Técnico do Santa Cruz não tinha jogadores para a reapresentação e está na semifinal do Nordestão
No dia 2 de janeiro deste ano, estava marcada a reapresentação do Santa Cruz para a temporada 2017, no entanto não haveria jogadores para serem apresentados naquela data. A solução foi adiá-la para o dia 4. O time pernambucano havia sido rebaixado à Série B do Brasileirão em 2016 e a situação era devastadora. A missão de reconstruir a equipe ficou para o técnico Vinícius Eutrópio, escolhido pela diretoria.
- O cenário era de um time que teve um descenso e que tinha desfeito toda a equipe. A proposta que eles me fizeram foi de uma reconstrução total, com uma restrição financeira e com dúvida da parte de qualquer jogador que viesse a ser contratado, principalmente pelas notícias que tinham, mas me deram total liberdade para, junto da diretoria, construir o perfil dentro desse modelo que a gente tinha - declarou o comandante em entrevista ao LANCE!
Não seria fácil, mas o mineiro de 50 anos, encarnou a mais conhecida das características de seus conterrâneos para tocar o desafio. Quieto e com calma, assumiu o comando do time e começou a trabalhar em um caso que não seria novidade em quase dez anos de carreira como treinador. Com métodos que buscam a humanização e a individualização no tratamento dos jogadores, e a quebra de paradigmas relacionados aos treinamentos.
Quase quatro meses depois, o Santa garantiu vaga nas semifinais dos dois torneios que disputava. No Campeonato Pernambucano acabou eliminado pelo Salgueiro e, neste sábado, às 18h30, vai até a Ilha do Retiro para enfrentar o seu rival Sport pela partida de ida da semifinal da Copa do Nordeste. Entre os quatro semifinalistas da competição regional (Sport, Bahia e Vitória), o Tricolor do Arruda tem o menor orçamento e a menor folha salarial.
Em 19 jogos oficiais na temporada, o Santa Cruz venceu 11, empatou cinco e perdeu quatro, aproveitamento de 66,7% dos pontos disputados. Números significativos diante do que se desenhou em janeiro com a disputa de dois torneios de grande equilíbrio.
Ao LANCE!, Eutrópio contou um pouco do processo de reconstrução do time e de sua metodologia de trabalho. Confira a entrevista completa:
Quais foram seus primeiros passos na chegada ao clube?
Chegamos com a situação financeira X. "Quantos dias a gente vai ter para montar esse time? Pouquíssimos". Então não adianta eu abrir um leque de 30 jogadores. O que nós fizemos foi contratar 12, corremos atrás de 12 para ter um time. A nossa apresentação que era no dia 2, foi adiada para o dia 4, porque nós não tínhamos jogador para apresentar. No dia 4 foram três atletas profissionais e 12 jogadores da base. Dia 15 foi quando a gente conseguiu preencher com esses 12 jogadores. Dia 21 nós fizemos a nossa estreia contra o Paysandu, no Troféu Asa Branca. Foi isso. Traçamos o objetivo, de curto e de médio prazo, para a gente conseguir vencer essas etapas que eram: convencer os jogadores, montar uma equipe e colocar em campo. Conseguimos realizar as outras etapas e hoje nós já temos um grupo fechado, com bons jogadores, que no ano passado não tiveram um desempenho tão bom e não estavam prestigiados no mercado.
Como fez para convencer os jogadores?
Foi uma dobradinha com o Tininho (vice-presidente do Santa Cruz), mas muitos deles, sete ou oito, já tinham jogado comigo. Outra coisa foi a marca e a torcida do Santa Cruz, que ajudam muito no poder de convencimento, além de mostrar para esses jogadores que aqui seria a casa deles. Eles teriam um acesso para retomar a carreira em grande estilo, abriria caminho, e até poderiam se fixar aqui no Santa, que é um clube que não deve nada aos outros.
Você fez algo parecido na Chapecoense, não é?
Quando eu cheguei lá, era um clube que já vinha subindo de divisão há quatro anos. Já vinha em um processo correto, e que em 2014, no primeiro ano, passou apertado no Catarinense e apertado na Série A. Cheguei em 2015, mas em dezembro de 2014, fizemos uma reunião, depois que eu já estava contratado, para estabelecermos todos os procedimentos, fizemos toda a análise, inclusive da história. Ali nós definimos o perfil de contratação e as metas. Foram contratados 20 jogadores de Série A, entre 25 e 30 anos, porque até então eles só contratavam jogadores de Série B ou C e sofreram muito com a inexperiência, aí eu mostrei para eles que tínhamos que mudar todo o perfil. Montamos a equipe para um ano e não para um campeonato só. Nós não chegamos à final do Catarinense, não dispensamos nenhum jogador e ainda trouxemos o Bruno Silva, o Cléber Santana e o Tiago Costa, que agora está aqui com a gente.
