Série B em dobro? Santos pode ter também rebaixamento do time feminino
Livia Camillo
Do UOL, em São Paulo
23/06/2024 04h00
Classificação e Jogos
Campeãs brasileiras em 2017, as Sereias da Vila amargam a pior temporada de sua história em 2024. Faltando três jogos para encerrar sua participação no Brasileiro Feminino, a equipe alvinegra está na zona de rebaixamento e tem poucas chances de se salvar do primeiro descenso. Um roteiro que se repete no clube, agora em outra categoria, em menos de um ano.
A atual situação contrasta com as promessas feitas pela nova gestão. Em março, o presidente Marcelo Teixeira anunciou uma "reformulação por títulos", contratou mais de 20 atletas e afirmou que caberia ao Santos "escrever uma nova história" após a saída do ex-técnico Kleiton Lima, acusado de assédio moral e sexual por jogadoras do antigo elenco.
Em pouco mais de três meses do discurso promissor, o cenário é de terra arrasada. Além de uma redução significativa de investimentos, a recontratação de Kleiton desencadeou a maior onda de protestos vista na história do futebol feminino brasileiro. O episódio abalou o vestiário das Sereias e criou um efeito dominó na gestão. Em um semestre, três comissões técnicas diferentes comandaram o time.
O UOL ouviu jogadoras, figuras ligadas ao clube e ex-funcionários para explicar a sequência de fatos que pode culminar no rebaixamento inédito das Sereias. Procurado, o Santos não se manifestou até a publicação desta reportagem.
Redução de orçamento
A queda do profissional masculino à Série B causou impactos financeiros em diversas áreas no clube. No futebol feminino não foi diferente. A modalidade teve uma redução de 12,76% no orçamento de 2023 para 2024.
Na proposta orçamentária de dezembro do ano passado, feita ainda pela gestão de Andres Rueda e aprovada pelo Conselho Fiscal, o caixa destinado à modalidade passou de R$ 10.174.523 para R$ 8.876.261 - uma diferença superior a R$ 1,2 milhão.
O departamento de base - tanto masculino quanto feminino - também sofreu com uma queda de 6% em recursos. Tais reduções foram necessárias para não comprometer o valor destinado ao masculino, que recebeu um incremento de R$ 8 milhões na folha.
O capital mais enxuto gerou dificuldades no planejamento. Por isso, logo após a eleição, Alessandro Rodrigues, gerente que administrou o futebol feminino do Santos entre 2018 e 2020, foi chamado para participar da transição de gestão.
O executivo montou um relatório com sugestões de próximos passos, deixando claro um alerta sobre a escassez de atletas no mercado e como lidar com o dinheiro diante das circunstâncias.
Não havia tempo para sugerir nada muito além daquilo que considerava obviedades. A manutenção das atletas sob contrato, a tentativa de reversão de algumas saídas e definições rápidas sobre o comando do departamento e da comissão técnica. Essas definições impactariam inclusive o processo decisório de muitas atletas, seja para ficar ou para vir jogar no Santos. Alertei também para o cenário de absoluta escassez de atletas, fruto de uma evolução que testemunhei e que de alguma forma fiz parte. Nada no esporte evoluiu tanto quanto o futebol feminino.
Alessandro Rodrigues, ex-gerente de futebol feminino do Santos, ao UOL
Planejamento mal executado
As semanas se passaram e, em meados de janeiro, o Santos anunciou Thaís Picarte como nova coordenadora do futebol feminino. Ao lado dela, Aline Xavi, no clube desde 2022, também foi mantida departamento. Porém, a montagem do plantel não foi definida por nenhuma das duas.
O UOL apurou que a reformulação de elenco anunciada em março, com 17 jogadoras contratadas a princípio, foi liderada por Modesto Roma Jr, ex-presidente do Santos. Ele exerceu um cargo extraoficial no departamento até o mês passado. Foi responsável por indicar e aprovar nomes, e até opinava nas escalações das partidas. Absolutamente tudo passava pelo crivo do cartola.
Não vou mentir. Os problemas na montagem desse elenco atual são visíveis e as dificuldades surpreendem um total de zero pessoas, ao menos aquelas que conhecem, atuam ou acompanham o futebol feminino.
Alessandro Rodrigues, ex-gerente de futebol feminino do Santos
O contexto causou desconforto em Cassio Richter, então diretor oficial do departamento, que chegou a pedir dispensa do cargo, em abril, por sentir que exercia uma atividade meramente "decorativa".
O Modesto é um consultor do departamento. Ele não tem um cargo, até porque está com a saúde abalada, mas tem uma vasta experiência (na modalidade) e sabe como conduzir. Na verdade, tudo a gente sempre pergunta para ele: 'O que você acha, chefe?'
