Brasil não tem protocolo espanhol que foi essencial em caso Daniel Alves
A reação rápida dos funcionários da discoteca Sutton, a chegada da polícia ao local, a retirada da mulher de 23 anos em uma ambulância e os exames de corpo de delito em um hospital. Os procedimentos realizados na noite de 30 de dezembro em Barcelona, no caso em que Daniel Alves é acusado, fazem parte de um protocolo que tem como objetivo prevenir e combater episódios de agressão sexual.
Criado em 2018, em Barcelona, o "No Callem" ("Não nos calaremos", em português) é um protocolo de ações seguido atualmente por 25 discotecas da cidade, além de oito festivais de música e seis espaços de eventos. A iniciativa inclui o treinamento de funcionários e uma lista do que deve ser feito caso seja comunicado um caso:
- A prioridade dos funcionários será acompanhar e atender a denunciante sem nenhum tipo de preconceito machista e respeitando suas decisões;
- Os funcionários levarão a denunciante para um lugar tranquilo e procurarão amigos(as) que estejam no local e que possam ficar com ela.
- A denunciante será informada sobre quais são os recursos disponíveis (polícia, serviços sociais, atendimento médico).
- Depois que a denunciante decidir o que quer fazer, os funcionários entrarão em contato com os serviços necessários;
- Caso a denunciante decida ir a um desses locais, a casa noturna colocará à disposição um serviço de táxi que tem convênio com o protocolo.
Ação imediata
Em entrevista exclusiva ao UOL, Ester García López, advogada da mulher que acusa Daniel Alves, afirmou que a ativação do protocolo de forma ágil foi fundamental para reunir indícios no caso.
"Essa ação imediata foi o que levou a poder conseguir indícios contundentes de uma maneira muito rápida. É isso que deve acontecer: quando uma mulher é agredida, a ação deve ser imediata. Algumas discotecas, por exemplo, apagam as imagens do circuito de TV a cada 15 dias, por questões de memória. Então o importante é que cada vez haja mais protocolos para todas as discotecas, tanto da Catalunha quanto de toda a Espanha", afirma.
A Federação Catalã de Associações de Atividades Recreativas e Musicais (Fecasarm) já recomenda que o protocolo seja adotado por todas as casas noturnas da Catalunha. O secretário-geral da entidade, Joaquim Boadas, é também o responsável pela Spain Nightlife, que inclui casas de outras regiões do país. Ele afirma que novos protocolos serão implementados nos próximos meses.
"Todos esses protocolos são cumulativos e, caso sejam mais implantados e seguidos, ficará cada vez mais difícil condutas como esta. Com isso, teremos conseguido nosso objetivo, que é deixar claro que esse tipo de coisa não pode acontecer. Incentivo todas as discotecas e também outros locais a adotarem esse tipo de medidas", diz ao UOL.
Um dos novos protocolos que será adotado a partir de fevereiro é o "Ask for Angela" (Pergunte pela Angela, em português). Criado na Inglaterra, o protocolo tem semelhanças com o "No Callem", adotado pelos funcionários da Sutton no caso de Daniel Alves. A principal diferença é que a vítima de um possível assédio ou agressão pode avisar os funcionários da casa sem que o agressor perceba, com uma frase: "Onde está a Angela?".
Essa frase-código dará início ao protocolo, tentando prevenir uma agressão mais grave. A primeira ação dos funcionários, a partir do aviso, é separar a denunciante (vítima) do agressor e levá-la para um local seguro.
Como (não) é no Brasil
Segundo a professora de pós-MBA da Legal Ethics and Compliance de São Paulo, Patrícia Punder, no Brasil não existe qualquer protocolo similar ao da Espanha. Há alguns estados com leis estaduais sobre violência contra a mulher em estabelecimentos públicos, mas segundo ela, mesmo nesses lugares não existe uma padronização de funcionamento.
