Rata foi expulsa de casa por jogar futebol: 'Apanhava de chicote'

Iracema Ferreira, a Rata, é ex-jogadora da seleção brasileira e uma das pioneiras do futebol feminino no Brasil. Ela contou as dificuldades que passou apenas para seguir seu sonho de jogar futebol.

Rata começou no esporte quando a modalidade ainda era proibida para as mulheres no país — a queda da proibição só aconteceu em 1979. Ela, que defendeu a Canarinha entre as décadas de 1980 e 1990, luta por cada vez mais reconhecimento e visibilidade ao futebol feminino.

Ela foi expulsa de casa por jogar futebol e apanhou de chicote do pai por praticar o esporte. "Meu pai me chamou, eu apanhei muito, e ele falou: 'Isso não pode continuar. Eu já estou cansado, falo, falo, e não adianta, não me obedece. E eu não quero mulher 'homem' na minha família. Então, pode sair de casa porque eu não quero mais você aqui'. Eu peguei uma bola que tinha e saí', disse em entrevista ao UOL.

Rata diz que o futebol feminino está evoluindo, mas a luta segue. "Realmente, o futebol está evoluindo bastante, mas é claro que continua faltando muita coisa, né. A luta ainda é muito grande, temos uma longa caminhada, mas o futebol feminino evoluiu bastante, vendo da minha época. (...) As meninas [jogadoras da seleção] estão viajando de avião fretado, isso foi uma grande evolução. Infelizmente, não tive essa oportunidade, mas fico muito feliz que isso esteja tomando esse caminho. A gente tem que ter a consciência de que ainda falta muito, não só no futebol feminino, mas para mulher no geral."

A ex-jogadora ainda falou sobre a atual seleção brasileira. "Hoje, o Brasil tem uma estrutura muito melhor, tem uma base melhor, uma força muito maior. As meninas treinam na Granja Comary com toda a estrutura, com todo o atendimento da mesma forma que eles tratam os meninos. Eu acho que o Brasil está forte, embora as outras seleções sejam boas, vai ser difícil. (...) A Copa do Mundo é uma competição muito diferente dos outros campeonatos. Na Copa, a gente vai com uma sede, com sangue nos olhos para ganhar."

O Brasil é o país do futebol independentemente do gênero. É a modalidade, não é o futebol masculino Rata

O que mais Rata disse:

Primeira vez na Copa do Mundo

"Fico feliz que a Visa me convidou, para mim foi a realização de um sonho. Mesmo que não eu esteja dentro de campo, estou indo para a minha primeira Copa. A vontade que eu estou de trazer essa taça é como se eu estivesse lá, no lugar da Marta, no lugar da Debinha. Mas também é um sonho ver como essas meninas estão começando a ser tratadas agora."

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Foi expulsa de casa por jogar futebol

"Hoje, eu consigo falar dessa situação, de tudo que passei na minha vida. Hoje, eu vejo como um aprendizado e uma lição. (...) Todas as vezes que jogava futebol, eu apanhava do meu pai. As pessoas falam que é exagero, mas não é. Todas as vezes que eu jogava com os garotos, meu pai só assobiava e eu tinha que subir para apanhar, e eu apanhava de chicote."

"Teve um determinado dia que minha irmã tinha me visto toda suja após ter acabado de jogar, aí ela falou que era uma pouca vergonha e que aquilo era muito feio. Meu pai me chamou, eu apanhei muito, e ele falou: 'Isso não pode continuar. Eu já estou cansado, falo, falo, e não adianta, não me obedece. E eu não quero mulher 'homem' na minha família. Então, pode sair de casa porque eu não quero mais você aqui'. Eu peguei uma bola que tinha e saí."

"Peguei carona e fui para São Paulo para morar com a minha tia. Ela morava na Mooca, só que o caminhoneiro não foi para a Mooca. Ele foi para Santos, para a praia, e foi onde ele me deixou. Fiquei ali na areia um bom tempo. O pouco dinheiro que eu tinha levado acabou, e eu ficava ali brincando de bola e comendo o pão quando o rapaz da padaria me dava. Às vezes, não tinha nada para comer."

