Quilombola campeão de Série C histórica leva título a comunidade no Pará
Guilherme Padin
Colaboração para o UOL, em São Paulo
03/11/2023 04h00
A pouco mais de 80 quilômetros de Belém (PA), o quilombo Pitimandeua, no território do município de Inhangapi, abriga cerca de 230 de 1,3 milhão de quilombolas no Brasil. Ali nasceu Alison Felipe Natividade, zagueiro do Amazonas, o campeão de uma histórica Série C. Lá, também, é para onde o rapaz anseia voltar e comemorar o feito com os pais, amigos e parentes.
A conquista após uma vitória fora de casa na final contra o Brusque representou o primeiro título nacional do futebol amazonense, e foi comemorada em todo o estado, para além do clube fundado em 2019. Além da taça inédita, a campanha leva uma equipe dali de volta à Série B após 17 anos.
"Foi o título mais importante da minha carreira, não consigo nem explicar a importância. É gigantesco pelo Amazonas nunca ter conquistado um título brasileiro. Dá para sentir nos olhos dos amazonenses que são muito gratos a nós, atletas do Amazonas. Tô muito feliz em fazer parte disso", relatou o jovem defensor ao UOL.
Findada a temporada para o Tigre, o defensor só pensa agora em celebrar o título entre os familiares e amigos, no quilombo onde se orgulha de ter nascido e crescido.
Não tenho vergonha de falar que eu sou de lá, porque a vila de Pitimandeua é onde meus ancestrais moraram e de lá eu saí. Poder representá-los aqui no Amazonas e para o Brasil é muito gratificante. Me sinto muito feliz. Alison Felipe.
O quilombo de Alison
No quilombo Menino Jesus do Pitimandeua vivem cerca de 55 famílias, como a de Alison, que produzem açaí, farinha, banana e cacau para subsistência e também para comercializar os produtos na região. A comunidade é uma agrovila muito pequena, descreve o zagueiro, "onde todo mundo é família". E é por essa razão que ele sabe que as comemorações o esperam em casa:
"Muitas pessoas torcem por mim lá. Visitá-los agora vai ser uma grande alegria. Estou muito feliz por sair de uma comunidade tão pequena e hoje representar eles no Brasil. Minha família toda é de lá. Estão muito felizes e já me falaram que vai ter uma grande festa [pra mim]. Agora é aproveitar com eles"
Alison conta que o sonho que realiza hoje como profissional do futebol é o mesmo de muitos amigos de sua comunidade. Sonhos que, infelizmente eles não puderam realizar. Mas pensar nos antigos parceiros também lhe serve de combustível: "São pessoas do bem, pessoas trabalhadoras de uma comunidade incrível."
O título da Série C conquistado pelo defensor, aliás, não é o único motivo de orgulho para o quilombo do nordeste paraense em 2023: em março, o governo do estado entregou o título de reconhecimento de domínio coletivo para a comunidade. "É significativo esse reconhecimento. Sinal que somos importantes para o governo. O documento das terras é um direito nosso, com certeza vai ajudar muito a comunidade", afirma Alison.
Mais de 1 milhão de quilombolas no Brasil, aponta Censo
Recentemente, o IBGE publicou o Censo 2022, com dados sobre a população quilombola no Brasil pela primeira vez em 150 anos de pesquisa. São 1.327.802 de pessoas identificadas como quilombolas, segundo o levantamento. Na região Nordeste se concentra a maioria (70,3%) dos quilombolas brasileiros, seguida pelo Sudeste (14,4%), Norte (9,8%), Centro-Oeste (3,2%) e Sul (2,2%).
A luta continua. Acredito que esses números se estendem, vão além. Foi difícil fazer a pesquisa porque muita gente não sabe da importância desses números, mas isso pode melhorar nossa vida, porque precisamos que políticas públicas sejam criadas para atender às nossas necessidades. Gisele dos Santos, recenseadora quilombola, durante a divulgação da pesquisa
Porém, como destaca o Censo, somente 4% dessa população (57.442 pessoas) vivem em territórios demarcados. A demarcação dos quilombos, processo demorado para as comunidades, visa a preservação desses espaços e das características e cultura das populações que os habitam, bem como de áreas de proteção ambiental.
Segundo o artigo 68 do ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), da Constituição de 1988, "aos remanescentes das Comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos".
O que foram e o que são hoje os quilombos: durante o período escravagista no Brasil (dos séculos 16 ao 19), os quilombos eram as comunidades criadas por africanos e seus descendentes para fugir da escravização e viver em liberdade, se organizar e resgatar suas tradições e cultura. Saiba mais aqui.
Define a Conaq as comunidades quilombolas remanescentes na atualidade como "grupos étnico raciais que tenham também uma trajetória histórica própria, dotado de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida".
Nesses espaços se mantêm vivas e protegidas as tradições culturais e tradições das populações afrodescendentes no Brasil.
Trajetória do zagueiro
Profissional desde 2018, o zagueiro Alison passou por Castanhal, Galvez, União Luziense, Fast Clube, Marília e Amazonas, onde está desde o ano passado. Jamais pensou em outra forma de ganhar a vida senão como jogador. "Sempre quis jogar bola, atuo desde os 11 anos", conta.
Não conseguiu, quando mais jovem, despertar o interesse dos dois gigantes de seu estado, o Paysandu e o Remo. Foi no Amazonas que encontrou pela primeira a continuidade de um trabalho — dois anos no mesmo time — e a projeção nacional, além de se tornar o segundo jogador que mais vezes vestiu a camisa do Tigre.
Com 19 jogos e um gol em 2023, ele espera continuar no time de Manaus para a disputa de uma histórica Série B — para o clube e o estado:
"É o clube em que eu ganhei títulos, que me abriu as portas e deu a oportunidade de mostrar meu trabalho. Tenho muito carinho pelo Amazonas, isso é muito importante para mim. Se Deus quiser, vou para a terceira temporada para conquistar grandes coisas".
Fatos sobre o título do Amazonas
O primeiro título nacional do estado do Amazonas não foi o único fato interessante da Série C vencida pelo Tigre:
- Ascensão meteórica: fundado em 2019, o clube vem subindo de divisão desde então. Em 2023, faturou o Campeonato Amazonense e a Série C, ambos pela primeira vez.
- Medalhões da elite: o Amazonas conta com nomes experientes e conhecidos do futebol nacional, como o atacante Sassá (ex-Cruzeiro e Botafogo), o lateral Patric (ex-Atlético-MG) e o zagueiro Jackson (ex-Palmeiras e Inter).
- Matador: se engana quem pensa que Sassá está lá apenas pelo nome. Foi dele a artilharia da Série C de 2023, com impressionantes 17 gols em 21 jogos. O último deles marcou a vitória de virada do título sobre o Brusque, por 2 a 1.