A figurinha de um chimpanzé apareceu na tela poucos minutos após eu entrar em um grupo de WhatsApp de torcedores do River Plate, um dos maiores clubes da Argentina, e me apresentar como jornalista brasileiro.
Eu queria entrevistar um argentino para falar da escalada da violência entre as nossas torcidas e as deles.
"Olha o Vini", escreveu o autor da mensagem, em referência a Vini Jr., atacante brasileiro do Real Madrid que tem se erguido contra o racismo.
A imagem de um macaco segurando um revólver foi enviada em seguida. "Brasileiro armado", explicou um torcedor. Perguntei por que eles chamavam os brasileiros de macacos.
"Por sua aparência e comportamentos parecidos aos desses primatas", um dos argentinos rebateu. A resposta ganhou um coraçãozinho.
Dias depois, a piada racista no meu WhatsApp se tornou ainda mais gráfica. Um administrador mudou a imagem de exibição do grupo para uma montagem.
Quando alguém escreve no grupo dos torcedores do River Plate, vejo uma homenagem às avessas. Um ser estranho pula na minha tela: a minha própria foto com focinhos e orelhas de chimpanzé.
Eu sou branco, e esse tipo de ofensa não me afeta da mesma forma que provavelmente afetaria uma pessoa negra. Mas essa não foi uma provocação isolada.
Apesar de não ser um comportamento novo, a associação entre brasileiros de qualquer cor de pele com a figura de primatas tem se tornado cada vez mais frequente na Argentina e em outros países da América do Sul.
As câmeras de TV e de celulares nos permitem ver em looping torcedores gargalhando enquanto imitam macacos ou atiram bananas em rivais brasileiros nos jogos internacionais.
As redes sociais estão inundadas de racismo travestido de piada. Quando uma vítima aponta a violência simbólica do ato, o ofensor costuma jogar a carta do humor: seria só uma piada, não deveria ser levada a sério.
A galhofa entra na equação como uma tentativa de atenuar o gesto racista, como se um tiro disparado por um homem vestido de palhaço perdesse a capacidade de produzir um assassinato.
A legislação brasileira mudou em 2023 e endureceu a pena de injúria racial, agora considerada um crime tão grave quanto o de racismo: inafiançável e imprescritível.
Estrangeiros presos por imitar macacos nos estádios brasileiros têm tido mais dificuldade de sair da prisão.
Quando o preparador físico uruguaio Sebastián Vargas foi detido por fazer o gesto para a torcida do Corinthians em São Paulo, chamou atenção o argumento usado pelo advogado dele.
Na visão da defesa, o racismo é um conceito complexo, e o ato de imitar macaco é pueril, simples e vulgar. Logo, imitar macaco não poderia ser considerado racismo.
Vargas ficou dez dias preso, foi solto e depois condenado a pagar dois salários mínimos a uma entidade assistencial. Ele está recorrendo da sentença.
A pena parece leve. Em outro caso, foi ainda mais. A argentina Belén Mateucci foi presa no Rio após ofender uma vendedora no Maracanã durante um jogo pelas Eliminatórias.
Ao juiz do processo ela admitiu ter usado as palavras "pedaço de macaco" para se referir à brasileira. Saiu da cadeia após um acordo no qual prometeu comprar 25 litros de óleo de motor à polícia carioca.
Todas as pessoas negras que moram em Buenos Aires com quem conversei para uma reportagem do UOL já ouviram alguma ofensa racial, o que não é exatamente uma surpresa, dadas as estruturas racistas sobre as quais todos os países da América Latina foram fundados.
Da Patagônia a Tijuana, ainda vivemos sobre as raízes da escravidão que ceifou a vida de milhões de pessoas negras e indígenas e envenena a de seus descendentes.
O Brasil vem tentando combater o racismo persistente com legislação mais rígida, embora a lei ainda não tenha pegado na prática.
Na Argentina, por outro lado, esse debate parece incipiente.
Dois torcedores bem informados, esclarecidos, sensíveis a várias questões sociais, me disseram que não consideram a Argentina um país racista. Na visão deles, os brasileiros estariam tentando espelhar nos vizinhos um problema que é apenas do Brasil.
"Nós nunca te chamamos de macaco", disse um argentino no grupo do River quando eu perguntei o motivo de associarem os brasileiros a primatas. "Você está se vitimizando."
O movimento negro argentino fez uma marcha inédita pelas ruas de Buenos Aires no ano passado e vem tentando mudar a conscientização da opinião pública sobre o tema. É isso o que vêm fazendo as pessoas negras brasileiras há muito mais tempo.
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