normais, o preto e branco dos arredores da Vila Belmiro encontram mais coloridos. São pessoas com camisas de diversos clubes exibidas sem medo.

Com uma camisa do Palmeiras, Danilo Pugliese anda tranquilamente pela rua, passando em frente às sedes de torcidas organizadas do Santos —seria perigoso fazer isso em qualquer momento, menos hoje. Paulistano, ele desceu a serra para passar o ano novo e aproveitou para comparecer ao velório do Rei. Para ele, gostar de futebol e não reverenciar Pelé é no mínimo contraditório.

Palmeirenses velório - Eder Traskini/UOL - Eder Traskini/UOL
Danilo Pugliese (dir.) se dirigindo ao fim da fila do velório de Pelé
Imagem: Eder Traskini/UOL

Não torcer pelo Santos também não impediu os jovens Felipe e João Pedro Santana, de 15 e 16 anos, de estarem presentes na Vila Belmiro. Com camisas da seleção brasileira e da Inter de Milão, os irmãos ouviram muitas histórias do avô sobre Pelé e decidiram comparecer ao velório daquele que deu ao Brasil uma coisa que os dois nunca viram: a taça da Copa do Mundo.

Para ouvir todas essas histórias, me desloquei bastante pela fila. Quando retornei ao posto inicial, ao lado da Cristina e da Verginia, encontrei mais gente para conversar. Wilton Soares, o Ratinho, me chamou para mostrar uma relíquia: um boneco de plástico de Pelé que ele comprou por cerca de 15 reais nas Lojas Americanas. Foi em 1977.

Wilton veio ao velório com o neto Nicolas, de 11 anos, que pediu para estar na Vila. Wilton viu Pelé jogar três vezes, Nicolas, somente no YouTube. Os dois não têm dúvidas de que Pelé foi o maior jogador que já existiu.

Boneco Pelezinho - Eder Traskini/UOL - Eder Traskini/UOL
Wilton Soares, 54, e o neto Nicolas, 11, na fila para o velório de Pelé
Imagem: Eder Traskini/UOL

O boneco 'Pelezinho' fez sucesso na fila. Depois de me mostrar, Wilton tomou coragem para revelar sua relíquia para todas as câmeras que via pelo caminho. Deu tantas entrevistas que sua esposa e seu neto tiveram que esperar por ele na porta da Vila quando já haviam entrado no estádio.

Depois de cerca de 500 metros, a fila fez uma curva que deixou uma estreita sombra à disposição dos torcedores. Aquilo pareceu melhorar o ânimo. Foi aí que Luís Antônio, 53, apareceu com um acervo de fotos de Pelé na mão, gritando: "Olha a foto, olha a foto. O último adeus".

Como ninguém na fila pareceu se interessar, o comerciante desabafou: "Pelé não vale 10 reais agora? Quando morreu a Marília Mendonça nego quase me bateu por uma foto. Acho que estou no velório errado". Segundos depois, estava vendendo retratos do Rei.

Luís Antonio - Eder Traskini/UOL - Eder Traskini/UOL
Luís Antônio, 53, trabalhando durante o velório de Pelé
Imagem: Eder Traskini/UOL

Vender fotos em velórios é a profissão de Luís. Ele conta que esteve nos velórios do Gugu, João Paulo (da dupla com Daniel) e Leandro (da dupla com Leonardo). "É velório, eu tô dentro", disse rapidamente antes de sair voltando a gritar para a fila.

Do outro lado da rua, o varal da camisas estampa Pelé no peito da amarelinha. José Carlos vende por 50 reais, mas só se você pechinchar um pouco. Assim como a bandeira do Santos parecida com a que foi colocada sobre o caixão do Rei.

O 'marreteiro', como disse que gosta de ser chamado, vai varar a madrugada na rua. Ficaria ainda mais se o velório durasse mais tempo. Como santista, ele quer dar seu adeus ao Rei do Futebol em seu nome e também de seu pai, mas vai esperar a fila diminuir.

varal de camisas - Eder Traskini/UOL - Eder Traskini/UOL
José Carlos, 50, 'marreteiro' trabalhando durante o velório de Pelé
Imagem: Eder Traskini/UOL

Depois de uma hora de fila, uma nuvem ousa atrapalhar a visão que o sol tem do velório do Rei. Na sombra, a fachada da Vila começa a ser avistada ao mesmo tempo que uma música irrompe da frente e alerta para a proximidade do objetivo.

"Mil gols, mil gols, mil gols, mil gols, mil gols. Só Pelé, só Pelé, que jogou no meu Santos". Reflexo da pluralidade de torcedores da ocasião, a última estrofe não é tão forte quanto as primeiras e, por vezes, é trocada por uma ofensa a Maradona.

