'Futebol exalta masculinidade nociva': o que seu time faz pelas mulheres?

Declarações machistas e misóginas, agressões, estupro e até assassinato. Esses são casos de violência contra a mulher envolvendo jogadores, dirigentes e comissão técnica de clubes de futebol nos últimos anos. O UOL questionou os 20 times que disputam a Série A do Brasileirão sobre as medidas que eles tomam para tornar o esporte mais acolhedor para elas —incluindo ações educativas com seus atletas.

Deles, apenas quatro não responderam ao contato: Flamengo, Athlético-PR, Atlético-GO e Vitória. Já o Cuiabá declarou apenas que não iria se manifestar. O Santos, que disputa a Série B neste ano, foi contatado, mas não respondeu ao questionamento.

Entre os 15 que se manifestaram, alguns investem em campanhas educativas e palestras. Outros, em coleções especiais em datas comemorativas, como o Dia da Mulher.

"Prisão de Daniel e Robinho são resultado de novo momento"

"Qual de vocês aí, que é casado, que nunca brigou com uma mulher? Ou até saiu na mão com uma mulher? Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher", foi assim que o goleiro Bruno respondeu aos questionamentos de jornalistas sobre a briga do colega, Adriano, com a noiva Joana Machado.

Adriano negou qualquer agressão, mas, o então goleiro do Flamengo, saiu em sua defesa na coletiva de março de 2010, sorrindo enquanto falava. Quatro meses depois, ele foi preso pelo assassinato de Eliza Samudio, com quem tinha um filho.

14 anos depois, a tolerância a posturas como a de Bruno está mais baixa, segundo opina Leda Costa, professora da UERJ e pesquisadora do laboratório de Estudos em Mídia e Esporte.

Para ela, as prisões de Daniel Alves e Robinho geraram um debate muito diferente daquele visto no caso do goleiro.

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Robinho e Daniel Alves são derivados de novos momentos. Sobretudo, de entender que o corpo da mulher não é um objeto e que, se for transformado nisso, é crime - que deve ser devidamente punido.
Leda Costa, pesquisadora da UERJ

Os dois casos, que envolvem astros do futebol, não são exceção. Nos últimos anos, é comum que os clubes afastem imediatamente jogadores que recebem denúncias de violência, ainda durante a investigação.

Em maio, o Botafogo informou o afastamento do volante Kauê, suspeito de agredir a ex-namorada, que relatou o episódio nas redes sociais e disse ter feito BO. A denúncia acabou arquivada, e o jovem foi reintegrado ao elenco.

O São Paulo também teve denúncias recentes contra jogadores do elenco masculino. Em 2023, o atacante Pedrinho teve o contrato rescindido depois da divulgação de mensagens em que ameaçava a ex-namorada.

Em 2019, o goleiro Jean foi suspenso depois de ser preso nos Estados Unidos suspeito de agredir a então esposa, Milena Bemfica. Ele acabou emprestado ao Atlético-GO e depois vendido ao Cerro Porteño.

Por outro lado, Daniel Alves voltou ao futebol 3 meses após condenação

Mas por mais que os clubes e a opinião pública se esforcem para mostrar repúdio a casos de violência, nos bastidores, os envolvidos ainda encontram espaço no esporte.

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Uma reportagem do UOL revelou que Daniel Alves, condenado a 4 anos e 6 meses de prisão por um estupro na Espanha, participou de reuniões com os empresários do lateral-direito Pedro Lima, de 18 anos, que atuava pelo Sport. O Wolverhampton desembolsou 10 milhões de euros (cerca de R$ 61 milhões) para contratá-lo em julho.

Daniel Alves deixou a prisão em março
Daniel Alves deixou a prisão em março Imagem: LLUIS GENE/AFP

Renato Guimarães, agente do jogador no Brasil, negou que Alves estivesse envolvido em qualquer negociação, mas nos bastidores, segundo a reportagem, a presença do lateral era considerada um trunfo para levar Pedro Lima ao futebol europeu.

A situação vem à tona pouco meses depois de o ex-lateral ser condenado por abusar de uma jovem em uma boate na Espanha. Logo após a condenação, a imagem dele foi retirada do museu do Bahia, onde foi formado como atleta.

