Topo

Anos após tragédia, ninguém usa campo que virou necrotério em Brumadinho

Sem jogos, o campo do Córrego do Feijão, em Brumadinho, não recebe mais manutenção - Victor Martins/UOL
Sem jogos, o campo do Córrego do Feijão, em Brumadinho, não recebe mais manutenção Imagem: Victor Martins/UOL

Victor Martins

Do UOL, em Brumadinho (MG)

27/01/2023 04h00

Passados quatro anos do rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, o Córrego do Feijão ainda sofre o impacto da tragédia que matou 272 pessoas. O local é um dos bairros do município mais afetado pela lama que destruiu casas, arrasou com famílias e abriu uma ferida que jamais vai cicatrizar. Quem também morreu naquele 25 de janeiro de 2019 foi o campo de futebol localizado ao lado da igreja de Nossa Senhoras da Dores, que serviu como base de apoio depois da tragédia e foi usado até como necrotério.

Desde então, a bola nunca mais rolou naquele gramado. As marcas das travas das chuteiras dos jogadores deram lugar a marcas de pneus - parte do local serve como estacionamento para quem vai até a igreja. Há também marcas deixadas por cavalos que usam o gramado como pasto e alguns formigueiros.

As principais marcas são emocionais. Todos do pequeno povoado guardam na memória o que aconteceu no fim da manhã daquela sexta-feira, dia 25 de janeiro de 2019. Para quem não é do Córrego do Feijão, parece apenas um campo abandonado, não utilizado por um logo tempo. Mas para quem mora lá, para quem sofreu diretamente com a tragédia, os sentidos ativam as lembranças. Como os corpos regatados na lama eram levados para o campo antes de seguirem para o IML (Instituto Médico Legal) de Belo Horizonte, o forte odor é sentido até hoje pelos moradores. "Esse campo tem o cheio da morte", contou Clenilson Geraldo de Souza, morador do Córrego do Feijão, em entrevista ao UOL.

  • A utilização do campo ficou suspensa por causa dos rejeitos da barragem. Como os corpos resgatados foram lavados ali, o gramado foi contaminado.
  • Antes da tragédia o campo era utilizado para jogos do Novo Ideal, o time amador de Córrego do Feijão, para peladas dos moradores do vilarejo e para as brincadeiras das crianças.
  • Sem campo para mandar as partidas, o Novo Ideal passou a jogar por diversos locais de Brumadinho. Até mesmo Betim, cidade vizinha, se tornou opção para o time alviverde.
  • O campo também era bastante utilizado para a realização de festivais, o que é muito comum no interior de Minas Gerais. São vários jogos durante o dia, todos valendo troféus, entre equipes de diferentes locais. O último festival realizado no Córrego do Feijão aconteceu em 2018 e o Novo Ideal, o time da casa, venceu o jogo que disputou e levantou sua última taça naquele campo.

"Para nós o sofrimento não foi apenas no dia 25. É um sofrimento diário, que já dura quatro anos e nunca vai acabar". Clenilson Geraldo de Souza, morador do Córrego do Feijão.

Cemitério do Córrego do Feijão, em Brumadinho, fica atrás do campo utilizado como ponto de apoio pelos Bombeiros - Victor Martins/UOL - Victor Martins/UOL
Cemitério do Córrego do Feijão, em Brumadinho, fica atrás do campo utilizado como ponto de apoio pelos Bombeiros
Imagem: Victor Martins/UOL

Situação do gramado

  • A grama verde no campo do Córrego do Feijão tem uma explicação: o período de chuvas. O normal dos últimos anos é a grama seca, de um local que não recebe cuidados como era na época em que todos os domingos eram de futebol.
  • A rede em umas das traves ainda resiste, mas está apodrecendo, afinal são quatro anos ali, seja com chuva ou sol. Já na outra baliza a rede apodreceu e não existe mais.
  • A sombra das árvores faz com que o sol quase nunca chegue diretamente ao travessão de uma das traves. E o sinal do tempo sem uso e manutenção fica evidente no acumulo de ferrugem e lodo.

Curiosidade

O campo era praticamente a única diversão do vilarejo. As manhãs de domingo começavam com a missa na igreja de Nossa Senhora das Dores e terminavam com o futebol, fosse jogo do Novo Ideal ou até mesmo um confronto entre casados x solteiros da comunidade. As festas religiosas também eram naquele gramado, com barracas e um palco para a atração musical. Mas nada mais aconteceu ali após o dia 25 de janeiro de 2019. Não há clima para festejar,

Todo mundo perdeu alguém

Córrego do Feijão é uma comunidade pequena. Praticamente todo mundo perdeu alguém: familiar, amigo. vizinho. Muitos moradores foram embora, e paira no ar o receio de que a própria comunidade, um dia, acabe. Atualmente, menos de 50 famílias residem no local, muitas por falta de opção, já que a Vale ainda não indenizou os moradores locais. O Novo Ideal, dono do campo, perdeu três jogadores e uma incentivadora.

