'Mulher não joga assim': atletas da Copa já tiveram de provar sexo feminino

Jogadoras da Copa do Mundo feminina já tiveram de passar, em outras competições, por um teste para "provar" que são do sexo biológico feminino.

Uma verificação semelhante — mas chamada de "verificação de gênero" — também existe no Mundial da Fifa, que começou na quinta-feira passada, embora não haja notícias de que tenha sido solicitada até agora nem muita clareza sobre os critérios.

Barbra Banda, de 23 anos, estreou no sábado (22) na Copa do Mundo Feminina, como capitã da Zâmbia. A trajetória da jogadora africana foi marcada por um pedido que já assombrou outras atletas no passado.

A atacante foi cortada da Copa das Nações Africanas (CNA), em 2022, depois que seus exames apontaram um nível de testosterona acima da média. O exame que detecta o hormônio, aplicado em todas as jogadoras da CNA, foi usado como critério para colocar em dúvida o sexo biológico da atacante.

FIFA também tem 'verificação'

A Fifa, responsável pela Copa, tem uma política chamada de verificação de gênero desde 2011, mas não há indicações nas regras da organização sobre limite de testosterona para ser "aprovada" no teste.

Diferentemente da CNA, a Fifa não obriga todas as jogadoras a passarem pela prova. Para que alguém seja testado, é necessário que haja um pedido de alguma das seleções envolvidas na competição.

A federação afirma que vai rever seu posicionamento sobre o exame após esta edição da Copa do Mundo.

"É um tópico muito, muito complexo. Muitas pessoas têm suas próprias opiniões sobre isso e nosso papel é levar todas em consideração. E por isso é importante um processo de consulta, porque temos de entender todas as visões, a pesquisa, as evidências, as situações individuais e, claro, o lado dos direitos humanos. E temos de unir todas essas coisas", afirmou Sarai Bareman, ex-jogadora que chefia o setor de futebol feminino da Fifa, à BBC.

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O teste da Fifa é definido como "verificação de gênero", embora gênero seja ligado à identidade de alguém (ou seja, à forma como a pessoa se expressa socialmente e não às suas características biológicas). A federação também já foi criticada por não dizer quais seriam seus critérios.

Em seu regulamento, a Fifa afirma que cabe ao médico de cada seleção enviar "histórico médico, níveis de hormônios sexuais, diagnósticos e tratamentos" de uma jogadora que esteja sob investigação. Mas, caso as informações não sejam conclusivas, um profissional independente pode fazer uma verificação mais ampla, que inclui exame físico.

A Comissão de Direitos Humanos da Austrália já pediu que a Fifa esclareça se o regulamento exclui mulheres transexuais da competição. O documento emitido pela entidade, em 2011, não menciona se a genitália é determinante no julgamento dos casos.

"Esse posicionamento precisa urgentemente ser esclarecido e atualizado", defendeu a Comissão, em documento emitido em 2021.

Jogadoras já foram obrigadas a tirar a roupa

Para atuar na Copa de 2011, sediada na Alemanha, a atleta sueca Nilla Fischer, hoje com 38 anos, conta que também teve de passar por uma verificação do tipo.

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Em sua biografia, a jogadora — que atuou como meia da seleção da Suécia — revelou que ela e suas colegas foram obrigadas a tirar a roupa e "mostrar a genitália" para médicos, que queriam "comprovar" que elas eram do sexo biológico feminino.

"Nós fomos orientadas a não fazer depilação 'lá embaixo' nos dias anteriores e que nós iríamos mostrar nossas partes íntimas para o médico", declarou a sueca no livro "Eu Não Contei Nem Metade".

Nós pensamos: 'como chegou a isso?'. Por que somos forçadas a fazer isso agora? Tem de existir outras formas de fazer isso. Nós deveríamos nos recusar? Ao mesmo tempo, ninguém quer jogar fora a chance de jogar uma Copa do Mundo. Apenas temos de acabar com isso, não importa o quão humilhante e nojento pareça.
Nilla Fischer, em sua biografia, em trecho reproduzido pelo Daily Mail

Desiree Ellis foi orientada pelo pai a ficar nua para provar gênero, na juventude
Desiree Ellis foi orientada pelo pai a ficar nua para provar gênero, na juventude Imagem: REUTERS/Gonzalo Fuentes

Já Desiree Ellis, de 60 anos, passou por uma experiência semelhante na juventude. Hoje técnica da seleção feminina da África do Sul, ela foi orientada pelo pai a ficar nua para provar que tinha uma vagina.

"Naquela época eu era pequena, não tinha seios e tudo mais. Eu me juntei a um time de futebol e meu pai costumava me levar até o campo. E no momento em que entrei e comecei a 'fazer algumas coisas' as pessoas disseram: 'Não pode ser uma menina, meninas não jogam assim", lembrou a atleta aposentada à BBC África.

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Meu pai me disse para abaixar meus shorts e eu tive de fazer isso em alguns jogos, até que se espalhassem as fofocas sobre essa menina que parecia um menino e estava jogando. Tudo que eu queria fazer era jogar.

'Me senti envergonhada': coreana pensou em desistir do futebol

Park Eun-seon: seis times exigiram que ela passasse pelo teste de gênero, em 2013
Park Eun-seon: seis times exigiram que ela passasse pelo teste de gênero, em 2013 Imagem: Jung Yeon-je / AFP

Park Eun-seon, 36, fará sua terceira participação em Copas. Mas a sul-coreana viu uma carreira promissora virar de cabeça para baixo em 2013, quando técnicos de pelo menos seis times exigiram que ela passasse por um teste.

Naquela temporada, a atacante tinha marcado 19 gols pelo Seoul City Amazones, que disputava a Liga Feminina Sul Coreana, mais conhecida como WK League. A equipe acabou ficando em 2.º lugar — e seu bom desempenho terminou com questionamentos.

"Me machuca que é uma situação parecida com a de quando muitos técnicos eram legais comigo na intenção de me levar para seus times, mas depois mudavam radicalmente", escreveu Park em um post no Facebook, hoje deletado, após ser notificada sobre a polêmica.

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Park afirmou também que já tinha passado pela "prova" para competir na Copa e nas Olimpíadas, em 2003 e 2004, o que a deixou "chateada e envergonhada". Na época, a atleta tinha acabado de atingir a maioridade.

Segundo a CNN, o pedido feito em 2013 revoltou o Conselho Nacional de Direitos Humanos sul-coreano, que definiu o questionamento sobre o sexo da jogadora como "assédio sexual".

O Conselho Esportivo de Seul, capital do país, também repudiou o possível teste, afirmando que eles são "uma séria violação dos direitos humanos".

Com a repercussão negativa, os seis técnicos que desafiaram Park afirmaram que estavam "brincando" ao pedir o teste. Mas não foi o fim da história para a jogadora.

Aquilo me machucou muito. Eu não estava brava, mas sim intrigada. Eu questionava por que tinha de enfrentar tudo aquilo. E pensava frequentemente em desistir do futebol, mas senti que se fizesse isso estaria cedendo às reclamações.
Park Eun-seon, à CNN Sport, no início deste mês

"Talvez eu realmente fosse muito boa", ironizou a sul-coreana, que não teve de passar por testagens arbitrárias desde então.

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