'Mental e personalidade fortes': como Fla ajudou Vini Jr. a ser o melhor
"Não poderia deixar de agradecer ao Flamengo, que me viu nos campos, nas ruas. Não poderia chegar aqui sem o Flamengo", disse Vini Jr. ao ser eleito o melhor jogador do mundo no Fifa The Best.
O discurso lembra uma trajetória que começou em 2010, quando o atacante ainda tinha 11 anos e já era tratado como joia. Vendido muito cedo, foi desacreditado e ironizado, mas venceu. E levou com gratidão o rubro-negro ao resto do mundo.
Relevância no clube
A festa do Flamengo nas redes sociais mostra o tamanho que Vini tem no clube, que dedicou uma carta a ele falando sobre amor, orgulho e inspiração.
Ele já chegou aos profissionais praticamente acertado com o Real Madrid aos 16 anos. Aos gritos de "fica" e muitas lágrimas, se despediu do Ninho do Urubu pouco mais de um ano depois para viajar a Madri.
Vinicius é o primeiro jogador revelado pelo Fla a vencer esse prêmio. É também um dos principais e melhores atletas revelados pelo clube na história.
Vini sempre foi um menino que pulou etapas. Pela qualidade, estava sempre uma ou duas categorias acima do ano dele. Não foi diferente no profissional. Vinicius tinha acabado de estrear, jogou a Copinha e depois já subiu. Lógico que teve dificuldades, era um menino de 16, 17 anos já no profissional. Teve a estreia, deixou todos muito orgulhosos e emocionados. Sabíamos que ele teria um pouco de dificuldade no começo por não ter feito os três anos normais de juniores. Não tínhamos como segurar. Pelo talento, já tinha sido vendido e iria embora aos 18 anos.
Carlos Noval, gerente da base do Flamengo na época
Joia
Natural de São Gonçalo, Vini Jr jogava no Canto do Rio, clube de Niterói, na Região Metropolitana do Rio. Em 2010, foi aprovado em um teste do Flamengo para jogar no sub-13, ainda aos 11 anos. Se foi vendido aos 16, já estava no radar de clubes de fora do país desde os 12.
Vinicius brilhou em todas as categorias que jogou. Por isso, os olhos do Real Madrid brilharam antes mesmo da promoção do profissional. Ele se destacou na Copinha antes de subir de vez. Na época, o técnico Zé Ricardo avisou que seria "utopia" achar que um garoto de 16 anos estava pronto, apesar da boa evolução. Os dois se conheciam bem na base, o que acabou ajudando.
Conheci o Vinicius em 2012, eu no Sub-15 e ele na categoria abaixo, a Sub-13. Já se falava bastante no potencial, bem como toda geração 2000. Com o tempo foi ficando mais evidente que se tratava de um talento e com muito potencial de desenvolvimento. Mesmo ainda um menino, demonstrava muita personalidade para jogar e dedicação nos treinamentos, sem deixar de lado a alegria marcante desde cedo. Com uma boa retaguarda da sua família e do clube, as etapas foram passando e confirmando toda a expectativa que tínhamos dele.
Zé Ricardo, primeiro treinador de Vinicius no profissional
Os primeiros momentos pelo Fla foram de oscilação e adaptação. Natural pelo tamanho da expectativa que se criou sobre ele. Já na estreia, ouviu gritos de "Vinicius, Vinicius". Em 2017, fez 37 jogos, cinco como titular. Deu uma assistência e marcou quatro gols. A comissão técnica ligou o alerta e passou a trabalhar mais as finalizações, o que deu resultado.
O ano seguinte foi bem melhor, pois iniciou com a titularidade e colecionou atuações marcantes, como diante do Emelec, no Equador, pela Libertadores, quando marcou dois gols. Em 2018, fez 10 gols e deu quatro assistências até a despedida em junho, antes da parada para a Copa do Mundo da Rússia, com o time na liderança do Campeonato Brasileiro.
Não teve nenhum trabalho especial nesse período. O Vinicius foi trabalhado a base inteira, desde que chegou. Foi sendo moldado e formado para esse patamar de ajudar o Flamengo. Aguentar a pressão é normal no Flamengo, já fazem isso desde o sub-10, 11, 12, 13... acaba facilitando o trabalho dele quando chega no profissional. E não tinha pressão da torcida. O Vinicius podia estar jogando para um Maracanã de 60, 70 mil pessoas ou uma pelada de rua, para ele era a mesma coisa. O mental do Vinicius e a personalidade dele são muito fortes. Sobressaía muito, fora a técnica.