"A Espanha tem uma legislação de combate à violência contra a mulher que é única, diferentemente do Brasil. Por aqui, são muitas leis diferentes para casos diferentes, o que dificulta a criação de um protocolo eficaz e nacional. Ela explica: "Temos no Brasil diversos marcos legais para situações distintas: temos a Lei Maria da Penha, a lei do feminicídio, a lei do 'minuto seguinte'; temos a que tipifica o crime de importunação sexual, a lei Carolina Dieckmann, e esses são apenas alguns exemplos. Não são todas", diz.
"Temos leis demais e pouca efetividade. Na Espanha, não importa onde você esteja: pode ser na sua casa, num bar ou num restaurante. A mesma lei tipifica o assédio, o estupro e as violências contra a mulher como um todo. E essa lei abrangente obriga que todos esses espaços tenham um mesmo protocolo de ação nesses casos. Então, todos os funcionários desses estabelecimentos, sejam eles contratados ou terceirizados, são treinados para o protocolo."
No Brasil, pela inexistência de uma lei abrangente, os espaços não seguem uma norma igualitária. A especialista explica, ainda, que muitos seguranças são policiais que fazem trabalhos freelancers, o que ainda mais faz com que ajam como acham que devem, sem que a ação seja padronizada.
"Mais forte do que ter dez leis sobre o tema é criar uma única que faça todos os estabelecimentos serem obrigados a treinar seus funcionários, inclusive os terceirizados."
A advogada especialista em violência contra a mulher Gabriela Manssur concorda. Segundo ela, ter um protocolo é indispensável durante eventos. Ela afirma que, devido à repercussão do caso Daniel Alves, ela pretende apresentar um projeto de lei à Câmara e ao Senado determinando que esse protocolo seja criado.
"Aqui no Brasil é tudo muito diferente. Atuo em um caso de uma menina que foi abusada em um rodeio há anos e até hoje o inquérito não foi concluído, não se apurou a autoria dos fatos, não fizeram exames. Eu quem peguei essa menina e levei na minha ginecologista, que constatou lesões gravíssimas no ânus e na vagina. Fui eu quem a levei num laboratório, que confirmou que tinha substância 'boa noite, Cinderela' na bebida dela. A polícia deveria ter ido atrás de tudo isso. Não eu".
Para Gabriela, os organizadores devem se responsabilizar pelo que acontece em seus eventos, e sem um protocolo fica muito difícil padronizar como se deve agir.
"Esse caso do Daniel Alves deve ser um divisor de águas, e um exemplo para o Brasil. Se não fosse o protocolo, tudo teria sido diferente. Essa mulher foi acolhida e a polícia conseguiu juntar indícios para começar a investigação. Ele está preso. Tudo por causa do protocolo".
Bares agem por conta própria
Dono de bares tradicionais em São Paulo, o empresário Facundo Guerra conta ao UOL que decidiu estabelecer um protocolo contra assédio e violências de gênero em um de seus bares, o Bar dos Arcos, no centro da cidade, no fim do ano passado. A ideia é espalhar para os demais assim que comprovada a eficácia.
No 'Arcos', as chefes de bar são mulheres; a equipe de brigada foge é composta por pessoas LGBTQIA+ e todos os funcionários, sem exceção, são treinados para atender mulheres em situação de violência. Quem trabalha no balcão fica atento a todos os casos -de homens insistentes no flerte aos que não param de oferecer bebidas alcoólicas para mulheres já alcoolizadas. "Estamos sempre em alerta".
Se uma mulher se sentir intimidada no espaço de Facundo, ele explica, ela pode conversar com qualquer pessoa da equipe para reportar o fato. A pessoa em questão vai avisar ao gerente, que vai tomar as medidas cabíveis. Em caso de violência, vai chamar a polícia. Em casos de constrangimento, mas sem violência, o sujeito é expulso do bar.
Esse protocolo não é obrigatório nos bares de São Paulo, mas deveria ser. Como qualquer mudança de cultura, começa com alguns. E não é só por bondade da nossa parte. É claro que um lugar seguro para as pessoas vai aumentar a popularidade do espaço, mais pessoas vão querer frequentar. Por isso, decidimos implementar esse treinamento, e espero que em breve se torne lei pelo Brasil inteiro".
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