Caso Marielle: preso ensinava luta, era faz-tudo de PM e amigo de políticos
Preso durante a operação que investiga o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL), Josinaldo Lucas Freitas era professor de taekwondo em um projeto na comunidade da Muzema, na zona oeste do Rio de Janeiro. Para entender como um praticante de artes marciais acabou ligado ao crime, o UOL Esporte foi atrás de pessoas que conviveram com Josinaldo, ou Djaca, como ele era conhecido. Ele é acusado de fazer parte de um grupo que ocultou as armas usadas no assassinato.
Descobriu um homem com medo da prisão, conhecido por seu projeto social e que chegava a ser chato ao pedir ajuda para manter as aulas que dava para as crianças da comunidade. Por causa dessa atuação, era uma pequena liderança local e costumava dialogar com políticos — de alguns, ele mesmo se considerava amigo. A relação com o assassinato vem de outra amizade, com o sargento reformado da PM Ronnie Lessa, acusado de ter efetuado os disparos contra a vereadora.
"Vou me matar aqui dentro"
Na quinta-feira (3), Djaca teve de ser levado às pressas para o hospital. Segundo seu advogado, Luís Flávio Biolchini, o professor de artes marciais teve um pico de pressão e uma crise de hipercligemia. Ele é diabético e faz uso de insulina diariamente.
Desde a prisão, as conversas de Djaca com o advogado se resumem ao desespero. "Ele está com medo de morrer, de ficar sem insulina. Diz o tempo todo: 'Porra, eu sou atleta, se fico dez minutos parado, já é uma tortura. Vou me matar aqui dentro, cara, me ajuda'", relatou Biolchini. O acusado foi encaminhado ao Hospital Municipal Lourenço Jorge, o CER, na Barra da Tijuca, após pedido dos advogados, e recebeu alta no mesmo dia.
Segundo informações divulgadas pela Polícia Civil e pelo Ministério Público, o professor contratou o serviço de um barqueiro para despejar, no mar, parte do conteúdo retirado do apartamento do sargento reformado da PM Ronnie Lessa, preso em março deste ano. Lessa é acusado de ter efetuado os 13 disparos contra a vereadora. Em depoimento à polícia, um pescador revelou que foi contratado por Djaca por R$ 400 para levá-lo ao mar, perto das ilhas Tijuca, onde se livraria de "fuzis e pequenas caixas".
"Faz-tudo de Lessa"
Uma fonte próxima à investigação ouvida pela reportagem conta que Djaca e Lessa eram amigos próximos e que o professor era uma espécie de "faz-tudo" do PM: levava o seu carro para a oficina mecânica quando necessário e a filha dele para a escola "quase sempre".
O advogado de Djaca confirmou a amizade entre os dois, depois de, inicialmente, ter alegado que a relação era superficial. "Ele cortava grama para o Lessa, às vezes, levava a filha dele para a [antiga casa de shows] Barra Music, fazia a segurança dela nas festas. Ganhava algum dinheiro em troca".
Essa era apenas uma das funções remuneradas de Djaca: ele também trabalhava como promotor de eventos e segurança na Barra Music, hoje chamada de Espaço Hall. Durante o dia, dava aulas de taekwondo em uma associação de moradores na comunidade da Muzema e Rio das Pedras, na zona oeste do Rio de Janeiro. Segundo a Polícia Civil, a região é dominada pelas milícias cariocas.
Amigo de todo mundo
Um amigo de infância de Djaca que prefere não se identificar comenta a popularidade do professor dentro da Muzema. "Não dava para andar ao lado dele sem que alguém o parasse", diz. Sempre em busca de patrocínio, numa abordagem que envergonhava o amigo, Djaca parava de comércio em comércio pedindo "qualquer ajuda" ao projeto social.
Ele fazia as inscrições, periodicamente, dos alunos de artes marciais da comunidade em competições de taekwondo. "Eu saía de perto porque ele ficava, o tempo todo, pedindo coisa para os outros. Eu tinha vergonha. O Djaca era muito querido, amigo de todo mundo, estou surpreso com a notícia da prisão dele".
Djaca começou no taekwondo em uma academia de Muzema. Ele mora com a mãe, uma irmã e um sobrinho em Tijuquinha, ao lado da comunidade. Evoluiu na categoria ainda na adolescência, quando conheceu o amigo. "Eu era professor de taekwondo em uma escola em São Gonçalo e um dos meus melhores amigos era o professor do Djaca. Às vezes, eu saía da aula e ia encontrá-lo na academia na Muzema. Assim, nos conhecemos e ficamos amigos na hora. Ele ainda era adolescente".
"Acompanhei a evolução dele no taekwondo, até chegar na faixa preta, quando começou a atuar como professor. A gente é amigo há mais de 15 anos. Sempre que eu ia ao Barra Music, ele dava um jeito para que meus amigos e eu ficássemos no camarote. Às vezes, eu pegava o carro, passava na casa dele e a gente ia junto. Não teve uma vez que fui ao Barra Music e não encontrei o Djaca", diz.
Nas redes sociais, o professor costumava publicar fotos com celebridades, como a cantora Anitta, o lutador de MMA José Aldo e o músico Zeca Pagodinho. Entre essas e outras poses, publicava imagens de campeonatos com agradecimentos aos patrocinadores, "que faziam tudo acontecer". Um dos parceiros mais citados é o estúdio de tatuagem Zero21 que, há dois anos, contribui com verba, leite em pó, bonés, camisetas e passagens de ônibus para os alunos da Evolução Taekwondo Team, academia de Djaca dentro da associação.