Carlos Noval
Vinicius sempre ultrapassou etapas assim que o clube percebia que já estava pronto para a subsequente. Na transição com o profissional, guardadas as devidas proporções, também foi assim. Acho que ajudou o fato dele me conhecer, de conhecer muitos dos profissionais da CT e atletas que também subiram da base. E o grupo de jogadores era muito bom e experiente, que certamente contribuiu para uma transição mais rápida.
Zé Ricardo
Estive com Vinicius Júnior em 2018, já na transição, ele saindo do sub-20 para o profissional. Sempre foi um jogador muito alegre, impetuoso, de encarar mesmo o adversário, sem ter medo de coisa alguma. Muito corajoso, personalidade muito forte, mostra isso até hoje. Muito se fala, quando ele subiu, das dificuldades de finalização, mas buscava a gente o tempo todo para corrigir e treinar esses fundamentos que ele não tinha tão forte. A saída dele naquele ano deixou uma lacuna muito grande.
Mauricio Souza, auxiliar naquela época, durante apresentação no Guarani
Despedida emocionante
Em 10 de junho de 2018, o Flamengo venceu o Paraná por 2 a 0. Diante de quase 60 mil rubro-negros, o jovem atacante de 17 anos teve mais uma grande atuação para pisar uma última vez no Maracanã como jogador do Fla. Ele não segurou as lágrimas. Tirou a camisa, jogou para a torcida e foi para o abraço.
Aos gritos de "fica Vinicius", avisou que não tinha o que fazer. "É o clube que sempre me ajudou, me tirou de São Gonçalo, me deu uma vida melhor, cuidou de mim... Só tenho que gradecer a todos que me ajudaram desde que cheguei ao Flamengo. O [Carlos] Noval, que está pedindo muito para eu ficar, mas não é comigo, não sou eu que decido", falou na época.
Eu era diretor executivo do profissional na época e já tinha sido formalizado que ele iria em junho. Estávamos muito bem no Campeonato Brasileiro, o Vinicius era o destaque do time do Flamengo. Nós tentamos mudar a ideia, conversar com o Real Madrid para que fosse só em dezembro, mas já tinha um acordo firmado e não teve jeito. Acabou sendo bom para todo mundo. Mas eu tentei muito. A despedida dele no Maracanã foi um dos momentos mais bonitos que pude viver, quando ele entrou no vestiário chorando, me abraçou e ficou um bom tempo emocionado. Dizendo que não poderia fazer nada, gostaria muito de ficar, mas que infelizmente não dava. Falei 'segue tua vida e tua carreira que teu futuro é brilhante'.
Carlos Noval
Ali, Vini Jr. estava onde sempre sonhou, mas ainda não tinha ideia do que a vida reservaria. Ele deixou o campo aos prantos, abraçado por companheiros e funcionários. Vivia um misto de emoções.
A proposta do Real Madrid foi de 45 milhões de euros (R$ 157 milhões na cotação da época), algo muito acima do praticado naquele momento e acima até da multa.
Ao sair de "casa", conviveu com a desconfiança e o deboche ao ser chamado de Neguebinha. Superou isso tudo, se tornou referência na luta contra o racismo e o melhor do mundo.
A parte mental, a personalidade que já carrega desde pequeno de nunca desistir de nada, estar sempre na luta, se errar vai fazer de novo. Era um menino fantástico e que nunca nos deu o menor problema, nem dentro e nem fora de campo. Um menino muito alegre, humilde e que está desfrutando de tudo que teve aprendizado na carreira. É um ícone para o mundo inteiro.
Carlos Noval
Fiquei muito feliz com o prêmio. Acompanhei boa parte da formação e sei de todo sacrifício, dedicação e amor que ele tem pelo jogo. Ver ele chegar aonde ele chegou me deixa orgulhoso, bem como todos que ajudaram. Foram muitas mãos nesse processo e tenho certeza que todos se sentiram representados naquele momento. Mesmo não tendo tanto contato com ele ultimamente, continuo acompanhando e torcendo pro seu sucesso.
Zé Ricardo
Mas ficou uma promessa ao pai: Vini Jr disse que vai voltar ao Flamengo um dia. A ligação entre eles continua muito viva. Quando foi vítima de racismo na Espanha, Vinicius encontrou no rubro-negro um abraço e recebeu um mosaico e uniformes personalizados no Maracanã. Quando ele quiser voltar, as portas de casa vão estar abertas.
Todos os rubro-negros ficaram felizes e emocionados com o prêmio. Particularmente com a referência ao clube de origem e do coração. Não sei quantos lembraram dos clubes na hora de receber os prêmios. Vinicius mostra que é um rubro-negro apaixonado, raiz e que merece muito o carinho e as homenagens da torcida.
Eduardo Bandeira de Mello, presidente do Fla entre 2013 e 2018