Panamenho dribla criminalidade, racismo e perda da mãe por sonho no Brasil
Jamir Kadir White Quintero*
Colaboração para o UOL, em São Paulo (SP)
20/11/2023 04h00
Eu não estava em casa quando a notícia chegou. Levou uns dias até me contarem, até eu entender o que tinha acontecido. Enquanto eu me dedicava pelo meu sonho, minha mãe partiu.
Eu tinha 17 anos na época. Por quatro anos, eu acordei cedo, 5h da manhã, peguei dois metrôs até o projeto Fortaleza, que me acolheu quando eu tinha só 12 anos. Era muito longe da minha casa, mas eu era o primeiro a chegar e o último a ir embora. Sabe, eu sou da quebrada do Panamá. No meu bairro, digamos que não existem muitas oportunidades...
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Muitos dos meus amigos de infância foram para o crime. Alguns deles estão presos, outros, mortos. Eu vi no futebol uma escapatória. Eu parei de estudar aos 14 porque não conseguia conciliar e sabia que para poder dar uma condição melhor para a minha família, o futebol era minha chance.
Naquele dia, eu cheguei em casa e vi minhas irmãs chorando. Eu sabia que tinha alguma coisa errada. Ainda levou dois dias para que minhas irmãs me contassem a verdade: minha mãe tinha morrido.
Sabe, meu pai nos deixou quando eu tinha dez anos. Eu saí de casa e ele estava lá, quando voltei, não estava mais. Eu era pequeno, nunca perguntei o que tinha acontecido, mas entendi que eles se separaram. Então, sempre fomos eu, minha mãe e minhas irmãs.
Foi minha mãe que me deu a primeira bola, me incentivou a jogar mesmo quando eu quebrava tudo dentro de casa (risos). Ela me mandava ir jogar na rua e ficava lá assistindo. Foi o único jogo meu que ela pôde ver...
Foi ela quem me levou até o projeto para me inscrever quando todos começaram a falar para ela que eu tinha potencial. Eu era muito competitivo. Chorava quando perdia, não aceitava.
Quase desisti de jogar
Eu me destaquei no projeto e fui para um time do Panamá chamado Tauro. Fiz toda minha base lá e subi para o profissional. Meu empresário sempre me falava que eu tinha perfil para jogar no Brasil e que ele me traria pra cá quando eu completasse 18 anos. Só que isso quase não aconteceu porque eu queria desistir depois da morte da minha mãe.
Quando minhas irmãs me contaram, eu me tranquei no quarto e falei que queria desistir. Liguei para o professor e disse o que tinha acontecido. Eles tentaram me convencer a continuar. Disseram que eu precisava da minha família neste momento e que eles também eram minha família. Minha irmã falou que não iria me deixar desistir, que era meu sonho.
Fiquei uma semana sem treinar. Estava muito abalado. Mãe é tudo. Minhas irmãs pararam de falar comigo, me deixavam falando sozinho em casa. Eu vi elas chorando porque eu estava desistindo do meu sonho e isso mexeu comigo. A situação em casa não estava boa e meu salário poderia ajudar. E aí eu voltei. E eu via minha irmã no meu time, sabe? O mesmo espírito e acolhimento que eu tinha em casa.
Minha mãe estava nos Estados Unidos quando aconteceu. Ela era manicure e tinha ido trabalhar lá. Só que ela tinha asma e a diferença de clima do Panamá, o calor de 43 graus, para o frio dos Estados Unidos foi brutal. Minha irmã maior, a Yari, resumiu a história. Acho que o clima afetou ela, pelo que eu entendi. Um dia estava bem, outro dia não...
A chegada ao Brasil
Depois que eu voltei a jogar, levou mais um ano para que surgisse a oportunidade de vir ao Brasil. Eu completei 18 anos e vim para treinar no Grêmio. Já estava tudo certo, eu já estava aprovado previamente. Fiquei sete meses treinando lá, mas não pude ficar por causa da documentação. Eu não entendo bem, mas era um problema com o visto.
Foi difícil no começo por dois motivos: o clima frio e o idioma. No Panamá, a língua é o espanhol, que tem suas semelhanças com o português, mas era difícil entender o que o técnico pedia. Dizem que o português é uma das línguas mais difíceis do mundo. Eu ouvi muita música, vi muito filme, tentava conversar bastante para poder entender. Levei cerca de seis meses para pegar.
Acabei indo para o Mato Grosso para resolver a documentação, joguei por alguns meses no Rondonópolis para manter a forma até que surgiu a oportunidade na Portuguesa. No primeiro ano, ainda não pude jogar direito porque o visto demorou a chegar, mas neste ano estou conseguindo mostrar meu futebol.
Fui alvo de racismo
Fui artilheiro da Portuguesa no estadual, mas o campeonato também acabou me marcando de outra forma, de uma maneira bastante traumática. Foi no jogo contra o Corinthians, quando eu acabei perdendo um pênalti que poderia nos dar uma classificação antecipada. Nesse jogo, eu fui alvo de racismo pela primeira vez na minha vida.
No momento, eu estava de cabeça quente, eu só escutava os barulhos, as vozes, os xingamentos. Só quando eu cheguei em casa, que eu deitei na cama e o corpo esfriou eu percebi o que tinha acontecido. Aí eu pensei nas coisas. Também recebi mensagens, ligações, ameaças, xingamentos racistas pelas redes sociais.
Aquilo me pegou. Além de tudo isso, ainda errei o pênalti. A gente podia classificar e eu errei. Coloquei na minha cabeça que tinha estragado o projeto do professor. Naquela noite, deitei e comecei a escrever no bloco de notas. Ali desabafei e publiquei nas minhas redes.
Eu vim para o Brasil para jogar futebol, buscar um espaço. O racismo teria que ser uma luta diária. Não sou só eu, muita gente já sofreu racismo e não tem respaldo para poder falar.
Não consigo entender por que isso acontece. As comunidades que sempre estiveram comigo em minha história continuarão sendo carregadas por mim, podem acreditar. Sou um homem negro do Panamá.
Minhas irmãs ainda estão lá e toda vez que a gente se fala é uma alegria inexplicável. Elas falam para mim que se não tivesse essa cobrança delas, eu não estaria aqui, e é verdade. Não tenho palavras para explicar esse sentimento que eu tenho por elas.
Eu não desisti
Acho que eu só tenho um arrependimento nisso tudo. Eu nunca falei para minha mãe que eu sonhava em jogar no Brasil. Eu sempre fui mais contido, mais fechado. Não falava muito sobre futebol com ela porque ela não entendia muito. Hoje, é triste não ter falado pra ela. Mas tenho certeza que, lá em cima, ela deve estar orgulhosa de mim.
Ela sempre me disse para não desistir do meu sonho.
Hoje, eu só queria poder dar um abraço nela e dizer: 'Mãe, eu não desisti'.
Quem é Jamir Kadir White Quintero
Kadir tem 20 anos, é panamenho e joga de atacante no sub-20 da Portuguesa. Ele começou a carreira no Tauro FC, do Panamá, e veio para o Brasil após completar 18 anos para um período de treinos no Grêmio. Por problemas com documentação, acabou não ficando no clube gaúcho, passou pelo Rondonópolis e está há dois anos na Portuguesa.
*em relato ao repórter Eder Traskini