Camila Torres, dona do estúdio, descreve o professor como uma pessoa "educada, generosa e de boa índole". Ela conta que Djaca procurou o estúdio há dois anos e que era praxe da empresa apoiar projetos sociais em comunidades do Rio.
O advogado de Djaca garante que ele não tem antecedentes criminais "nem mesmo por xingar alguém de bobo" e que ele, em momento algum, deixou de colaborar com as investigações. "Josinaldo prestou depoimento seis vezes, não representa risco à Justiça. Considero a decisão [de prendê-lo] extremista".
Bolsonaro 2018, Bebeto e Marcelo Siciliano
Djaca costuma se posicionar politicamente nas redes sociais. Durante a campanha eleitoral de 2018, como mostrou a revista "Veja", o suspeito publicou fotos com o então candidato Jair Bolsonaro e com o filho dele, o vereador Carlos Bolsonaro. As imagens foram apagadas após a divulgação da reportagem. Biolchini afirma que a remoção das fotos não foi um pedido dele, mas confirma que sugeriu que o cliente fosse mais discreto.
Entre seus políticos mais próximos está o vereador Marcelo Siciliano (PHS), a quem o lutador chama de padrinho. O UOL Esporte apurou que Djaca e Siciliano se desentenderam quando o lutador passou a apoiar Carlo Caiado (DEM), opositor ao político do PHS. Procurada, a assessoria de imprensa de Caiado afirma que o político "não tem relação com Djaca nem de apoio, nem de apoiador. Muito do que sabemos sobre ele foi por meio de reportagens publicadas na imprensa".
Por meio de nota, assessoria de Siciliano garante que "em uma campanha eleitoral são inúmeros os apoios que o candidato recebe e que isso não quer dizer que ele tenha relação pessoal ou intimidade com todos os apoiadores. No caso citado, o apoio se deu nas eleições de 2014. Depois, a pessoa em questão passou a apoiar outro político". Em entrevista coletiva após a prisão dos suspeitos, na quinta-feira, Polícia Civil e Ministério Público descartaram o envolvimento de Siciliano no crime.
Djaca também fez campanha para o ex-atacante Bebeto (Podemos), que no ano passado tentou e conseguiu se reeleger deputado estadual. Em uma das postagens, Djaca citou o nome de Bebeto entre os agradecimentos a patrocinadores da associação.
Procurada pela reportagem, a assessoria de imprensa do parlamentar afirmou que Bebeto não tem qualquer relação ou patrocínio a Djaca e garantiu que o ex-jogador posou para a foto como posaria com qualquer pessoa que lhe pedisse uma foto. Outro político tietado pelo suspeito está o ex-deputado federal Pedro Paulo.
Em uma sequência de fotos ele aparece assistindo a uma luta de MMA empunhando o que parece ser uma espingarda.
Entenda o caso
Djaca foi preso na quinta-feira junto a outras quatro pessoas em uma operação relacionada à morte da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, em março de 2018. Entre os acusados, estão Elaine de Figueiredo Lessa, mulher do sargento reformado da PM Ronnie Lessa, acusado de ser o assassino da vereadora e do motorista; o irmão dela, Bruno Figueiredo, Márcio Montavano, conhecido como Márcio Gordo, e Josinaldo Freitas, o Djaca.
O grupo é acusado de ter ocultado armas usadas pela quadrilha, inclusive a submetralhadora HK MP5 que teria sido usada para matar Marielle e Anderson. A arma usada no crime ainda não foi encontrada. De acordo com a denúncia oferecida pelo Ministério Público, a quadrilha se livrou de objetos e pertences de Lessa um dia após a sua prisão, em março deste ano. Ao menos seis armas longas e acessórios teriam sido jogados no mar.
Polícia Civil e Ministério Público afirmam que um dia depois da prisão do sargento reformado da PM, o grupo tentou acessar o apartamento alugado por Lessa com o intuito de retirar seus pertences. As investigações mostram que a administração do condomínio impediu a ação. No entanto, no mesmo dia, Bruno teria entrado no condomínio com Márcio Mantovano, o Márcio Gordo, que, de lá, teria saído carregando uma caixa grande com pertences.
Imagens da câmera de segurança do prédio mostram Márcio Gordo retornando ao veículo em que estava Bruno. Na manhã seguinte, ainda segundo a Polícia Civil, ele teria se encontrado com Djaca no estacionamento de um supermercado na Barra. No local, teriam retirado de outro veículo mais caixas e malas e saído para diferentes locais.
Djaca teria ido até uma colônia de pescadores do Quebra-Mar da Barra e, lá, contratado os serviços de um barqueiro. De dentro do barco, ele teria atirado todo o conteúdo retirado do apartamento de Lessa ao mar. Teria sido possível identificar armas de grosso calibre e peças para a montagem de armas.
* O UOL Esporte procurou a Associação de Moradores da Muzema mas não teve resposta. Na tentativa de falar com o delegado responsável pelo caso, Daniel Rosa, a reportagem ouviu da Polícia Civil do Rio de Janeiro que o agente não está disponível para entrevistas.
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