"Até que um dia eu conheci uma mulher, e ela me levou para a casa dela. Eu fiquei por um tempo lá. Graças a Deus ela entrou na minha vida. Depois de um tempo, eu senti falta da minha família. Ela me levou para a casa da minha tia, que avisou meus pais. Eu não sabia nem que eles estavam preocupados comigo. Eu achava que ele tinha me colocado na rua e que nunca mais iria queria saber de mim."

Pazes com o pai

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"O Eurico Lira, que era treinador do Esporte Clube Radar, ele fez uma peneira para representar o Brasil fora do país -- o futebol feminino ainda era proibido aqui. E eu precisava que meu pai assinasse uma autorização, porque eu era menor de idade. Fui em casa e falei: 'É tudo o que eu mais quero, é a minha oportunidade de jogar futebol'. Era a oportunidade de eu ganhar dinheiro e de até ajudar a minha família."

"Quando cheguei na porta, fiquei escondida atrás do Eurico. Meu pai abriu a porta, só que, para a minha surpresa, em vez de ele me bater, ele me abraçou. Ele me abraçou muito naquele momento e, desse dia em diante, ele virou meu melhor amigo, me apoiando em tudo o que eu fazia."

Um 'novo' pai

"Ele começou a seguir os times, inclusive, ia para a casa das meninas para pedir aos pais delas para as deixarem jogar futebol. Meu pai também foi pedir para os pais deixarem as meninas viajarem."

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"Isso marcou muito a minha vida, porque eu comecei com isso [machismo] dentro da minha família, dentro de casa. Meu pai era militar, tinha sido bombeiro, então ele era muito radical. Mas, o mais importante que aconteceu disso tudo, é que foi uma lição para mim essa superação que tive, porque não foi fácil. Eu já tive um momento de desejar a morte do meu pai. Deus me perdoe. E depois eu descobri o quanto eu amava o meu pai e que isso tudo que aconteceu foi por conta da criação que ele teve. Eu achei que foi tão maravilhosa essa virada, essa mudança da cabeça dele."

Reconciliação com a irmã

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"Nós [Rata e a irmã] tivemos a oportunidade de sentar e conversar [antes dela morrer]. Ela pôde se desculpar e eu pude mostrar para ela que eu não tinha mais raiva, que eu a amava. Por anos, eu vivi com muita mágoa dela. A gente até se falava, mas eu não conseguia tirar aquilo de dentro de mim porque sentir frio dói, sentir fome dói muito e eu fui colocada na rua porque gostava de jogar futebol. Para mim, era muito ruim."

Mulher no futebol

"Por que a mulher não pode jogar futebol? Por que ainda tem piadinha? Você vê que tem ainda alguns palhaços, alguns idiotas — e me desculpa falar assim —, jogando piadinhas: 'Ah, não vou assistir ao jogo das mulheres'. Pô, cara, guarda pra você. Infelizmente, o problema é dele e é ele quem está perdendo, sabe? (...) Eles têm que respeitar isso, parece que eles ficam esperneando para tentar aceitar esse poder da mulher, sabe? Porque a mulher é fod*."

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Imagem: Divulgação

Estádios lotados

"Olha, eu tive a oportunidade de jogar pelo Radar e representar o Brasil, e em todos os jogos que fizemos em outros países, os estádios estavam cheios, mesmo naquela época. Nós fomos para o Chile, o estádio estava lotado. Então, eu acho que aqui no Brasil ainda tem esse preconceito, essa diferença. Infelizmente, aqui não é assim, não reconhecem ainda, mas lá fora as meninas já têm isso há bastante tempo. O que tá faltando é esse apoio."

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Falta de apoio às atletas femininas

"As meninas que foram pioneiras comigo, e maioria delas tem escolinha, trabalha com futebol, dando do próprio sangue, do próprio suor, não tem um apoio. Porque existe essa política machista, e ainda falta um pouco dessas grandes marcas despertarem mais para isso, porque o lance agora é a gente apoiar o futebol feminino, apoiar o esporte, como a Rebeca, que representou muito bem a gente lá fora. Tem várias outras atletas por aí, de outras modalidades, que precisam de apoio."

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