Sobrevivente da Guerra das Malvinas ganha Copa Argentina: 'Sorte de voltar'

Um tiro no pé. Literalmente falando. Bastava um tiro no pé, fingindo um descuido, para que um soldado, muitos deles com 19 ou 20 anos, escapasse da morte anunciada e voltasse para casa. Mais vale a vida com problemas de locomoção do que o fim dela pelo tiro de um inglês qualquer.

O soldado De Felippe também tinha medo, também tinha 20 anos, também sofria na Guerra das Malvinas, mas nunca pensou em um tiro no pé. Ao contrário, queria o pé, seu ganha pão, em perfeitas condições. Queria seu corpo íntegro para voltar ao seu Huracán.

Omar de Felippe conseguiu. Voltou para o Huracán, depois andou por outros clubes, virou treinador e agora conquistou a Copa Argentina levando o Central Córdoba de Santiago del Estero ao primeiro título de sua vida. Talvez mais do que ele tivesse sonhado, mas menos do que parecia quando completou seu aniversário de 19 anos.

Um dia antes, 2 de abril de 1982, a Argentina declarou guerra à Inglaterra pela posse das Ilhas Malvinas (Falkland, para os ingleses). A rendição veio dois meses e dois dias depois, com 649 soldados argentinos mortos.

Omar de Felippe foi chamado dia 9 de abril, quando ele apenas pensava se seria ou não aproveitado no Huracán, onde era juvenil. Foi sua mãe que recebeu a carta de convocação. Ele se apresentou, recebeu mochila, roupa apropriada e foi se inteirando da situação.

A mãe iria visitá-lo três dias depois, mas não houve tempo. No dia anterior, em um caminhão, foram até o aeroporto embarcar. "Vi muitas casas com bandeiras argentinas, muita gente nos saudando, até parecia que a gente iria para o Mundial de Futebol", disse à revista El Grafico.

"Nós também estávamos entusiasmados e subimos nos aviões. Aí, chegou o silêncio. Acabou a euforia. Éramos 100 no piso do avião, sem cadeiras. Foram seis horas de voo, recebemos apenas um mate. Ninguém falou nada. Quando chegamos às Malvinas, percebemos que era sério, que não era futebol".

Teve de mudar rapidamente. Era preciso sobreviver. Dividindo comida, economizando balas, passando frio. E talvez matando.

Era tudo estranho. Às vezes, parecia um filme. Em outras, pensava: 'o que estou fazendo aqui?' Um dia, carregava uma metralhadora MAG com alcance de mil metros. Como era pesada, eu ia 100 ou 200 metros atrás dos fuzileiros. Então, os fuzileiros voltaram, me chamaram junto a um companheiro e apontaram um local onde havia um ninho de metralhadoras dos ingleses. Não podíamos deixar que eles avançassem. Então, eu metralhei o local. Não sei se matei alguém, não sei se escaparam, só sei que não avançaram mais. Tomara que tenham escapado. Ninguém quer matar ninguém, mesmo que esteja em guerra, mas você faz coisas que não faria em outro lugar.

Continua após a publicidade

Em dezembro, havia terminado o serviço militar obrigatório e seu foco voltava a ser jogar futebol.

Omar De Felippe (à esquerda) posa com arma no ombro
Omar De Felippe (à esquerda) posa com arma no ombro Imagem: Arquivo pessoal

E a guerra serviu para alguma coisa?

"Serviu para sentir que as Malvinas são argentinas. Tive a sorte de voltar inteiro e sentir o apoio da família e do clube. Tinha medo de saber como seríamos recebidos, mas as pessoas apoiavam, davam comida. Vi muita coisa. Vi garotos feridos e uma pedra, onde eu estava há alguns minutos, ir para os ares, com muitos dos nossos. Foi um morteiro dos ingleses. Fiz terapia, participei de grupos de ex-combatentes e aprendi que não se deve fraquejar nunca".

De volta à Argentina, De Felippe se reencontrou com o futebol. Jogou no Huracán até 1985. Depois, foi para a Colômbia jogar no Once Caldas e retornou à Argentina para atuar em equipes menores como Olimpo, Vila Mitre, Arsenal de Sarandi e San Telmo. Em 2009, começou a carreira de treinador, que atingiu o ápice com o título da Copa Argentina, com uma vitória por 1 x 0 sobre o Unión Santa Fé.

Após o título, fez uma comparação com o que passou na guerra e o cotidiano dos argentinos. "Com a gente nas Malvinas foi como a vida de todo argentino, que levanta às 5h da manhã, toma um ônibus para trabalhar e nunca tem o suficiente. A gente tinha fome, frio e precisava levantar para buscar comida de alguma maneira. Era preciso sobreviver, aqui também é assim".

Continua após a publicidade

Com esse espírito e tendo claro que não se pode fraquejar nunca, Omar de Felippe pode levar seu Central de Córdoba a fazer uma Libertadores digna, para alegria dos 230 mil habitantes de Santiago del Estero, a 1.042 quilômetros ao norte de Buenos Aires. E de muitos veteranos das Malvinas, prontos a aplaudir seu companheiro campeão.

Deixe seu comentário

O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.