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A importância dos clubes na formação de atletas

Entre os clubes que responderam ao UOL, sete disseram promover palestras para atletas da base sobre masculinidade tóxica e assuntos relacionados.

"Entendemos que os atletas em formação esportiva são adolescentes em pleno desenvolvimento biopsicossocial e se faz urgente uma formação integral. O futebol, assim como outros esportes, é um espaço potente para o desenvolvimento da cidadania", afirmou o Red Bull Bragantino.

Trabalhar estas questões com os jovens, que são a base da sociedade, é fundamental. O ambiente esportivo acaba sendo um lugar de instrução, de formação, não só para a profissão, mas também para a integração dos jovens.
opinou Fabrine Artiole, advogada que deu palestras para a base do Juventude, em nota enviada pelo time

Entre os homens que já chegaram ao profissional, são poucos os que "levantam a mão" para se pronunciar em meio a casos de violência contra a mulher.

No Corinthians, quando Cuca foi contratado, os jogadores do time masculino não comentaram as críticas da torcida e correram para abraçar o treinador depois da classificação às oitavas de final da Copa do Brasil.

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Cuca comandou o Corinthians em dois jogos
Cuca comandou o Corinthians em dois jogos Imagem: Marcello Zambrana/AGIF

Apesar do apoio do elenco, a pressão externa fez o próprio comandante pedir demissão. Depois, ele treinou o Athletico-PR após a anulação da sentença por estupro na Justiça da Suíça.

Torcedoras do Coletivo Atleticaníssimas fizeram uma denúncia afirmando que foram ameaçadas por se manifestar contrárias à contratação.

Quando as mulheres começam a praticar esporte, elas são vistas como usurpadoras desse espaço masculino. Todo avanço das mulheres no campo esportivo é com luta, e não como concessão.
opina Kátia Rubio, psicóloga e coordenadora do Grupo de Estudos Olímpicos da USP

Já para Leda Costa, existe também um desinteresse dos clubes em lidar com questões controversas, sendo uma saída mais fácil se limitar a falar sobre os direitos das mulheres apenas em datas especiais.

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"Acho que o futebol é um espaço que ainda se mostra muito vinculado à exaltação de uma masculinidade bastante nociva à sociedade. Uma masculinidade que exalta a virilidade, a força, a violência".

Exclusão começa na liderança

"Não pode ser normal ter apenas uma mulher à frente de um grande clube na América do Sul. Nós podemos estar onde quisermos. (...) Eu poderia dizer que me sinto honrada, mas fico deprimida. Não tem um porquê. Nós queremos oportunidade."

Foi com esse discurso que Leila Pereira, presidente do Palmeiras, abriu uma entrevista coletiva exclusivamente feminina, organizada pela dirigente no início deste ano.

Leila Pereira foi eleita presidente do Palmeiras em 2021
Leila Pereira foi eleita presidente do Palmeiras em 2021 Imagem: Cesar Greco/Palmeiras/by Canon

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A dona da Crefisa é apenas a terceira mulher a ocupar a presidência em times considerados grandes no Brasil: Marlene Matheus já comandou o Corinthians e Patrícia Amorim, o Flamengo.

Na conversa com as jornalistas, Leila falou na "solidão" em meio ao ambiente dominado por homens.

"Raramente se fala da mulher nos esportes como uma pessoa agressiva no sentido da sede de vitória e não agressiva para destruir alguma coisa. É como se certos adjetivos não pudessem ser usados para o bem no gênero feminino", avalia Katia Rubio.

"É complicado que quem decida seja uma mulher"

Ramón Díaz usou a frase acima em abril, dez dias antes de deixar o comando do time masculino do Vasco — por questões não relacionadas ao episódio.

Na ocasião, o atual técnico do Corinthians criticou a árbitra Daiane Muniz, que ocupava o VAR na partida do Brasileirão contra o Red Bull Bragantino.

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O Vasco pediu desculpas pelo comentário machista, dizendo ter "o compromisso de reforçar as medidas e diretrizes educativas necessárias".