Esse tipo de trabalho de reconstrução, de começar do zero, te seduz?
Acho que o ideal para qualquer treinador é começar do zero, começar todo o processo do ano. Eu acho que isso me atrai, porque me dá garantias de poder conduzir o processo. Então a gente sabe o que está sendo feito, os jogadores, a gente mentaliza toda a equipe de trabalho, os princípios de jogo, os modelos de jogo. Agora, o grande desafio é a velocidade que se impõe para obter os resultados, esse é o contraponto do início de trabalho.
Os resultados que vocês tiveram vieram muito rápido...
Nós temos uma metodologia em que no primeiro dia eu já dou trabalho de bola aérea defensiva, trabalho integrado que se faz hoje, mas eu já fazia há dez anos, trabalho sem a preparação física intensiva. Hoje nós vamos para o quinto mês de trabalho e só tivemos três atletas lesionados, com lesão de grau 1, que é duas semanas e volta, e nenhum na pré-temporada. Atletas que nós buscamos o histórico, que fizeram pouquíssimos jogos nos últimos dois ou três anos, já estão com sequência de 12, 15 jogos consecutivos sem lesão. É um fato que eu gosto de chamar a atenção, porque muitos discutem o calendário, que eu também acho que tem seus erros e acertos, mas muito pouco se discute metodologia, e a gente está provando. Nós somos o único dos 40 clubes de Série A e B que não tem centro de treinamento, mas isso não está impedindo que a gente desenvolva o nosso trabalho.
Como você pode explicar a sua metodologia de trabalho?
O que a gente faz é humanizar o trabalho. Todos os dias a gente trabalha, claro que tem o contexto do conjunto, mas a gente leva muito em consideração o indivíduo. Como ele está, se ele trabalha mais, se ele trabalha menos, às vezes ele nem trabalha. A gente respeita muito o ritmo de cada atleta. A gente tem trabalhado só um período, o que no Brasil é um outro contrassenso, mas o time está correndo mais, a grande maioria dos gols foram feitos no segundo tempo, então isso contradiz algumas coisas como: "O time tem que treinar três vezes por dia". A gente treina em um período, mais na parte da manhã. Você consegue dar todos os exercícios para o jogador, depois a gente almoça, em seguida tem a fase de descanso que o atleta tem que ter, depois tem uma parte que eu acho fundamental, que eu aprendi em uma palestra do Klinsmann, que na Europa falam que é o quinto elemento, que é a sociabilização, a interação, é a questão de nível de interação, que é a integração com a sociedade, o atleta está em casa, à noite, com família, com amigos, e tem a noite toda de sono. Então a gente consegue todos os dias as quatro fases que eu norteio no trabalho. No outro dia ele volta sempre mais entusiasmado, que é um dos desafios dos jogadores brasileiros que os treinadores tanto reclamam. Treino é intenso quando tem que ser.
Na prática, como funciona essa individualização do trabalho com os jogadores?
Vou dar um exemplo para você entender. Terminou um jogo em um sábado, um jogador chegou para mim e falou "Minha mãe faz 50 anos de casamento no domingo, o treino é mesmo segunda de manhã?". Eu falei para ele voltar só terça. Ele está jogando todos os jogos, não vai ser segunda que vai fazer a diferença. Liberou, ele vai voltar satisfeito. Ou o jogador que tem uma dorzinha um pouquinho maior, no lugar de forçar, deixa ele fora.
O fato de vocês terem um número limitado de jogadores no elenco faz com que a preservação da condição física deles seja essencial...
Exato, nós vivemos na conta do chá, todo mundo faz mais de uma função, todos já jogaram, e isso mantem o grupo sempre com nível de competitividade muito bom. Nós chegamos a fazer situações aqui que eram inimagináveis. No final do primeiro turno do hexagonal do Pernambucano jogamos pela primeira vez na história do Santa Cruz com um time todo reserva, lá na Ilha do Retiro, contra o Sport, maior rival e empatamos o jogo.
Esse trabalho físico é um diferencial do Santa Cruz?
Com certeza é um dos diferenciais. Outro diferencial é que todos os jogadores contratados por mim ou pela direção, eu sempre converso antes por telefone. Quando eles chegam aqui eu faço uma reunião com eles de 30 ou 40 minutos, no mínimo, para saber todas as características, mesmo que eu já saiba. As funções táticas, os sistemas que ele já jogou, como é a cidade, como ele vive, o que ele pensa do clube, o que ele vai encontrar, o que ele pensa do meu trabalho, o que já foi feito... Então eu faço uma recepção individual de cada um, e os coloco dentro do nosso grupo mais adaptados.
Até para sentir o comprometimento, a temperatura do jogador...
