Endrick foi ameaçado após rumor sobre ida à Europa: 'Vai viver um inferno'
Endrick e o pai chegavam em casa quando o carro em que estavam foi parado por um grupo de torcedores palmeirenses. Os jovens afoitos já tinham decorado a placa e o modelo do veículo, assim como os horários do jogador, e se agruparam em frente ao prédio em que vive a família, numa rua sem saída em Perdizes, São Paulo.
A abordagem acontecera quando surgiram os primeiros rumores de que Endrick trocaria o Palmeiras pelo Real Madrid antes de completar 18 anos. Os torcedores, que viram o adolescente deslanchar na Copa São Paulo de Futebol Júnior de 2022, se enfezaram com a possibilidade de perder um ídolo em formação.
Quando o pai de Endrick abaixou o vidro do carro, um dos homens que o cercava foi incisivo: "Enquanto o Endrick estiver no Palmeiras, será um mar de rosas. Mas a partir do momento em que nós soubermos que ele vai sair, faremos da vida dele um inferno". Pai e filho se assustaram. Depois da ameaça, a empresa que cuida de Endrick decidiu que, a partir de então, ele só andaria em carros blindados.
Ele tinha quinze anos quando ouviu a ameaça. Voltou a ouvi-la outras vezes. Hoje, prestes a completar 18 anos, se liberta dela: fará seu último jogo vestindo a camisa do Palmeiras e seguirá rumo ao Real Madrid.
De lá para cá
Dois anos se passaram como um furacão desde que Douglas, pai de Endrick, contou essa história ao UOL. De lá para cá, o filho fez 16 anos, assinou contrato profissional, estreou no time principal do Palmeiras, atuou em 81 jogos, marcou 21 gols, ganhou cinco títulos e foi "o cara" da arrancada histórica para o título do Brasileirão de 2023. Viu seu nome ecoar nos ouvidos de Abel, como birra da torcida, quando fez jogos ruins. Ele tinha 16, mas era cobrado como qualquer outro. A idade só virava pauta na hora de os torcedores exigirem ao treinador que deixassem Endrick na reserva.
Abel foi resistente. Ao mesmo tempo em que segurava seu troféu humano, o poupava quando achava necessário. O aconselhava sempre e cuidava para que tamanha pressão não subisse à cabeça — negativa ou positivamente. Endrick era uma joia a ser lapidada, e Abel sabia disso. Endrick precisava de cuidados.
O treinador português não foi o único a perceber isso. O técnico da escolinha "Gol de Placa" recebeu um Endrick ainda criança. Aceitou que ele treinasse com meninos mais velhos sob a condição de que não chorasse em entradas violentas. O ano era 2010.
O filho de Cíntia e Douglas tinha quatro anos; os meninos na categoria mais júnior da escolinha tinham entre seis e sete. Mas os pais foram insistentes e assumiram o risco. "Pais, se ele cair e chorar, a gente vai ter de tirá-lo da escola", teria dito Marília, uma das donas do complexo esportivo. "Agora, se ele não chorar e começar a se desenvolver bem, aí a gente deixa".
Endrick começou a jogar; ia para cima, perdia a bola, recuperava-a; perdia de novo, caía e levantava. Não tinha choro.
"Pode deixar o Endrick aqui. Não sei o que ele tem, mas ele é diferente de todos os meninos que já passaram por aqui", disse a dona da escola.
À medida que Endrick foi crescendo, as escolinhas foram ficando pequenas para ele; sempre que a pequenez ficava evidente, os pais buscavam uma escola com mais estrutura. A família não tinha grana: o pai era ajudante de eletricista; a mãe, faxineira. Juntos, sustentavam dois filhos e uma casinha pequena em Brasília. Mas Endrick seguia jogando bola.
Um menino diferente
Na escolinha em que treinava, já com oito anos, o menino fazia dois treinos: um deles, junto de garotos da mesma idade. Outro, com alunos mais velhos — com eles, Endrick, que é canhoto, podia driblar e fazer gol com ambas as pernas. Com os pequenos, havia uma regra: se ele driblasse com a perna esquerda, que é a perna boa, o árbitro marcava falta para o time adversário. Se Endrick fizesse gol com a canhota, o lance era invalidado, e o time adversário também ganhava uma falta a seu favor.
Aí, a gente já percebia que ele era diferente. Quando eu jogava bola com meus amigos, levava o Endrick comigo. Os caras apostavam nele: 'Dou cinco bolas para o Endrick e aposto que ele acerta três no travessão'. O pessoal apostava churrasco, refrigerante. Ele ganhava tudo."
Douglas Ramos, pai de Endrick.
Foi em 2016, entretanto, que o Palmeiras viu Endrick pela primeira vez. Ele tinha dez anos, jogava pelo BFA (um clube de Brasília), que tinha parceria com o São Paulo, e participou de um campeonato. Foi um estouro. O pai de um dos meninos que jogou o mesmo torneio filmou as partidas e subiu os vídeos no YouTube. Douglas selecionou as imagens e compilou os melhores momentos de Endrick em um só vídeo: havia gols, assistências e dribles. Publicou no YouTube, e chegou às mãos de João Paulo Sampaio, coordenador de base do Palmeiras.
