O zagueiro colombiano Andrés Escobar uma vez recorreu a uma comparação para explicar por que preferia futebol a touradas: "No futebol, não matam ninguém. É mais de alegria, diversão". A ironia do destino é que esse argumento não valeria para ele mesmo.
Pela versão que prevalece até hoje, o gol contra que simbolizou a eliminação da Colômbia na Copa de 1994 motivou uma discussão que terminou com seis tiros no jogador. Dez dias depois do jogo contra os Estados Unidos, Escobar foi morto aos 27 anos no dia 2 de julho de 1994.
Por mais caótica que fosse a Medellín dos cartéis de narcotráfico, um crime parou o país, extrapolou as fronteiras do futebol e marcou uma geração de colombianos que ainda viviam a cicatrização da ferida pela queda ainda na primeira fase da Copa. As perguntas sobre o que aconteceu permanecem: foi um crime passional? Uma discussão de bar? O quanto o narcotráfico está envolvido?
Naquele dia, não se sabe quantos médicos, advogados, pessoas morreram. Foi o momento histórico do país. Não é que houvesse um plano para matar Andrés. Simplesmente, era um país difícil. Ele estava no lugar errado na hora errada. Era o momento que a Colômbia vivia. A morte do Andrés cobriu todas as mortes Francisco Maturana, técnico da seleção colombiana em 1994.
A frase sobre touradas tinha sido dita três anos antes do crime, em 1991, ao escritor e jornalista Gonzalo Medina Perez. Ele entrevistou Escobar para o livro sobre futebol, violência e resistência social em Medellín, intitulado "Una Gambeta a la Muerte" (Um Drible na Morte).
O assassinato deu fim a uma carreira de um jogador formado na base do principal time da cidade, o Atlético Nacional, que já tinha sido campeão da Libertadores em 1989 - foi o primeiro título colombiano na competição.
Geração de sonho
Os obstáculos da carreira passaram por palmilhas específicas e até infiltrações no joelho. Teve quem dissesse que ele deveria abandonar o futebol devido a problemas no tornozelo.
Mas Escobar foi à Copa de 1990 e, depois, fez parte de uma geração da seleção colombiana que levou a torcida ao delírio por conta da campanha nas Eliminatórias. Ele não atuou como titular, mas os 5 a 0 sobre a Argentina em Buenos Aires foi o jogo mais marcante.
Só que, na Copa, as coisas não saíram como planejado. Uma derrota para a Romênia na estreia aumentou a pressão. No segundo jogo contra os EUA, o gol contra foi crucial para a derrota por 2 a 1. E a Colômbia não conseguiu a vaga nas oitavas. E olha que à época os quatro melhores terceiros se classificavam ao mata-mata. Os Estados Unidos avançaram nessa brecha. A Colômbia, não.
Antes do jogo contra os EUA, uma movimentação de criminosos já tinha chegado ao conhecimento da seleção, mas em outra direção. Gabriel "Barrabás" Gomez foi barrado por Maturana, diante de ameaças feitas à família dele — que não se concretizaram.
"A decisão foi comunicada ao elenco no vestiário, momentos antes da partida contra os EUA, gerando um impacto na equipe. Naquele dia, jogaria com um time que eu não tinha treinado", lembra Maturana.
Quando a bola rolou, o lance envolvendo Escobar parece até bobo. Um cruzamento da esquerda, a ânsia de interceptá-lo e o carrinho contra o próprio patrimônio.
"Meu filho mais novo, Felipe Ángel, pensou naquele momento que poderiam matá-lo porque a Colômbia estava passando por um momento muito difícil, mas eu sinceramente disse a ele que nada poderia acontecer com o tio porque todos amavam muito o Andrés", disse a joalheira Maria Esther, irmã de Andrés, hoje com 63 anos.
Com a eliminação, os jogadores, especialmente Escobar, foram aconselhados a evitar exposição quando voltassem para casa.
"Ele era uma pessoa muito responsável e se sentiu mal, mas sabia que tinha que seguir em frente e enfrentar a situação de frente para o povo colombiano. Ele queria voltar e falar. Nunca imaginamos que algo tão terrível pudesse acontecer de fato", acrescentou a irmã do jogador.
Depois da Copa, naquele 2 de julho, a família de Escobar estava em Las Vegas, ainda aproveitando a estadia nos Estados Unidos, mesmo após a eliminação colombiana. Aí, uma ligação mudou para sempre a história dos Escobar.
"Recebi uma ligação no meu quarto de hotel às 4 da manhã. Era Gabriel Gómez, companheiro de Andrés na seleção nacional, ele me disse: 'Tenho uma péssima notícia para você'. E me disse que a morte dele foi horrível, é a pior coisa que ouvi na minha vida, nunca imaginei. Meu pai estava conosco e foi muito triste para ele. Ele chorou muito por sua morte", conta Maria Esther.