Isso, e ele se sente parte. Eu já fui jogador e hoje sou treinador, dificilmente chega um jogador e o treinador recebe. Nas empresas não funciona assim. O cara é contratado, passa por alguém do RH, bate um papo com ele, vai mostrar toda a estruturação, vai ter uma integração. Normalmente o treinador é meio intocável em relação a isso. Ele fica ali e tal, e eu faço questão de ter essa recepção com eles, todos eles, desde os nossos dois primeiro contratados, que foram Júlio Cesar e Bruno Silva, até o último que chegou, que foi o Edson Pereira.
Para os jovens da base isso também é essencial, já que estão subindo ao time em um momento de reestruturação...
Sem dúvidas, eu também estabeleci procedimentos para essa transição, que eu chamo de a mais importante, que é a última, de jogador profissional. Já nos reunimos com os diretores da equipe profissional, como os da base, estabelecemos alguns procedimentos e diretrizes. No Brasil normalmente a transição é de três meses. Eu mostrei a eles, pela minha experiência que a transição é de no mínimo dois ou três anos. Expliquei o porquê desses dois ou três anos, o que eles vão fazer nesse período, para não trabalhar por trabalhar, no empírico, no "vamos lá", não é assim que a coisa funciona. Compra um carro, deslumbra e vai embora. Ele vai comprar o carro, ele vai jogar bem, vai jogar mal, ele vai beber, ele vai voltar. Isso tudo todos nós sabemos, menos o jogador, que nunca passou por isso e a gente coloca a culpa nele. Então a gente já criou todos os processos, já mostrei para eles, já mostrei para jogadores, já aconteceu isso aqui, já colocamos no eixo novamente. Então tudo é bem esclarecido com antecedência. Você vai eliminando esses problemas futuros.
Como você avalia o futebol do Nordeste e essa sua passagem por aí?
Eu estou achando bem forte, porque com essa Copa do Nordeste, que eles levam muito a sério, você pega adversários difíceis, e o Campeonato Pernambucano, que já entram os três da capital e mais três pré-selecionados, então você não tem jogos tão fáceis quanto em outros campeonatos, as duas competições têm jogos selecionados. A nossa chave, na Copa do Nordeste, era o grupo da morte, tinha o Náutico, Campinense, que era o vice-campeão, e a gente, além do Uniclinic, que era um pouquinho mais abaixo. Difícil ter isso em outro lugar, com exceção do Campeonato Paulista, que tem muita rivalidade. Esse nível é importante, porque a gente não se engana, nosso parâmetro está alto, tivemos que começar a montar um time e logo de cara jogar em alto nível, com Paysandu, Campinense, então tivemos que estar sempre com a corda esticada.
Esse nível alto logo de cara mais atrapalha ou ajuda vocês?
No nosso caso, em que a equipe foi toda remontada, foi muito difícil, porque tivemos que queimar várias etapas, porque se não a coisa não andaria, mas a partir do momento em que você passa essa fase e a evolução da equipe e os resultados vêm, isso te dá tranquilidade e também te dá um parâmetro que não te engana. Você sabe no que sua equipe está rendendo, no que sua equipe precisa melhorar e no que cada jogador está te dando. Como temos um Brasileiro da Série B depois, a gente está enfrentando adversários do nível dos mais fortes. Nivelado por cima. E outra, são só grandes jogos, acima de 50 mil pessoas, é muito bom isso. Dos campeonatos do primeiro semestre, acho que é o mais emocionante, com mais público, que movimenta toda a região.
Como você trabalha os jogadores para enfrentar os times de maior investimento?
Com os jogadores é mais fácil, porque eles já vieram sabendo da nossa realidade financeira. E outra coisa, 90% dos jogadores que tem sido mais utilizados, já jogaram em times da primeira divisão, então eles não sentem essa diferença. É saber da realidade, mas saber que estamos no mesmo patamar deles, só o momento que é um pouco diferente, o momento financeiro. Existem clubes, como o Vitória, com dez vezes o nosso orçamento. Dentro de campo iguala tudo, é outra história, principalmente pelo histórico de nossos jogadores.
Você disse que seu objetivo é montar um time para o ano inteiro. Dá para dizer que seu objetivo principal é voltar para a Série A do Brasileirão?
Diria que não só o meu como o do clube, porque o que a Série A dá ao clube em termos de retorno financeiro direto e indireto, patrocínio também, garantia de outras coisas, sem dúvidas é essencial. A gente tem os processos e os passos a serem cumpridos. Montar um time, organizar esse time, passando por fases, mas, no final, o objetivo principal e o que recompensa toda essa reformulação forçada, é voltar à primeira divisão. Acho que isso tem que ser o foco principal, por isso a gente já tem feito reuniões com a direção, dentro desse processo de Copa do Nordeste e estadual, mas já vislumbrando a Série B. O nosso processo é manter os jogadores, trazer outros para reforçar, e não tirar esses. Aquele processo da Chapecoense, dos times da Europa, a gente já está fazendo aqui, ou seja, fazer um time para a temporada, e nas janelas reforçar o elenco, não trocar todo mundo.
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