Endrick e Douglas viajaram de Brasília a São Paulo naquele mesmo ano. O menino passou por uma avaliação no clube e foi aprovado. "Falei à minha esposa: em janeiro, você terá de ir embora para São Paulo", conta o pai ao UOL.
Fome, frio e choro
O combinado com o Palmeiras seria que Endrick só se mudaria se tanto a mãe como o pai pudessem ir junto. O clube aceitou, mas mãe e filho tiveram de viajar antes. Douglas só pôde se juntar a eles depois de quatro meses, quando conseguiu fazer um acordo com a empresa em que trabalhava.
Cíntia morou em uma casa com o filho e outros meninos, que, sem os pais, se mudaram para São Paulo pelo mesmo motivo. O clube oferecia às crianças as três principais refeições do dia. Cíntia, entretanto, tinha de bancar sua própria alimentação. O dinheiro que Douglas mandava tinha essa finalidade, mas se tornava pouco quando, à noitinha, as crianças reclamavam de fome. A mãe de Endrick, então, usava o dinheiro para comprar comida para toda a casa.
"Não iria comprar só para o meu filho e deixar os outros meninos com fome. Então, foi a primeira vez que passei fome. Eu. Não o Endrick. A ele, nunca deixei faltar nada. E ele nunca soube que eu passava por tudo isso. Não queria que soubesse, porque ele sempre se importou com a família. Muitas vezes, eu chorei no banheiro sozinha, saí de casa para que ele não me visse chorando."
A situação começou a melhorar quando Douglas finalmente se mudou para São Paulo. Com o dinheiro do seguro-desemprego, ele segurou as pontas por um tempo. Mas o custo de vida na capital paulista, ainda mais no bairro de Perdizes, perto do Palmeiras, é muito maior do que o pai estava habituado a ter em Brasília.
Sem sucesso na busca por empregos, Douglas começou a vender café em frente ao metrô Barra Funda, próximo à casa em que moravam. A esposa cuidava das comidas: fazia bolos, tortas e doces. O marido comprou um carrinho de mão, em que acoplou uma mesa de plástico. Às quatro da manhã, ele preparava o kit e saía de casa rumo ao metrô.
Para conquistar clientes, Douglas baixou o preço dos produtos. Ele fez um caminho de placas em formato de setas, coladas na parede de fora da estação do metrô. "Café da manhã, R$ 0,50", dizia uma. A alguns metros, a segunda placa continuava: "Bolo, R$ 1". E assim seguiam os avisos, que desaguavam no carrinho de Douglas.
"O bolo chegava quentinho, e as pessoas compravam porque o cheiro era forte e gostoso. Mas isso causou ciúme em outros vendedores, que começaram a me ameaçar. Às vezes, pegavam meus produtos, diziam que eu tinha de pagar uma taxa para vender ali. Começou a ficar perigoso, e desisti."
Tão logo, Douglas conseguiu emprego como faxineiro no Palmeiras. Por meses, pediu segredo sobre ser pai da principal joia da base. Não queria ser associado ao filho, nem tirar qualquer vantagem dele. O trabalho no clube durou dois anos e sete meses, e só acabou por recomendação do empresário de Endrick, que achava que poderia haver um conflito de interesses na hora de o jogador assinar o contrato profissional.
Jimi Hendrix e o "não" aos jogadores velhos
O nome Endrick tem como referência o guitarrista Jimi Hendrix, e foi impulsionado por Cíntia, que não queria de forma alguma a ideia de Douglas dar ao filho o nome de algum jogador de sua época. Ela queria algo original. Endrick, inicialmente, seria Endrick Henrique. Ficou só Endrick.
Aos 15 anos, ele não era muito chegado a festas. Hoje, a boleiragem já tomou conta, e o Endrick de quase 18 adora uma resenha. Aos 15, ele detestava matemática — "vai usar hipotenusa para quê?", questionava a mãe —, mas tentava conciliar escola e futebol. Os pais, que direcionaram a vida para o sonho do filho, sempre foram incisivos na hora da educação.
Já no Palmeiras, com dez anos, Endrick também fazia futsal, e foi com um colega do esporte que ele protagonizou uma das cenas mais desesperadoras para o clube: os dois brigaram, um bateu no outro, e quando Cíntia soube, deixou o filho de castigo. "Tinha de tirar dele o que ele mais gostava para o castigo valer a pena: o futebol", conta.
Ele jogaria, nos dias seguintes, a Copa Ouro sub-11. Mas a mãe não deixou. Até os coordenadores da base do clube entraram no circuito. Ligaram para Douglas, que ficou indignado. "Antes de ser jogador, ele é meu filho. E eu vou educá-lo. Está de castigo, não vai jogar". E não jogou.
Hoje, aos dezessete, quase completando 18, Endrick se despede do Palmeiras com um legado de ídolo que o clube, há tempos, buscava. Diferentemente do que ouviu de torcedores no começo deste relato, sobre ter uma vida infernal caso quisesse sair, vai receber dos palmeirenses a festa que um grande ídolo merece.
Dói, mas o torcedor sabe que é difícil segurar quem é grande. E Endrick, prestes a completar 18 anos, deu rosto à vontade do clube de ter um novo ídolo para chamar de seu.