Leda Costa afirma que os clubes devem agir nesses momentos para reforçar a mensagem de respeito às mulheres.

"Tem que haver um movimento de dentro para fora e de ordem institucional. O silêncio também é muito significativo nessas horas, e é muito triste ver quanto os próprios jogadores também não se posicionam ou se posicionam de uma maneira muito protocolar."

Mais um caso de silêncio institucional foi o do Corinthians. Com o time feminino mais vencedor do futebol brasileiro e camisas pedindo "respeito às minas", a presença do conselheiro vitalício Manoel Ramos Evangelista, conhecido como Mané da Carne, também gera questionamentos.

No final de 2021, ele foi acusado de direcionar declarações machistas e misóginas a Analu Tomé em um grupo de WhatsApp que reúne os conselheiros do clube, como revelou a colunista do UOL Marília Ruiz.

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A Comissão de Ética e Disciplina do Conselho Deliberativo do Corinthians arquivou as representações contra o conselheiro. Já em 2022, ele foi acusado de ameaçar agredir uma conselheira do clube.

"Mulher tem que tomar porrada para aprender a ficar de boca fechada", teria dito à conselheira Susy Miranda Sanchez antes de uma reunião do Conselho Deliberativo.

Leda Costa opina que por mais que a pressão de torcida e patrocinadores seja importante, cabe aos próprios clubes cultivar o interesse de defender as minorias.

Eles têm que se posicionar enquanto instituições fortes. É só futebol? Se fosse só futebol, os assuntos ficariam ali com o final do jogo, não é isso que acontece. (Os clubes) têm que parar de fazer uso dos seus torcedores para benefício próprio. Além das mulheres, é um amplo espectro de exclusão que precisa ser pensado contra a violência em relação às mulheres, LGBTQIA+, contra o racismo. Está tudo no mesmo pacote."
Leda Costa, pesquisadora

A discussão sobre um futebol mais inclusivo acontece em meio a uma alta de feminicídios no Brasil. Em 2023, foram 1.463 vítimas - ou uma morte a cada seis horas, segundo estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. É o maior número desde que o crime foi tipificado, há nove anos.

"É um país extremamente machista, que mata muitas mulheres. E quando você tem um esporte que é símbolo, as pessoas não têm dimensão do que isso significa. É uma das bases da imagem do Brasil", completa Leda.

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Denúncias chegam até a CBF

Os problemas envolvendo violências contra a mulher não se limitam aos clubes: em janeiro, a CBF virou alvo de acusações de Luísa Rosa, ex-diretora da entidade.

Ela abriu processo acusando a entidade de criar um ambiente "doentio", "desconfortável e hostil" para mulheres. Os documentos também envolvem acusações de assédio moral e sexual.

Em resposta, a Confederação disse estar comprometida em "contribuir não apenas para a melhoria do ambiente esportivo, mas de toda a sociedade."

A Comissão de Ética da CBF rejeitou a denúncia ainda em janeiro. Nela, Luísa afirmava que o próprio presidente da entidade, Ednaldo Rodrigues, praticava assédio moral e era conivente com o sexual.

Ednaldo se manteve em silêncio nos primeiros meses do ano, inclusive sobre a condenação de Robinho e Daniel Alves, jogadores que passaram pela seleção brasileira.

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CBF recebeu denúncias de assédio
CBF recebeu denúncias de assédio Imagem: Thais Magalhães/CBF

O presidente da CBF se pronunciou apenas no fim de março, após a condenação do ex-jogador do Santos.

Na ocasião, Leila Pereira, que chefiava a delegação da Seleção em dois amistosos, criticou a falta de posicionamento da entidade. O mandatário da confederação negou que estivesse evitando o assunto.

"Eu confio muito na justiça. Ocorreu todo o processo legal, foi dada a chance do contraditório e saiu a condenação. Cada um precisa pagar pelo crime que cometeu. Conheço a família do Daniel Alves, que é honrada. O que aconteceu é triste, mas cada um tem que pagar pelos seus crimes", disse o dirigente ao UOL.

*O levantamento do UOL para a reportagem foi feito entre os meses de março e abril de 2024.

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