Enrolado em um bandeirão do Palmeiras, o caixão de Gabriella Anelli percorreu o trajeto da capela do Memorial Parque Paulista, em Embu das Artes, até o túmulo em que foi enterrada. O percurso, marcado pelo bumbo da Mancha Verde e pelos cânticos de líderes da torcida, foi colorido pelo verde dos sinalizadores.
O Palmeiras era a grande paixão de Gabriella, que trabalhava cuidando de crianças autistas e com síndrome de Down para poder assistir a todos os jogos do time. O último deles, domingo (9), quando o Palmeiras recebeu o Flamengo em casa pelo Brasileirão, foi também o último dela.
Gabriella foi morta após ser atingida por estilhaços de uma garrafa possivelmente arremessada por um torcedor flamenguista. O crime aconteceu na Rua Padre Antonio Tomas, nos arredores do Allianz Parque, no mesmo lugar em que foi assassinado há 35 anos o fundador da Mancha Verde: Cléo.
Cleofas Sóstenes Dantas da Silva foi baleado com dois tiros ao lado do antigo Parque Antártica, na mesma Rua Padre Antonio Tomas, em 1988. O assassinato aconteceu cinco anos depois da fundação da Mancha Verde, torcida da qual Gabriella também participava. Ela usava a camisa da Mancha e tinha diversos amigos na torcida, que estava em peso na cerimônia de sepultamento.
De acordo com os torcedores da Mancha Verde nos anos 80, Cléo era um líder destemido, bom de briga e disposto a quase tudo para defender a organizada. Mas outras pessoas que conheceram Cléo o descrevem como alguém capaz de fazer "maldades" com torcedores rivais.
Cléo e os demais fundadores da Mancha são os personagens reais de "Sobre meninos e porcos", a terceira temporada do podcast "UOL Esporte Histórias". Sua morte é considerada a primeira por brigas de torcidas no Brasil, e até hoje não foi solucionada.
As autoridades responsáveis pela investigação não têm conhecimento sobre os motivos subjacentes e as pessoas responsáveis pelo crime. Entretanto, aqueles que mantinham uma relação próxima com Cléo acreditam veementemente que sua morte foi um ato de retaliação proveniente de um grupo rival, após um confronto no qual a Mancha Verde teria saído vitoriosa.
Até então, contam os envolvidos ao UOL Esporte Histórias, torcedores só podiam brigar "na mão", sem usar qualquer artefato. Era como um código de conduta — nada oficial — cujo intuito era exatamente evitar mortes. Além de não poder usar qualquer instrumento na briga, quem estivesse no chão também deveria ser preservado. Só que, ao perder um desses confrontos, um torcedor começou um plano de vingança: matar Cléo. Ele morreu aos 24 anos, vítima de uma emboscada.
Com isso, na partida seguinte ao assassinato — contra o Cruzeiro —, os integrantes da torcida organizaram algumas homenagens para o ex-companheiro. Quem foi ao estádio naquela ocasião viu uma queima de fogos de mais de três minutos assim que a bola rolou. O placar eletrônico mostrava a frase "Cléo e Palmeiras, unidos eternamente". Mas a festa foi interrompida por cânticos da Máfia Azul, que insultavam Cléo. Os relatos de quem estava presente diz que os cruzeirenses cantaram "Cléo morreu, a Mancha se fu***". A provocação desencadeou uma briga no setor destinado à torcida visitante. Em seguida, palmeirenses que estavam em outras partes da arquibancada correram para ajudar.
"Cléo é o maior ícone da torcida do Palmeiras. O cara que mais gostava de fazer festa em arquibancada. Ele era doidão, ficava inventando coisa, até irritava", contou Paulo Serdan, ex-presidente e fundador da Mancha Verde ao podcast.
A morte de Cléo, 35 anos antes da partida precoce de Gabriella, são início e meio de uma realidade violenta: a guerra entre torcidas.
Sobre meninos e porcos
A violência entre torcidas foi retratada na terceira temporada do podcast UOL Esporte Histórias. A série "Sobre meninos e porcos" conta em seis episódios a história de como as torcidas organizadas saíram da festa e chegaram à violência.
O relato é centrado no assassinato de Cleo Sóstenes Dantas nos anos 1980, considerado o marco da chegada das armas de fogo às brigas de organizadas.
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