Se hoje é raro ver uma mulher no comando de algum clube no futebol masculino, imagine em 1971. A resposta é simples: não havia. Uma diretoria inteira de mulheres então? Nem pensar. Mas aconteceu.
Encantado é uma pequena cidade de 23 mil habitantes no interior do Rio Grande do Sul, a 144 quilômetros da capital Porto Alegre. Foi lá, há 53 anos, que a primeira mulher assumiu a presidência de um clube de futebol, no Brasil e no mundo. Jurema Maria Bagatini Ramos, aos 24 anos, aceitou o convite do amigo Vitor Berticelli para uma missão: reerguer o time da cidade, o Esporte Clube Encantado.
"Ninguém queria assumir a direção do clube (...). Já havia desistido, quando entraram no meu bar, aqui em Encantado, quatro jovens já conhecidas minhas. Estava acostumado a vê-las no estádio, em dias de jogos. Sempre torcendo, incentivando. Falei com elas, toparam", contou Berticelli, ao jornal O Globo, na edição de 20 de novembro de 1971.
Com problemas financeiros, desinteresse da comunidade e o afastamento da 1?ª divisão da Federação Gaúcha de Futebol, o Encantado estava com as atividades suspensas. Foi neste cenário que Jurema assumiu o comando do Leão do Vale. Berticelli ficou com o cargo de diretor de futebol.
E muita gente não se convenceu com a ideia de uma mulher presidir um clube de futebol. "Todo mundo meio que duvidava que ela ia conseguir fazer uma gestão profissional do clube e ela conseguiu fazer", contou Rodrigo Bagatini Ramos, filho de Jurema, ao UOL.
"Foi um dos melhores anos do Esporte Clube Encantado tanto financeiramente quanto no futebol", completou. A própria Jurema, inclusive, reconheceu a promoção da cidade gaúcha em âmbito nacional.
"Se nada mais houvesse feito pelo Esporte Clube Encantado, a divulgação que promovi da cidade já dava-me 'sensação de dever cumprido'. Jamais alguém divulgou tanto Encantado", escreveu a primeira presidente mulher de um clube de futebol, em textos compartilhados pelo filho com a reportagem.
Jurema morreu em 4 de março de 2010, aos 62 anos, em Porto Alegre, vítima de um câncer de mama que se espalhou pelo corpo. Ela foi sepultada em Novo Hamburgo, onde morava. Dos quatro irmãos que tinha, dois também tinham relações com o futebol. Vilson foi goleiro e árbitro de futebol; Cezar também foi goleiro e campeão brasileiro pelo Internacional em 1979.
Até padre da cidade duvidou
Jornais do país inteiro noticiaram a novidade. A primeira reportagem publicada a nível nacional, na Folha de Campo Mourão, em setembro de 1971, destacava uma diretoria "constituída de senhoritas, segundo dizem, bonitas às pampas".
E a ideia de que futebol não era coisa de mulher estava escancarada no texto. "O Presidente de Honra, o que salva a Pátria, é o Sr. Armando Luiz Reali. Aguente a mão, Sr. Reali. Não deixe a mulher botar vocês para trás".
A beleza era sempre exaltada nas reportagens, como lembra Rodrigo. "A primeira coisa que eles diziam quando citavam a diretoria feminina era de que era uma diretoria de bonitas mulheres", disse. "Eles exaltavam primeiro a beleza das mulheres que estavam à frente do Esporte Clube Encantado".
O olhar machista, inclusive, não aparecia apenas nos jornais. Até o padre da cidade, Ênio Batton, resolveu reprimir a presidente do Encantado.
"Eu acho que o esporte deveria ficar nas mãos dos homens. Imaginem se tirassem o (Flávio) Obino do Grêmio e botassem uma mulher. Ia ser uma salada. As mulheres não têm tino administrativo", disse na Rádio Encantado.
"Se as mulheres quiserem tentar, devemos dar todo o apoio. Mas eu pergunto. Se os homens não conseguiram, elas conseguirão?", questionou.
Contrariando o padre, o clube que estava falido chegou à primeira divisão do futebol gaúcho, após três anos de gestão de Jurema. "Ela tinha muito tino comercial e tino administrativo, então ela sempre foi uma pessoa muito organizada e ela levou isso para dentro do clube e conseguiu reerguer o Esporte Clube Encantado nessa época", disse o filho de Jurema.
Na época, o presidente do Conselho Nacional de Desportos, Jerônimo Bastos, se incomodou tanto com a ideia de uma diretoria formada por mulheres no Encantado que "determinou medidas para reprimir com energia o futebol feminino", conforme informado pelo jornal Diário de Notícias, em novembro de 1971.
O futebol para mulheres foi proibido no Brasil entre 1941 e 1979, com a regulamentação acontecendo apenas em 1983. Apesar dos esforços de Jerônimo Bastos ao saber que uma mulher era presidente de um clube de futebol, as ações de Jurema e companhia nada tinham a ver com o futebol feminino.
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