Como foi o crime
A versão oficial dá conta de que Andrés e seus amigos foram à boate El Indio, na noite de 1º de julho. Lá estavam também os irmãos Pedro David Gallon Henao e Juan Santiago Gallon Henao. Eles eram conhecidos por sua atuação no setor pecuarista e viram seu império prosperar em meio ao aumento do tráfico de drogas na década de 1980.
Os irmãos e "parças" apareceram no local e reconheceram Escobar. Aí, o que inicialmente era uma provocação pelo gol contra fez o clima esquentar. A princípio, o zagueiro interpretou como uma brincadeira e até riu, mas depois ficou chateado.
Já no início da madrugada de 2 de julho, Andrés estava com uma amiga em um carro, deixando o local - não era a noiva. A turma dos Gallón apareceu e a discussão escalou.
Então, Humberto Muñoz Castro, o motorista dos irmãos, surgiu na cena. Após insultar Escobar, sacou o revólver e disparou seis tiros. O zagueiro já chegou morto ao hospital.
Os Gallóns, seus amigos e Humberto fugiram. Por ordem da família Gallón, Humberto denunciou um suposto roubo de carro, tentando fugir da responsabilidade pelo homicídio.
O Ministério Público verificou a mentira e capturou o guarda-costas e os irmãos. Acusou o primeiro deles de homicídio e Gallón de falsa acusação. Humberto foi levado para Bogotá e assumiu a culpa do assassinato.
Futebol ou ciúmes?
Você já leu a versão oficial. Na Colômbia, circulam versões extraoficiais do crime. O jornalista Wbeimar Muñoz descreve algumas.
Um relato paralelo apontaria para traços de ciúme no episódio. O jogador, supostamente, estaria acompanhado de uma mulher que não era a sua noiva, mas, sim, conhecida dos assassinos.
"Esta última versão levanta questionamentos sobre a credibilidade do sistema judicial, especialmente considerando a redução significativa da sentença do motorista. Além disso, relatos de colegas de equipe de Escobar no Atlético Nacional e na seleção com quem eu conversei, indicam que o ciúme pode ter sido um motivador para o crime", disse Muñoz.
Para Maria Esther, irmã de Escobar, a ligação entre o jogador e a mulher com quem ele foi visto na noite de seu assassinato é questionável. "Isso nem é verdade, Andrés não saiu naquela noite com nenhuma mulher", disse Maria Esther.
A única mulher mais próxima à cena seria Natalia Martínez Guarnizo, que Escobar já conhecia. Ela estaria próxima ao jogador na hora dos tiros e nunca esteve envolvida com o tráfico de drogas.
A família de Escobar não vê evidências da presença de uma outra mulher, capaz de gerar ciúme ou motivar o assassinato.
E depois?
O crime interrompeu os planos de Escobar de se casar com a noiva Pamela Cascardo, hoje uma dentista em Medellín. Tinha até uma sondagem do Milan.
"Recebi uma ligação do meu amigo Higuita no meio da noite, fiquei com muito medo quando o ouvi chorar. Ele me contou que haviam matado nosso amigo Andrés, foi uma notícia terrível. Ele me pegou de carro e fomos ao velório. Não sei os motivos, mas o que sei é que Andrés era um ser humano maravilhoso, não tinha inimigos, nem problemas. Era um símbolo social em Medellín, um exemplo para todos. Depois de tanto tempo, o assunto deixou de ser falado. Em cada aniversário do Andrés, lembramos dele pelo carinho e amor que seus amigos e familiares lhe demonstraram. Foi uma grande perda para o futebol e para o país em geral", disse Alexis Garcia, capitão do Atlético Nacional à época.
Já o assassino de Andrés Escobar, Humberto Muñoz, enfrentou uma condenação de 43 anos de prisão, porém, foi libertado em 2005 por bom comportamento, aceitando uma redução de pena aprovada pelo Congresso da República, além da visita do Papa João Paulo II.
A libertação de Humberto em 18 de maio de 2005 marcou o início de um período de silêncio e mistério em relação ao seu paradeiro. Mas a lembrança e lamento pela morte de Escobar são marcas jamais apagadas no futebol colombiano.
"A morte de Andrés mudou o sentimento, a paixão de muita gente que prometeu não voltar ao futebol por causa da morte injusta desse garoto. Devo dizer que a morte me doeu muito porque ele era um bom garoto, descobrimos depois de morto que ele era um grande filantropo, repartia no fim de semana comida para gente pobre e ninguém sabia", disse o jornalista colombiano Wbeimar Muñoz Ceballos.
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