A tragédia do Ninho do Urubu completou cinco anos no mês passado. O incêndio no alojamento das categorias de base do Flamengo deixou 10 mortos - todos jogadores entre 14 e 16 anos, que dormiam em containers dentro do Ninho do Urubu, como é conhecido o centro de treinamento do clube carioca.
O que aconteceu:
A estrutura tinha apenas uma porta de saída e seis quartos com janelas fechadas por grades, o que dificultou ainda mais a saída dos jovens, que enfrentaram um fogo que começou após um problema no ar condicionado de um dos quartos e se alastrou em apenas um minuto e 28 segundos.
A estrutura do container tinha materiais inapropriados, como apurado depois. Havia fumaça preta e muito calor no local. Os detalhes fazem parte do livro "Longe do Ninho" (Editora Intrínseca), da autora Daniela Arbex, lançado essa semana.
Para lembrar a trajetória e a morte dos meninos, a jornalista ouviu dezenas de familiares, sobreviventes e pessoas envolvidas na investigação da tragédia - ninguém foi condenado até hoje.
ATENÇÃO: O texto a seguir contém detalhes sensíveis
Corpos estavam quentes 7 horas depois do incêndio
Gabriela Graça, diretora do IML Afrânio Peixoto, foi quem comandou a identificação dos dez meninos - feita por digital, arcada dentária ou análise do fêmur, no caso de dois dos jogadores.
Os profissionais não conseguiram identificar Samuel Rosa e Jorge Eduardo, ambos de 15 anos, pelos métodos tradicionais. Para evitar o exame de DNA, que demoraria até 20 dias para ficar pronto, a médica usou a diferença de altura dos jogadores.
Não acredito! O incêndio foi de madrugada e eles ainda estão quentes, observou Gabriela ao tocar nos corpos recém-chegados.
Com porta do quarto emperrada, jovens ficaram presos
Jorge Eduardo, uma das vítimas do incêndio, foi o primeiro a ser acordado pelas chamas no quarto 3.
Samuel Rosa e Pablo Ruan despertaram com os gritos do colega e tentaram abrir a porta de correr, mas ela estava emperrada - algo que já tinha acontecido antes.
Com a fumaça tóxica que invadia o quarto, Jorge aconselhou os amigos a busca ar limpo na janela, mas logo o calor se tornou insuportável.
Foi então que Pablo conseguiu o que parecia impossível: passar o corpo de 1,80 m e 73 kg pelo vão de 12 cm entre as grades.
Ele chamou por Samuel e Jorge, mas já não escutou mais nada. Os corpos dos amigos foram encontrados "enganchados". Dez centímetros mais baixo que o colega, Samuel teria tentado carregá-lo nas costas.
Pelo menos dois atletas não acordaram
Christian e Athila, dois dos jovens mortos no incêndio, não teriam esboçado reação alguma.
Goleiro promessa do Flamengo, Christian Esmério não chegou a abrir os olhos ou se mexer enquanto Samuel, Jorge e Pablo gritavam ao seu lado.
Já no quarto 2, o atacante Athila foi o único que não sobreviveu. Cauan, um de seus companheiros de quarto, decidiu chutar a janela gradeada no desespero para sair do dormitório - tão quente que tinha derretido a borracha de seus chinelos.
A alternativa lhe rendeu um corte na coxa, mas abriu caminho para que ele, Jhonata e Francisco Dyogo deixassem o quarto.
Antes de sair, Cauan tentou acordar Athila mais uma vez. Ele chacoalhou o jovem, mas percebeu que não tinha mais nada a fazer.
O rapaz ainda tentou buscar ajuda no setor dos profissionais dentro do Centro de Treinamento, alertando que "achava que muita gente ia morrer", mas ouviu do funcionário de plantão que ele não poderia se ausentar do posto.
Recém-chegado no clube morreu a menos de meio metro da porta
Gedinho estava a menos de meio metro da porta do alojamento quando desmaiou. Ele tinha chegado ao Rio há apenas uma semana.
O jovem de 14 anos estava no quarto 4. Os cinco ocupantes do dormitório morreram na tragédia.
Apesar de ser o mais distante do dormitório 6, onde o fogo começou, o quarto era ao lado do muro de alvenaria de um depósito, vizinho ao container.
Sem ter para onde escoar, o calor chegou ao ápice naquela área do alojamento: 600 ºC.
Mesmo com o calor e com a fumaça, os jovens conseguiram sair do quarto, mas foram caindo um a um, perdendo a luta contra o monóxido de carbono - causa da morte de metade dos 10 adolescentes.
O goleiro Bernardo correu para o lado oposto ao da saída e acabou caindo perto do banheiro.
Cria de Volta Redonda, Arthur chegou ao corredor, mas desmaiou entre os quartos 2 e 3. Ele faria 15 anos no dia 9 de fevereiro.
O goleador Vitor Isaías e o zagueiro Pablo Henrique - que seguia os passos do primo Werley, que era atleta profissional no Vasco - desfaleceram juntos, poucos passos depois.
Gedinho foi quem chegou mais longe, mas perdeu as forças a menos de meio metro da saída.
Vitor e Bernardo tinham recebido convites para dormir na casa de amigos na madrugada da tragédia, mas decidiram fazer companhia ao novato.
Fogo separou sobrevivente de melhor amigo
Rykelmo foi mais um que recebeu um convite para dormir fora do alojamento naquela noite.
Seu colega e melhor amigo Samuel Barbosa, que tinha familiares no Rio, convidou o paulista de Limeira para ir até sua casa. Mas o jovem negou a oferta.
Em solidariedade, Samuel decidiu ficar com o parceiro no quarto 5 do container — mas foi acordado pelo calor durante a madrugada.
O jovem encontrou o celular, acendeu a lanterna e viu o espaço tomado pela fumaça. Ele acordou Rykelmo, a quem chamava pelo apelido "Bolívia", e saiu correndo até a saída, que não ficava tão distante.
Rykelmo, que atuava como volante, chegou a se levantar, mas o corredor já estava tomado pelo fogo.
Samuel continuava a ouvir seus pedidos de socorro e tentou ajudá-lo, pedindo para o amigo seguir sua voz, mas teve que sair de perto do alojamento depois de uma explosão.
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