  • Reinaldo era lateral-direito e trabalhava na Pousada Nova Estância, que foi atingida pela lama da barragem.
  • Gil jogava como volante e trabalhava na mineração. Um dos moradores mais influentes do local, ele tinha no Cruzeiro uma de suas grandes paixões. Assistir aos jogos da Raposa e conversar sobre o clube era o que mais gostava de fazer.
  • Zinho atuava no meio e no ataque e também trabalhava na mineração. Era considerado um dos craques do time.
  • Sirlei de Bruno Ribeiro era a secretária municipal de desenvolvimento social e morava em sítio no Córrego do Feijão. Ela estava em casa no momento do acidente e foi atingida pela lama. Sirlei era presença constante nos jogos do Novo Ideal e ajudava o clube na busca por patrocinadores.
  • Ao todo foram 27 moradores do Córrego do Feijão que perderam a vida em 25 de janeiro. Alguns estão enterrados no pequeno cemitério que fica na rua atrás do campo e próximo à igreja.

Um dia de lembranças e emoção

Campo do Córrego do Feijão, em Brumadinho, não foi utilizado após janeiro de 2019 - Victor Martins/UOL - Victor Martins/UOL
Campo do Córrego do Feijão, em Brumadinho, não foi utilizado após janeiro de 2019
Imagem: Victor Martins/UOL

O UOL esteve no Córrego do Feijão no último dia 25, exatamente quatro anos depois da tragédia. Os moradores se reuniram na igreja de Nossa Senhora das Dores para uma missam em homenagem aos 272 mortos na tragédia. A cerimônia foi marcada por muita emoção, com o sino tocando às 12h28, exatamente no mesmo horário do rompimento da barragem. Uma oradora não segurou as lágrimas e não conseguiu terminar de ler a carta que escreveu para lembrar de familiares e amigos mortos em janeiro de 2019.

Como a dor ainda é muito grande e moradores ainda aguardam desfecho na busca por uma indenização, a maioria prefere não gravar entrevista. Foi assim com os responsáveis pelo Novo Ideal e com muitos outros moradores do distrito. Quem topou falar foi o agricultor Clenilson Geraldo de Souza, que perdeu a plantação em 2019 e hoje vive do auxílio da Vale enquanto espera pela indenização.

UOL: Qual era a rotina do campo antes da tragédia de janeiro de 2019?
Clenilson Geraldo de Souza:
Esse campo era muito importante. Aqui que as crianças brincavam, aqui que os times jogavam aos domingos, as festas eram sempre no campo. Mas hoje não tem mais o campo. Quatro anos depois do crime não tem mais um lugar para jogar futebol, além de não ter as pessoas que vinham jogar bola aqui. Depois de tudo que a gente perdeu, nós também perdemos a ligação bonita que exista entre campo e igreja. A gente vinha para missa e já ficava para o futebol. Alguns iam jogar e outros apenas para assistir. Esse campo, ao lado da igreja, era fundamental para Córrego e perdemos após a tragédia.

UOL: Como é morar em Córrego do Feijão após o rompimento da barragem?
Clenilson:
Morar em Córrego do Feijão é uma luta diária. Todos os dias a gente acorda e procura um motivo para continuar aqui. Eu não escolhi ficar no Córrego do Feijão, mas Deus quis que eu ficasse. Não estou por vontade própria, mas tento aproveitar todos os dias que ainda tenho aqui para deixar algo de bom. É tentar com todas as forças reerguer essa comunidade, que perdeu tanta gente (27 mortos) e outros tantos foram embora (restam menos de 50 famílias no local) depois do dia 25. Hoje somos poucos, mas as pessoas que estão aqui hoje buscam um motivo para seguir no Córrego do Feijão.

UOL: Como é a relação com a Vale?
Clenilson:
A Vale é aquele vizinho que é ruim, mas para fora parece ser bom. Só sabe o que a Vale é capaz de fazer quem é vizinho dela. A minha família perdeu muito com essa tragédia (a esposa de Clenilson perdeu seis primos e um sobrinho). Então, sequer somos reconhecidos como atingidos por ela. Passados quatro anos do rompimento, a gente vive com o emergencial da Vale (cerca de R$ 1,2 mil por mês) e esse é o problema. Eu construí toda a minha vida no Córrego e tinha tudo. Eu tinha família, tinha casa, tinha carro e nunca dependi da mineração para sobreviver. É com muita tristeza que eu digo que a gente precisa desse emergencial para sobreviver. E tudo que vamos fazer aqui em Córrego a gente esbarra na Vale. Por isso eu digo que a Vale é aquele vizinho ruim, mas quem é de fora não acredita. Só quem é daqui sabe que esse vizinho é muito ruim, pois quem está fora não sabe o que passamos aqui.

Novo campo

Após a tragédia, a Vale prometeu a construção de um novo complexo esportivo em Córrego do Feijão. O local já foi escolhido, cerca de 500 metros distante do campo abandonado. Por enquanto, foi feita apenas parte da terraplanagem e não existe uma estimativa para a conclusão.