Apoiado em uma das grades que organizam a fila, Eduardo Carvalho, 32, perde o olhar no horizonte. Em frente à fachada da Vila, ele estampa uma camisa 10 diferente de Pelé nas costas: a camisa do Cosmos, time do Rei nos Estados Unidos. São-paulino, ele ganhou o presente do pai na mesma data em que deu para ele uma camisa do Juventus da Mooca.

Eduardo mora em São Bernardo e representa a família no velório; o pai não conseguiu vir por causa do trabalho. Tanto seu pai quanto o avô contaram diversas histórias sobre Pelé e iam até a Rua Javari para ver o Rei jogar. A idolatria por Pelé passou para Eduardo, que simplesmente não via como não estar presente no velório.

Quando conversou comigo, Eduardo já tinha passado pela fila de quase duas horas, dado seu adeus ao Rei e disse que "iria ficar por aí, pelo menos até chover". Depois que eu o agradeci pela conversa, ele voltou a se apoiar na grade e perder o olhar no horizonte, na direção onde o corpo de Pelé estava.

O burburinho aumentava a medida em que a entrada ia se aproximando, em um misto de tensão e excitação por atingir o objetivo. Duas, três vezes o cântico milionário voltou a ser entoado enquanto a fila andava mais rápido ali.

A pequena Sofia, de dois anos, já tinha se entregado ao sono no colo da tia nos metros finais. Os pais, Lucas de Araújo e Patrícia de Araújo, trouxeram a pequena para a fila diretamente da praia. Os dois são de Valinhos, no interior, e vão embora logo depois de dar adeus ao Rei. Os dois vão se certificar de lembrar à Sofia que ela esteve neste momento.

Sofia - Eder Traskini/UOL - Eder Traskini/UOL
Lucas e Patrícia de Araújo (nas pontas) com a filha Sofia na fila para o velório de Pelé
Imagem: Eder Traskini/UOL

A diversidade do velório recebeu pessoas de todas as idades. Sofia não foi a caçula, prêmio que talvez seja de Phillip, que tem quatro meses na barriga da mãe Mariana dos Santos. Com uma toalha na mão, ela veio antes de ir para a praia acompanhada do pai, Eduardo José. Como todo avô sonhador, Eduardo já fala que Phillip não é nome de jogador, mas que o neto vai jogar nos Meninos da Vila e, um dia, vai ouvir a história de que esteve no velório do maior de todos os tempos.

Foi neste momento que passamos ao lado do caixão do Rei do Futebol. Desde a entrada, os seguranças já diziam para a fila andar, incitando qualquer um que parasse a ir para a frente. Fazer foto e vídeo era permitido, mas andando, nada de ficar parado. À esquerda, com escolta, estava o corpo do Rei, coberto com as bandeiras do Brasil e do Santos.

Se Phillip foi o mais novo, Maria Aparecida Gonçalves se candidata ao posto de maior experiência. Aos 89 anos, dona Maria enfrentou as duas horas de fila com uma bengala e uma camisa do Santos customizada com bordado que ela própria vez.

Maria Aparecida Gonçalves - Eder Traskini/UOL - Eder Traskini/UOL
Dona Maria Aparecida Gonçalves, 89, após passar pela fila do velório de Pelé
Imagem: Eder Traskini/UOL

Ao ouvir que eu era jornalista, já depois de passar pelo Rei, ela sentou na escada que leva à arquibancada da Vila e tirou da bolsa um envelope repleto de fotos. Fotos físicas, reveladas, não digitais. Só isso já bastaria para dizer que é uma relíquia, mas o conteúdo é ainda mais relevante.

Maria Aparecida com Maradona - Eder Traskini/UOL - Eder Traskini/UOL
Foto guardada por Dona Maria Aparecida Gonçalves com Maradona
Imagem: Eder Traskini/UOL

Nas fotos, dona Maria Gonçalves não aparece somente ao lado de Pelé, em uma festa na Vila Belmiro, mas também ao lado de Maradona. Ela foi cozinheira de Careca em Nápoles, onde conheceu o argentino. Quando falo sobre a honra que ela teve, dona Maria desconversa: "vim dar adeus ao meu amigo. E ai de quem falar mal dele pra mim, são invejosos".

Maria Aparecida Gonçalves com Pelé - Eder Traskini/UOL - Eder Traskini/UOL
Foto de Dona Maria Aparecida Gonçalves onde ela aparece ao lado de Pelé
Imagem: Eder Traskini/UOL

Cerca de 1,5 km de fila e uma hora e quarenta de duração me deram uma certeza. Pelé encantou tanto o mundo que sua morte reuniu pessoas que não possuem nada em comum além da reverência ao eterno Rei do Futebol.