Cassio Ritcher, ex-diretor de futebol feminino do Santos, em entrevista à Trivela
Crise interna e polêmicas
Diante dos mandos e desmandos de Modesto, algumas decisões geraram grandes desgastes. Tudo começou com a promoção de Bruno Silva, então auxiliar técnico, após a saída de Kleiton Lima. Bruno iniciou o ano no comando das Sereias, mas durou pouco no cargo.
À época, mesmo antes da demissão de Bruno, membros do Conselho Deliberativo já pediam o retorno de Kleiton, a despeito das denúncias de assédio moral e sexual contra o treinador, que foi recontratado no dia 9 de abril. O UOL apurou que a decisão foi aprovada por Modesto Roma.
O que a diretoria não esperava era o tamanho da repercussão diante do anúncio. Na 6ª rodada do Brasileirão Feminino, diversas equipes fizeram protestos em campo, e o caso repercutiu mundialmente, causando grande constrangimento à gestão. Resultado: o técnico foi desligado seis dias depois.
Em anonimato, a reportagem conversou com jogadoras que contaram nunca ter vivido nenhuma situação parecida na carreira, e afirmaram que o "psicológico da equipe ficou bastante abalado" no período.
Na sequência da demissão, o Santos anunciou Glaucio Carvalho como novo técnico do feminino na tentativa de conter os danos, mas o estrago já estava feito.
Ao UOL, Sandra Santos, ex-coordenadora as categorias de base das Sereias por quase cinco temporadas, que também chefiou a Secretaria de Futebol Feminino do Ministério do Esporte, comentou que a volta de Kleiton Lima foi um golpe duro para o clube.
É claro que esse tipo de coisa impacta negativamente. Isso repercutiu nacionalmente e internacionalmente. Inclusive, esse Impacto deveria ter sido pensado antes de acontecer. Essas atletas foram expostas. É o que eu falo: se tem um plano estratégico no departamento, pensa em próximos passos, é possível traçar o plano para essa equipe para dois, três anos. Isso é profissionalizar. Não se pode dar passos para trás.
Sandra Santos, ex-coordenadora e técnica de base das Sereias
Elenco limitado
Dois meses depois da polêmica, o processo de reconstrução interno foi ganhando força. Por ter um perfil mais agregador, Glaucio blindou o elenco e criou um ambiente mais "acolhedor", segundo as próprias jogadoras.
Ao mesmo tempo, as atletas receberam acompanhamento de uma psicóloga, Sonia Roman, que foi "fundamental no processo de retomada da confiança".
Assim, o clima passou a ser mais leve no vestiário e a equipe voltou a vencer, mas foi aí que os problemas técnicos apareceram. Isso porque os resultados positivos só aconteceram no Paulistão Feminino, diante de equipes muito inferiores. A exceção ocorreu na quinta-feira (20), com o triunfo por 2 a 1 sobre o Palmeiras, fora de casa, pelo Estadual.
Enquanto as Sereias têm dez pontos em cinco jogos no Paulistão, a situação no Brasileiro é bem diferente: apenas sete pontos em 12 partidas.
Com a equipe na zona de rebaixamento do Brasileiro Feminino, o próprio Marcelo Teixeira reconheceu que o atual elenco não está "à altura das tradições das Sereias da Vila". O UOL teve acesso ao áudio de uma reunião do Conselho Deliberativo, realizada no dia 10 de junho, no qual o mandatário ressalta a necessidade de reforços.
A coordenadora Thaís [Picarte], junto com a Aline [Xavi], está trabalhando com vistas a melhorar esse elenco, porque de fato não é um elenco à altura das tradições das Sereias da Vila. Nós, nesta janela, pretendemos fazer e buscar nos últimos dois ou três jogos os resultados para que o Santos continue na elite do futebol feminino.
Marcelo Teixeira, presidente do Santos, em reunião do CD
Por causa da recaída de resultados no Brasileirão, o trabalho de Sonia também passou a ser contestado e, há cerca de uma semana, ela foi dispensada.
Depois do 8 a 1 no Marília [em 25 de maio], percebi que houve um esfriamento com a psicologia. Muitos ruídos chegando. 'As meninas não querem psicologia', 'o técnico não quer psicologia', 'os funcionários do setor acham desnecessário'. Não consegui confirmar as verdades ou mentiras. Pensei: 'Vou embora, pois estou sobrando'.
Sonia Roman, ex-psicóloga das Sereias da Vila
Última chance
Neste domingo (22), o Santos encara o Grêmio, em rodada atrasada do campeonato, na Vila Belmiro. A partida será decisiva para saber se o time ainda terá chances matemáticas de permanecer na Série A1.
Eu ainda acredito na permanência, mas caso ocorra o pior, que as pessoas tenham lucidez suficiente pra entender que o desenvolvimento da modalidade é um caminho sem volta, sem freio. Que se corrijam os rumos, e que o Santos, especialmente no que se refere às Sereias, invista o necessário para voltar ao lugar que a imensidão desse clube exige.
Alessandro Rodrigues, ex-gerente de futebol feminino do Santos